A ação rescisória não pode ajustar o passado ao presente   Migalhas
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A ação rescisória não pode ajustar o passado ao presente – Migalhas

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“No Brasil até o passado é incerto.”

Não se sabe ao certo o autor da conhecida frase. Os mais cotados são os economistas Pedro Malan, Gustavo Loyola e Roberto Campos. Minha torcida é pelo último. O certo é que não há certeza, nem mesmo sobre isso.

A propósito, com outro economista, Luiz Gonzaga Belluzzo, fiz um parecer sobre segurança jurídica (e extinção do crédito-prêmio de IPI). Belluzzo é economista formado em Direito, não em Economia. Sabe que economia alguma se desenvolve num ambiente de insegurança jurídica. A segurança jurídica não é apenas da essência do Direito, mas a própria essência do Direito.

Significa, sobretudo, estabilidade das relações jurídicas, solidez jurídica, legítima confiança na ordem jurídica e previsibilidade ou calculabilidade de condutas. São muitas as regras que dão concretude a esse supra-princípio. A lei não pode retroagir para prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (CF, art. 5°, XXXVI; LINDB, art. 6°).

Já o Poder Judiciário deve respeitar seus próprios precedentes, decidir de maneira racional e julgar casos análogos de forma similar (CPC, art. 926). O CPC/15 contempla um microssistema da tutela de casos, causas ou questões repetitivas e um microssistema de formação de precedentes vinculantes (CPC, arts. 928 e 927).

Precedentes e decisões judiciais vinculantes não devem retroagir para alcançar situações consolidadas, causando insegurança, razão pela qual é possível modular seus efeitos (v.g., lei 9.868/99, art. 27; art. 11 da lei 9.882/99; e CPC, arts. 525, § 13; 535, § 6°; 927, 927, §§ 3° e 4°, entre outros).

O Supremo, na vigência do CPC passado, editou a súmula 343, cujo teor é o seguinte:

“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.”

Portanto, entendeu o STF, no que foi seguida pelo STJ, que é inviável a ação rescisória nas seguintes situações: a) dissídio jurisprudencial ao tempo da decisão; e b) mutação jurisprudencial, havendo o tribunal aplicado a jurisprudência prevalente à época, ressalvada a modificação da interpretação da CF/88, segundo julgados do STF.

Coerente com a súmula 343, o STF firmou a tese de RG 136 nos seguintes termos:

“Não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente.”

A súmula 343 dizia respeito ao inciso V do art. do art. 485 do CPC/73, cujo correspondente é o inciso V do art. 966 do CPC/15, com uma alteração relevante: Antes se admitia rescisória por violação de literal disposição de lei; hoje se admite rescisória por violação manifesta de norma jurídica.

Como norma jurídica compreende precedente judicial vinculante ou qualificado, passou a caber rescisória quando a decisão rescindenda conferir interpretação manifestamente contrária ao precedente.

Mas o X do problema é o seguinte: Cabe ação rescisória para ajustar a decisão rescindenda ao precedente judicial vinculante posteriormente firmado?

A rescisória é cabível quando a decisão rescindenda se fundar em norma considerada inconstitucional pelo STF, ou estiver fundada em norma de aplicação ou de interpretação tida pelo STF como incompatível com a CF/88, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso, exceto se houver modulação dos efeitos da decisão da decisão do STF (CPC, art. 525, §§ 12, 13 e 15; e art. 535, §§ 5°, 6° e 8°).

Nessa linha, o STF fixou a tese de RG 1.338, segundo a qual também é cabível ação rescisória contra a decisão transitada em julgado em desacordo com o marco temporal decorrente da modulação de efeitos da tese de RG 69.

Já o STJ firmou a seguinte tese repetitiva:

“Nos termos do art. 535, § 8º, do CPC, é admissível o ajuizamento de ação rescisória para adequar julgado realizado antes de 13/5/21 à modulação de efeitos estabelecida no Tema 69/STF – Repercussão Geral”.

O prazo da rescisória por inconstitucionalidade da norma em que se fundou a decisão rescindenda, segundo o Código, deve ser contado a partir do trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF – isso mesmo, pelo STF!!! (CPC, art. 525, § 15; e art. 535, § 8°).

Nesse ponto, o Código jogou no lixo a segurança jurídica para satisfazer o interesse da Fazenda Pública – presente desde as primeiras edições da MP 2.180-35 até o processo legislativo que precedeu o CPC/15 -, que não é a única beneficiária, mas a maior beneficiária da norma.

Esse termo inicial indefinido ou dependente do trânsito em julgado de uma decisão do Supremo – que pode ocorrer cinquenta, sessenta ou setenta anos depois do trânsito em julgado da decisão rescindenda -, é incompatível com o disposto no caput do art. 5° da CF/88, que assegura segurança – inclusive segurança jurídica – aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país.

Alguns autores propõem soluções compatibilizadoras do dispositivo com a segurança jurídica, como a observância do prazo máximo geral de prescrição ou do prazo máximo de cinco anos, contado do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo.

Penso que o termo inicial do prazo bienal deve ser o mesmo para as rescisórias em geral, previsto no caput do art. 975 do CPC, ou seja, o trânsito em julgado da última decisão proferida no processo, pouco importando o trânsito em julgado da decisão do Supremo.

E se o precedente não disser respeito à declaração de inconstitucionalidade ou ao reconhecimento de incompatibilidade com a Constituição Federal?

Há quem entenda que a rescisória será cabível mesmo que a formação do precedente ocorra em momento posterior ao trânsito em julgado da decisão rescindenda, em respeito ao princípio da isonomia, exceto se aplicado o critério – para o não cabimento da ação rescisória – da modulação de efeitos (v.g., REsp 2.148.355/GO).

Realmente, interpretações distintas para casos análogos vulneram a isonomia. Se a lei é igual para todos, deve ser igualmente interpretada para interpretada para todos.

Por isso mesmo, a rescisória é cabível quando a decisão rescindenda contrariar manifestamente precedente judicial vinculante contemporâneo a essa decisão.

Mas não se pode exigir que condutas sejam calculadas ou pautadas a partir de precedentes que ainda não existem, ou que magistrados guardem coerência com precedentes ainda inexistentes. A decisão judicial faz um print do tempo em que foi proferida. Se o precedente é a norma jurídica violada, mas no print não se encontra o precedente, não existe norma jurídica violada.

A propósito, o STF e o STJ ordinariamente entendem “que não há cabimento de ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei quando a decisão rescindenda estiver baseada em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais, ainda que ocorra posterior superação dos precedentes” (STJ – Segunda Turma, AgInt no AREsp 2.536.368/SP, relator ministro Francisco Falcão, DJe de 2/12/24).

Por isso, “Não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente”. RE 590.809 (Tema 136/RG)” (STJ – Segunda Turma, Rel. Min. Nunes Marques, DJe 19/9/24).

O cabimento da ação rescisória para ajustar a decisão à posterior declaração de inconstitucionalidade ou ao reconhecimento de incompatibilidade com a CF/88, é a exceção (CPC, art. 525, § 15; e art. 535, § 8°) que confirma a regra (CPC, art. 966, V).

“Não se pode planejar o futuro pelo passado” (Edmund Burke). O entendimento superado pode não servir aos casos futuros, mas é coerente com o passado em que se deu.

A segurança jurídica deve ser preservada, inclusive na mudança interpretativa, mantendo-se a estabilidade das relações ou das situações jurídicas submetidas ao Poder Judiciário.

Rodrigo da Cunha Lima Freire

Rodrigo da Cunha Lima Freire

Mestre e Doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP, Professor de Direito Processual Civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Advogado e Parecerista. youtube e Instagram @ProfRodrigoDaCunha

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