CompartilharComentarSiga-nos no A A
As restrições impostas pelos Estados Unidos à venda de chips de última geração para a China têm gerado repercussões significativas no cenário tecnológico global. Sob a ótica do Direito Internacional, o objetivo dessas sanções é proteger os interesses e a segurança nacional dos EUA, ao mesmo tempo em que busca conter o avanço tecnológico de possíveis concorrentes estratégicos. Contudo, a experiência histórica sugere que obstáculos comerciais e tecnológicos podem atuar como verdadeiros catalisadores de inovação local.
No contexto sino-americano, essa dinâmica ficou particularmente evidente com o surgimento do DeepSeek, uma inteligência artificial chinesa que vem abalando mercados ao alcançar resultados notáveis mesmo com recursos de hardware mais modestos. Esse exemplo reforça a ideia de que, quando o acesso a tecnologias de ponta é bloqueado, há um incentivo adicional para o desenvolvimento de soluções criativas. As sanções funcionam, portanto, não apenas como barreiras, mas também como estímulos à busca de alternativas.
Entender este fenômeno exige uma análise multifacetada: é preciso considerar aspectos técnicos, geopolíticos e, sobretudo, os fundamentos do direito internacional que permitem e legitimam – ou não – esse tipo de medida restritiva. Somente a partir dessa perspectiva ampliada é possível compreender a complexidade do cenário que deu origem ao DeepSeek.
1. A gênese do problema: Restrições e “gargalos” tecnológicos
Nos últimos anos, Washington adotou uma política de crescente restrição na exportação de componentes avançados para empresas chinesas, sobretudo processadores e GPUs de alto desempenho, como as séries H100 e A100 da Nvidia. Tais medidas são frequentemente justificadas por meio de legislações como o IEEPA – International Emergency Economic Powers Act e o ECRA – Export Control Reform Act, que permitem ao governo dos EUA impor sanções e controles de exportação quando se trata de segurança nacional. Esse arcabouço legal é respaldado, em certa medida, por normas e acordos internacionais, mas a forma como é aplicado pode gerar tensões diplomáticas e comerciais.
Na prática, o raciocínio legal por trás dessas restrições concentra-se em impedir que tecnologias sensíveis sejam aplicadas em projetos que possam atentar contra os interesses dos EUA. Além disso, há a intenção de manter vantagens competitivas para a indústria norte-americana, que tem liderado o desenvolvimento de chips e GPUs. Essas ações, porém, não ocorrem num vácuo: organismos como a OMC – Organização Mundial do Comércio avaliam, ainda que tardiamente, se tais sanções violam as regras de comércio internacional. A interpretação de “segurança nacional” costuma ser ampla, mas, em certos casos, acaba sendo questionada por outros membros da OMC.
Apesar de todo esse aparato legal e político, as sanções tiveram um efeito inesperado: elas estimularam a busca de soluções internas na China. Universidades, startups e grandes companhias chinesas passaram a investir pesadamente em pesquisa para aprimorar algoritmos de inteligência artificial que rodem em hardware menos sofisticado. Esse movimento culminou em diversas inovações, das quais a DeepSeek é apenas um dos exemplos mais proeminentes. A chamada “corrida pela eficiência” – em que se busca fazer mais com menos – tornou-se uma estratégia de sobrevivência no mercado chinês, provando que restrições externas podem acelerar processos internos de modernização.
2. DeepSeek: O “filho” da pressão externa
A DeepSeek nasceu justamente nesse ambiente de pressão, em que a escassez de chips de última geração se converteu em oportunidade para a criação de soluções de IA mais enxutas. A startup lançou recentemente o modelo DeepSeek-V3, treinado com um custo total abaixo de US$ 6 milhões e utilizando chips H800, considerados defasados em comparação a modelos mais avançados da Nvidia. Essa situação ilustra a capacidade de adaptação: quando recursos de ponta não estão disponíveis, a criatividade e a eficiência surgem como diferencial competitivo.
Curiosamente, os chips H800 haviam sido concebidos como versões “capadas” para cumprir os regulamentos de exportação dos EUA e, ainda assim, passaram a ser alvo de novas proibições. Em vez de travar o avanço tecnológico, essas medidas deram o empurrão necessário para que a DeepSeek desenvolvesse algoritmos mais enxutos, priorizando a otimização de parâmetros e a seleção inteligente de dados de treinamento. Em termos de Direito Internacional, esse tipo de reação evidencia como as políticas de contenção podem levar a resultados opostos ao pretendido, impulsionando a autossuficiência e a inovação em nações sancionadas.
O resultado prático não tardou a aparecer: o desempenho do DeepSeek-V3 aproximou-se – e em alguns testes, superou – soluções robustas como ChatGPT e Claude. Em poucos dias, o aplicativo gratuito da DeepSeek tornou-se o mais bem avaliado na App Store dos EUA, atraindo a atenção do público e do mercado financeiro. Esse sucesso repentino reforça a tese de que ambientes regulatórios hostis podem servir de “laboratórios de resiliência”, impulsionando desenvolvimentos disruptivos que desafiam a lógica dominante de que apenas quem detém chips de última geração pode competir no setor de IA.
3. Impactos nos mercados e na geopolítica
3.1. Colapso na euforia das big techs
O êxito do DeepSeek teve implicações imediatas no mercado financeiro. Grandes empresas de tecnologia, tradicionalmente associadas à produção de chips de última geração ou ao desenvolvimento de sistemas de IA de alto custo, viram suas ações caírem. Investidores passaram a questionar se realmente são necessários chips ultramodernos para a criação de IAs competitivas, alimentando a percepção de que há um exagero nos valuations dessas companhias.
Esse clima de incerteza refletiu-se em quedas nas ações de gigantes como Nvidia, além de empresas fornecedoras de componentes e até em mercados correlatos, como o de criptomoedas, com o Bitcoin registrando desvalorizações. A volatilidade do mercado é um sinal claro de que os players financeiros reavaliam suas apostas: se a tendência for mesmo a IA “enxuta”, haverá um redirecionamento de investimentos para soluções mais eficientes em termos de custo-benefício.
Além disso, o episódio também expôs a fragilidade do “efeito manada” no setor de tecnologia. Quando todos os olhares se voltam para um grupo restrito de empresas e produtos, qualquer inovação disruptiva pode causar oscilações abruptas. O DeepSeek funcionou como um alerta de que novas frentes de pesquisa e desenvolvimento podem emergir mesmo em contextos adversos, obrigando o mercado a recalcular trajetórias e perspectivas de lucro.
3.2. Pressão em Washington e revisões de sanções
Do ponto de vista do Direito Internacional, a repercussão do DeepSeek coloca pressão sobre Washington para reavaliar o sucesso de suas sanções. Historicamente, os Estados Unidos têm utilizado medidas restritivas para proteger setores estratégicos ou pressionar mudanças em países-alvo, amparando-se em legislações domésticas e em exceções de segurança nacional. Contudo, a efetividade dessas sanções é frequentemente debatida em fóruns como o Conselho de Segurança da ONU (quando há alegações de ameaças à paz) ou na OMC (quando envolvem práticas comerciais).
Com a emergência de soluções como a DeepSeek, os EUA podem se deparar com um cenário em que suas restrições não apenas falham em conter o progresso tecnológico chinês, mas ainda aceleram o surgimento de competidores fortes no mercado global de IA. Esse risco geopolítico pode levar a novas rodadas de negociações e acordos bilaterais, em que Washington tentará manter algum tipo de vantagem ou buscar garantias de não uso de tecnologia sensível para fins militares ou de espionagem.
Em paralelo, vozes no Congresso americano podem questionar a conveniência de restringir exportações de forma tão ampla, uma vez que isso pode significar perda de receita para empresas nacionais e o surgimento de concorrentes estrangeiros cada vez mais competitivos. O embate político sobre esse tema tende a se intensificar, haja vista a complexidade das disputas tecnológicas do século XXI, nas quais segurança e competitividade econômica se misturam de forma indissociável.
3.3. Questões regulatórias e de propriedade intelectual
A adoção de estratégias de desenvolvimento open source pela DeepSeek e outras startups chinesas suscita desafios no campo legal, especialmente quando consideramos a amplitude dos acordos internacionais sobre propriedade intelectual. Tratados como o Acordo TRIPS – Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, da OMC, estabelecem padrões mínimos de proteção e enforcement, mas ainda há considerável margem de manobra para a adoção de modelos colaborativos em países que desejem escapar das amarras de licenças onerosas.
Quando empresas chinesas optam por compartilhar partes de seu código, elas podem evitar violações de patentes internacionais ao mesmo tempo que ampliam colaborações, inclusive com parceiros fora do eixo sino-americano. Isso cria um ecossistema com maior diversidade de soluções de IA, complicando a tentativa de controle por parte dos grandes players dos EUA. Além disso, o uso de plataformas abertas para pesquisa e desenvolvimento torna mais difícil rastrear e aplicar sanções a cada componente utilizado.
Nesse contexto, patentes, direitos de uso e acordos de licenciamento podem vir a ser debatidos em instâncias de arbitragem internacional, especialmente se houver alegações de quebra de direitos de propriedade intelectual. No entanto, o caráter difuso e descentralizado do desenvolvimento de IA open source dificulta a aplicação de leis tradicionais de PI, demandando uma abordagem global mais sofisticada. Casos recentes na Organização Mundial do Comércio mostram que litígios nessa área tendem a se arrastar por anos, criando incertezas regulatórias que podem, paradoxalmente, favorecer ainda mais os inovadores “de nicho” como a DeepSeek.
4. Perspectivas futuras e lições aprendidas
4.1. Inovação a partir da adversidade
Um dos pontos mais marcantes da trajetória da DeepSeek é a demonstração de que políticas restritivas podem catalisar inovações internas. Sempre que países ou setores são alvo de sanções, surge a necessidade de desenvolver tecnologias alternativas – ou aprimorar as existentes – de forma a contornar essas barreiras. Esse padrão já foi observado em diversos contextos históricos, como no desenvolvimento de programas nucleares, aeroespaciais e farmacêuticos em nações submetidas a embargos.
No caso da IA chinesa, a escassez de GPUs de ponta levou pesquisadores a repensar a maneira de treinar modelos de linguagem natural, por exemplo. Em vez de confiar exclusivamente em brute force e grandes quantidades de dados, equipes como a da DeepSeek optaram por algoritmos mais seletivos, uso criterioso de dados de treinamento e técnicas de compressão avançadas. Isso não só tornou o modelo mais leve, como mostrou que há caminhos alternativos para se obter alta performance em IA.
Em termos de Direito Internacional, esse fenômeno gera questionamentos sobre a efetividade a longo prazo das sanções, bem como sobre a legitimidade de países que recorrem a essas medidas para defender seus interesses estratégicos. Se as sanções não cumprem seu objetivo principal e ainda provocam o surgimento de concorrência mais robusta, a política adotada pode ser vista como contraproducente.
4.2. Revisão de estratégias corporativas
As empresas e fundos de investimento globais observam a ascensão do DeepSeek com um misto de surpresa e reflexão. O paradigma vigente até então era o de que apenas grandes corporações com vastos recursos e acesso ilimitado a hardware de ponta poderiam despontar na corrida da IA. A “lei” implícita era: mais GPUs de última geração significam melhores resultados.
Contudo, o êxito de um modelo treinado em chips defasados e com custo reduzido coloca essa premissa em xeque. Agora, corporações ao redor do mundo questionam se não há formas mais econômicas e eficientes de se produzir IA de alto nível. Isso pode provocar uma onda de mudança na alocação de capital: em vez de direcionar bilhões para data centers ultramodernos, talvez seja mais vantajoso investir em pesquisa de algoritmos e em equipes capazes de otimizar modelos.
Em âmbito jurídico, essa revisão estratégica também significa que acordos e contratos de fornecimento de chips podem ser reavaliados. Contratos de exclusividade com fabricantes de semicondutores podem perder valor se a dependência de chips top de linha não for mais imprescindível. Essa mudança, embora gradual, aponta para uma reorganização das cadeias de suprimento e das prioridades de investimentos em tecnologia.
4.3. Desafios para a governança global de IA
O sucesso de uma IA chinesa de baixo custo traz à tona novas discussões sobre governança global de IA – especialmente no que diz respeito a padrões de segurança, transparência e ética no desenvolvimento de algoritmos. Enquanto os EUA e a Europa debatem marcos regulatórios para a IA, a China avança na implantação de soluções que podem se disseminar rapidamente em outras jurisdições, incluindo países emergentes.
Em nível internacional, fóruns como a UIT – União Internacional de Telecomunicações e organizações regionais poderão ser palco de embates sobre a definição de padrões técnicos e protocolos de interoperabilidade. A capacidade de influenciar esses fóruns depende não apenas de força política, mas também do grau de inovação tecnológica de cada país. Assim, a emergência de soluções como a DeepSeek eleva o patamar de influência da China nesses espaços.
Há também a questão dos impactos socioeconômicos e de privacidade ligados à IA. Modelos mais acessíveis, como o DeepSeek, podem acelerar a adoção de IA em setores até então marginalizados – como pequenas empresas, governos locais e países em desenvolvimento. Esse potencial inclusivo contrasta com preocupações acerca de coleta de dados, vigilância e outros desafios éticos. Tudo isso reforça a necessidade de uma governança global inclusiva, que leve em conta diferentes realidades e níveis de desenvolvimento tecnológico.
4.4. Equilíbrio entre segurança nacional e mercado livre
No cerne do debate encontra-se a tensão entre segurança nacional e livre comércio, ambos princípios resguardados por instrumentos do Direito Internacional. Organismos como a OMC defendem a redução de barreiras comerciais, enquanto tratados e legislações nacionais permitem exceções por motivos de segurança ou soberania. No entanto, a aplicação ampla dessas exceções gera divergências e questionamentos sobre possíveis violações dos acordos multilaterais de comércio.
De um lado, os EUA argumentam que devem preservar sua liderança tecnológica para garantir a proteção de informações sensíveis e manter a superioridade estratégica. De outro, a China vê as restrições como tentativas de sufocar seu crescimento e cercear o acesso a tecnologias legítimas para desenvolvimento econômico. O equilíbrio entre esses interesses é complexo e, frequentemente, as sanções comerciais acabam exacerbando as rivalidades em vez de resolvê-las.
Enquanto isso, países terceiros podem sofrer efeitos colaterais ou aproveitar as brechas do conflito para se posicionar de maneira vantajosa. Alguns podem firmar acordos de cooperação tecnológica com a China, aproveitando-se da oferta de soluções IA de custo menor, enquanto outros podem reforçar laços com os EUA na esperança de receber benefícios em transferência de tecnologia. O resultado é um tabuleiro geopolítico altamente dinâmico, onde cada movimento de sanção ou contrassanção afeta o equilíbrio delicado entre segurança nacional e mercado livre.
Considerações finais
A história recente do DeepSeek demonstra como sanções comerciais podem, paradoxalmente, funcionar como estopins para inovações fora do radar. Ao se verem privadas de chips de última geração, as equipes chinesas buscaram refinar ao máximo seus algoritmos e modelos, produzindo soluções surpreendentemente eficientes. Esse fenômeno ilustra a capacidade de adaptação e resiliência em contextos adversos, bem como a imprevisibilidade das consequências das medidas restritivas em um mundo cada vez mais interconectado.
Sob a perspectiva do direito internacional, o caso evidencia as lacunas existentes nos mecanismos de controle e o potencial efeito reverso das sanções. Ainda que visem proteger interesses estratégicos, essas medidas podem inadvertidamente fomentar o surgimento de competidores de peso em países sancionados. Com o mercado global de IA em plena transformação, empresas e governos serão forçados a rever seus investimentos e políticas, abrindo espaço para questionamentos fundamentais sobre o equilíbrio entre segurança, soberania e livre comércio.
No fim das contas, a DeepSeek, fruto da adversidade, ocupa agora um papel central no debate sobre o futuro da inteligência artificial. Seu sucesso sinaliza uma possível virada de paradigma: não é apenas o “quem” detém a tecnologia de ponta, mas “como” essa tecnologia é utilizada ou mesmo recriada em condições desfavoráveis. Talvez estejamos testemunhando o início de uma nova fase da IA, marcada por soluções enxutas e acessíveis, capazes de remodelar a geopolítica e a economia global em ritmo acelerado.
Victor Habib Lantyer de Mello
Advogado e Professor. Mestre em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Autor de dezenas de livros jurídicos. Pesquisador multipremiado.