Danos ao Poder Público e concessionárias pelo peso no meio rodoviário   Migalhas
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Danos ao Poder Público e concessionárias pelo peso no meio rodoviário – Migalhas

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No dia 4/12/24, o STJ julgou relevantíssimo caso envolvendo diretamente os interesses de concessionárias de rodovias e transportadoras. Trata-se do recurso especial 1.908.497/RN, de relatoria do ministro Teodoro Silva Santos, e julgado sob o rito dos recursos repetitivos pela 1ª seção.

Naquela oportunidade, a 1ª seção do STJ firmou o Tema 1.104, com o seguinte conteúdo: “o direito ao trânsito seguro, bem como os notórios e inequívocos danos materiais e morais coletivos decorrentes do tráfego reiterado, em rodovias, de veículo com excesso de peso, autorizam a imposição de tutela inibitória e a responsabilização civil do agente infrator”.

As repercussões são numerosas, mas o presente texto pretende abordar apenas uma delas: as consequências sobre o regime de responsabilidade civil tendo em vista os danos rotineiramente impostos ao Poder Público e às concessionárias de rodovias em razão do excesso de carga.

Antes, não se poderia deixar de assinalar algumas premissas fundamentais que levaram a 1ª seção do STJ a reconhecer a existência de danos decorrentes do excesso de peso:

(i) “O Código de Trânsito Brasileiro previu, de forma inédita, que o trânsito em condições seguras é um direito de todos e dever dos órgãos e das entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito (art. 1º, § 2º, da lei 9.503/97). Com a promulgação da EC 82/14, a segurança viária alcançou status constitucional, devendo ser exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio (art. 144, § 10º, da CF/88)”;

(ii) “A fim de preservar a integridade das vias terrestres, bens públicos de uso comum do povo, assim como a segurança no trânsito, dispõe o art. 231, V, do CTB que o tráfego de veículo com excesso de peso constitui infração administrativa de natureza média, sujeita à aplicação de multa”, mas “a punição da conduta na esfera administrativa não esgota, necessariamente, a resposta punitiva estatal frente ao ilícito, notadamente quando há desproporcionalidade entre a penalidade administrativa aplicada e o benefício usufruído pelo infrator”;

(iii) “É fato notório o nexo causal existente entre o transporte com excesso de peso e a deterioração da via pública decorrente de tal prática”; e

(iv) “Assim como a previsão de infração administrativa não afasta o reconhecimento da responsabilidade civil do agente reincidente no transporte com excesso de peso, a aplicação da multa administrativa não exclui a imposição da tutela inibitória prevista pela lei da Ação Civil Pública (art. 11, da lei 7.347/85)”.

O caso julgado tinha objeto específico: definir se, para além da responsabilidade em razão da infração administrativa – às regras de trânsito -, seria possível impor às transportadoras que transitem com excesso de peso responsabilidade em sede de ação civil pública, inclusive com a imposição de tutela inibitória.

Decidiu-se que sim, em precedente que tem efeitos muito mais amplos do que apenas aqueles que recaem sobre a tutela inibitória e sobre a pretensão deduzida pelo MP em sede de ações civis públicas1.

O STJ assentou que, em seu entendimento, transitar com excesso de peso consubstancia conduta causadora de dano, na medida em que reduz a vida útil da malha viária. Nas palavras do ministro Teodoro Silva Santos, “a proibição de circular com excesso de carga nas rodovias decorre da circunstância de que as vias terrestres são planejadas e construídas para suportar determinado peso, limite que, caso não observado, provocará uma série de consequências adversas, que não se resumem à pavimentação em si”.

Na decisão, foram narrados os pormenores da deterioração da malha viária em razão do trânsito de caminhões com sobrepeso. A vida útil do asfalto é reduzida, em média em 30%, apenas em razão do excesso2.

Esse custo, quando a via é administrada pelo Poder Público, recai diretamente sobre a sociedade, que arca com a manutenção e com o recapeamento constante – sobretudo porque, de acordo com o sistema tributário brasileiro, o peso do veículo em nada influi no montante do tributo cobrado (que incide sobre seu valor)3.

De outro lado, nas hipóteses em que as rodovias são concedidas à iniciativa privada, o custo do excesso de peso das cargas acaba recaindo direta e imediatamente sobre a concessionária, com impactos severos no seu fluxo de caixa e abalo na estrutura econômico-financeira dos contratos de concessão. Recorde-se que as malhas concedidas, conforme se extrai do próprio precedente do STJ, sofrem deterioração de cerca de 30%, a revelar a grandiosa dimensão dos prejuízos.

A decisão evidencia que o transportador que transite com excesso de peso causa dano à malha viária4. Com isso, já não pode haver dúvidas jurídicas do preenchimento de dois requisitos da responsabilidade civil, previstos nos arts. 186 e 927 do CC/02: o dano5 e o nexo de causalidade6.

O excesso de peso da carga constitui causa adequada dos danos sofridos pela malha viária nacional, em razão do aumento, significativo, do desgaste sofrido pelo pavimento.

A responsabilidade que recai sobre as transportadoras de cargas, nesse contexto, é objetiva, uma vez que se trata de atividade que, por sua natureza, cria riscos para os direitos dos usuários de rodovias e para os concessionários7.

Seja como for, a culpa que lhes poderia ser imputável facilmente decorria (i) do dever normal de diligência que deveriam guardar, sem aumentar o risco à segurança dos demais usuários das vias e os custos em que incorrem as concessionárias para manutenção da malha viária; bem como (ii) das obrigações administrativas e regulatórias por elas violadas.

A quantificação do dano dependerá de estudos sobre o impacto gerado pelas transportadoras, o que será passível de individualização a partir da demonstração da reiteração de conduta infratora de empresas que habitualmente trafeguem com excesso de peso (i.e., a existência de infrações administrativas já sancionadas), somando-se os custos de manutenção por trecho, dentre outros fatores.

Está-se diante de precedente valioso firmado pelo STJ. Suas razões de decidir aplicam-se igualmente às concessionárias de serviços públicos, que podem e devem delas se valer com vistas à busca de responsabilização das empresas infratoras.

1 Pois estava em julgamento ação civil pública proposta pelo MPF contra Cledson C. Sousa Gesso – ME, em que se buscava “a condenação da empresa ao pagamento de danos material e moral coletivo em razão do tráfego de veículos com excesso de carga nas rodovias federais”.

2 “É sabido que o sobrepeso deteriora prematuramente a malha viária, reduzindo sobremaneira sua vida útil. Conforme o professor de Engenharia de Produção e Transportes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), João Albano, um dos principais problemas causados pelo excesso de carga é a deterioração prematura dos pavimentos. A vida útil de uma via reduz, em média, 30%. Nas rodovias, onde o tráfego é mais intenso, a redução chega a 70%. Assim, um pavimento feito para durar cerca de 10 (dez) anos, dura apenas 07 (sete) e, nos casos mais extremos, resume-se a 03 (três) anos.A deterioração decorrente do sobrepeso ocasiona o surgimento de trincas, fissuras, depressões, lombadas e buracos na pavimentação, os quais se agravam com a infiltração das águas das chuvas. Em virtude da deterioração do pavimento, o acostamento também sofre redução da vida útil, na medida que passa a ser utilizado pelos condutores como pista de rolamento. Todo esse desgaste prematuro gera a necessidade de novos e elevados investimentos públicos em infraestrutura, com vistas à recuperação do patrimônio público.”

3 O art. 155, inciso III e § 6º, da Constituição da República, assim disciplinam o imposto sobre a propriedade de veículos automotores: “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (…) III – propriedade de veículos automotores. (…) § 6º O imposto previsto no inciso III: I – terá alíquotas mínimas fixadas pelo Senado Federal; II – poderá ter alíquotas diferenciadas em função do tipo, do valor, da utilização e do impacto ambiental; III – incidirá sobre a propriedade de veículos automotores terrestres, aquáticos e aéreos, excetuados: a) aeronaves agrícolas e de operador certificado para prestar serviços aéreos a terceiros; b) embarcações de pessoa jurídica que detenha outorga para prestar serviços de transporte aquaviário ou de pessoa física ou jurídica que pratique pesca industrial, artesanal, científica ou de subsistência; c) plataformas suscetíveis de se locomoverem na água por meios próprios, inclusive aquelas cuja finalidade principal seja a exploração de atividades econômicas em águas territoriais e na zona econômica exclusiva e embarcações que tenham essa mesma finalidade principal; d) tratores e máquinas agrícolas.”

4 Sobre o emprego da teoria da causalidade adequada, veja-se a lição de Sílvio Venosa: “De outro lado, menciona-se a teoria da causalidade adequada, ou seja, a causa predominante que deflagrou o dano. Causa, nesse caso, será só o antecedente necessário que ocasionou o dano. Assim, nem todos os antecedentes podem ser levados à conta do nexo causal, o que nem sempre satisfaz no caso concreto. Cabe ao juiz fazer um juízo de probabilidades, o que nem sempre dará um resultado satisfatório. Muitos entenderam que o Código de 1916 adotara essa postura no art. 1.060, reproduzido, com pequeno acréscimo, no art. 403” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Obrigações e Responsabilidade Civil, 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2017, versão eletrônica, item 15.9).

5 Importante destacar a complexidade da quantificação e da individualização dos danos, a exigir constante acompanhamento e estudos por parte dos interessados.

6 Na lição de Caio Mário da Silva Pereira, o nexo de causalidade consiste em “estabelecer, em face do direito positivo, que houve uma violação de direito alheio e um dano, e que existe um nexo causal, ainda que presumido, entre uma e outro. Ao juiz cumpre decidir com base nas provas que ao demandante incumbe produzir” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil, 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 82).

7 Conforme disposto no art. 927, parágrafo único, do CC/02.

Leonardo Schenk

Leonardo Schenk

Sócio no Terra Tavares Elias Rosa. Professor Associado de Direito Processual Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor e Mestre em Direito Processual pela UERJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Eletrônica de Direito Processual (REDP) e do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Autor de artigos e livro jurídicos.

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Alberto Lucas Albuquerque da Costa Trigo

Advogado em Terra Tavares Elias Rosa Advogados. Doutorando e Mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr).

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