Marcas do carnaval: Uso de signo distintivo nas escolas de samba do RJ   Migalhas
Categories:

Marcas do carnaval: Uso de signo distintivo nas escolas de samba do RJ – Migalhas

CompartilharComentarSiga-nos noGoogle News A A

Explorando a relevância das escolas de samba do Rio como patrimônio imaterial, a advogada Indhira Soares destaca o potencial das marcas como ativos de propriedade intelectual e ferramentas de valorização cultural.

Introdução

As escolas de samba do Rio de Janeiro representam uma das principais manifestações culturais do Brasil. Protagonistas do Carnaval carioca, vão além dos desfiles, sendo instituições comunitárias que combinam arte, tradição e resistência social. Sua relevância reflete-se na construção da identidade cultural brasileira e no reconhecimento como patrimônio imaterial. Apesar disso, ainda utilizam de forma limitada instrumentos jurídicos para proteger seus bens imateriais.

O reconhecimento como patrimônio cultural encontra respaldo no art. 216 da CF/88, que considera patrimônio cultural as “formas de expressão” e “os modos de criar, fazer e viver”. Outro avanço foi a lei 14.599/23, Lei Nelson Sargento, que reconhece o samba como patrimônio cultural imaterial, reforçando a valorização de suas manifestações e a preservação de tradições e memórias associadas. Em 2007, o IPHAN registrou o samba como bem cultural imaterial no Livro de Registro de Formas de Expressão, destacando Matrizes do Samba do Rio de Janeiro, como o samba de terreiro, o partido-alto e o samba-enredo, assegurando a tutela dessas expressões e sua relevância artística e histórica.

Originadas em comunidades negras e periféricas, as escolas de samba reforçaram práticas ancestrais como batuques e desfiles. Luiz Antonio Simas (2019) alerta que reduzi-las a empresas de entretenimento compromete sua essência, pois elas narram a história brasileira em seus enredos, sambas e performances, abordando questões políticas, sociais e culturais.

Essas escolas são pilares da identidade cultural brasileira e carioca, promovendo educação, cidadania e inclusão social. Mais que espetáculos, seus desfiles celebram criatividade e ancestralidade, conectando o Brasil às suas raízes. Esse potencial cultural, social e econômico atrai milhões de espectadores, gera receitas e projeta a cultura brasileira internacionalmente. Contudo, é essencial valorizar suas raízes comunitárias e proteger juridicamente seus bens imateriais, assegurando benefícios econômicos, artísticos e comunitários.

As legislações de Direitos Autorais (lei 9.610/98) e Propriedade Industrial (lei 9.279/96) oferecem mecanismos para proteger esses bens. Além disso, reconhecer as escolas como guardiãs de conhecimento tradicional fortalece seu papel no Carnaval e na cultura brasileira.

A proteção jurídica dos bens imateriais pode garantir sustentabilidade das escolas de samba, contribuindo para a continuidade das práticas culturais e a preservação do Carnaval como expressão comunitária e popular. Este artigo foca na proteção dos signos distintivos, especificamente as marcas das escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro, explorando seu potencial como ativos de propriedade intelectual e destacando oportunidades de proteção cultural e valorização econômica.

O que é uma marca?

A marca é um signo distintivo, um instrumento jurídico por excelência para diferenciar produtos ou serviços no mercado e, ao mesmo tempo, para assegurar a proteção de seus titulares. Trata-se de um sinal que, além de distinguir, possui o poder e a função de conferir elementos capazes de identificar a sua origem (BARBOSA, 2023), garantindo confiabilidade e promovendo a fidelidade.

A marca se constitui em um importante instrumento de comunicação comercial, capaz de agregar valores intangíveis, como qualidade e prestígio. Nesse sentido, o signo distintivo transcende sua função essencial de individualização para assumir um papel estratégico na consolidação da identidade e da competitividade.

No ordenamento jurídico brasileiro, a lei 9.279/96 (LPI), consagra a marca como um direito, cuja proteção se adquire mediante o registro junto ao INPI – Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Dessa forma, confere ao titular o direito exclusivo de uso em todo o território nacional, permitindo-lhe impedir terceiros não autorizados de reproduzir ou imitar o signo protegido, conforme previsto no artigo 129 da referida lei.

Barbosa (2023) enfatiza, ainda, que a marca não deve ser vista como um ativo isolado, mas como parte integrante do patrimônio imaterial. Seu valor, muitas vezes, ultrapassa o montante dos bens materiais, configurando-se como um elemento estratégico de geração de receita. Essa visão integradora é especialmente relevante no contexto das escolas de samba, cujos signos distintivos possuem não apenas valor econômico, mas também um significado cultural e social que dialoga diretamente com suas comunidades e com o patrimônio imaterial brasileiro, e, sem os quais, elas jamais seriam reconhecidas.

 Classificação 

No sistema brasileiro, a proteção das marcas segue a Classificação Internacional de Nice, que divide os produtos e serviços em 45 classes. As escolas de samba podem registrar seus signos distintivos em diferentes classes, dependendo da natureza de seu uso, como: 

Classe 41: eventos culturais, organização de shows e apresentações artísticas;

Classe 25: vestuário e fantasias;

Classe 35: comercialização de produtos licenciados;

Classe 16: produtos impressos, como cartazes e programas de desfiles.

Ainda que a diversidade de aplicações possibilite ampla proteção, muitas escolas optam por registrar apenas o nome ou o logotipo em uma única classe, limitando a extensão da proteção marcária e, consequentemente, as oportunidades de exploração.

Breve panorama de pedidos e registros

O estudo aqui abordado destina-se a uma análise dos pedidos e registros concedidos no âmbito das 12 escolas de samba do Rio de Janeiro que desfilarão no Grupo Especial durante o Carnaval de 2025. A escolha deste grupo se justifica pela sua relevância e representatividade, considerado o principal no cenário carnavalesco carioca, conforme a classificação obtida no último campeonato de 2024.

A metodologia adotada no artigo restringe-se, portanto, ao exame das agremiações pertencentes a esse grupo, delimitando o campo de pesquisa e permitindo uma análise mais focada e precisa. É importante salientar que as escolas em questão são: Unidos do Viradouro, Imperatriz Leopoldinense, Acadêmicos do Grande Rio, Acadêmicos do Salgueiro, Portela, Unidos de Vila Isabel, Estação Primeira de Mangueira, Beija-Flor de Nilópolis, Paraíso do Tuiuti, Mocidade Independente de Padre Miguel, Unidos da Tijuca e a recém-chegada União de Padre Miguel.

A pesquisa realizada sobre as marcas das escolas de samba do Rio de Janeiro revelou aspectos importantes sobre a gestão de identidade e proteção jurídica dessas organizações culturais. Os dados coletados na base de dados de marcas do INPI demonstram que, embora haja um movimento crescente no sentido de formalizar a proteção das suas marcas, ainda existem lacunas relevantes na abrangência e regularização dos registros.

Em relação ao tipo, 41,7% das escolas possuem marcas mistas registradas, ou seja, apenas cinco escolas de samba do grupo especial possuem seus sinais distintivos protegidos, são elas: Viradouro, Grande Rio, Mangueira, Beija-Flor e Mocidade.

Ao mesmo tempo, somente três escolas de samba (25%) do grupo especial contam com marcas nominativas devidamente protegidas, estas são: Viradouro, Grande Rio e Mangueira. Esse cenário indica uma preferência por registrar símbolos visuais que combinam elementos nominativos e figurativos, característica que reflete a importância da identidade visual na cultura carnavalesca, onde elementos como bandeiras e estandartes desempenham papel central na identificação das agremiações.

Dessa maneira, a pesquisa apontou que uma parcela significativa das escolas ainda não regularizou suas marcas nominativas, já que 75% delas não possuem registros desse tipo.

Essa ausência de proteção é um indicativo de que a conscientização sobre a importância dos direitos de propriedade intelectual ainda não está plenamente consolidada no segmento.

Além disso, observou-se que as escolas que possuem registros concentram suas marcas na classe mais diretamente associada a atividades culturais e eventos. Tanto para as marcas nominativas quanto para as marcas mistas, a totalidade dos registros recai em apenas uma classe, a classe 41, demonstrando um padrão na proteção dos elementos diretamente vinculados à atividade carnavalesca. Esse foco limitado evidencia uma subutilização do potencial de exploração comercial das marcas.

No que diz respeito à diversificação de marcas, apenas uma das escolas possui uma marca registrada além do nome ou símbolo oficial: a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, que registrou o apelido da sua bateria, a renomada “Furiosa”, como marca mista na classe 41. Essa prática, ainda pouco disseminada, pode representar uma oportunidade inexplorada para fortalecer a presença de mercado e a identidade das escolas, especialmente em um contexto onde produtos licenciados e parcerias comerciais são cada vez mais relevantes.

Outra questão levantada pela pesquisa foi a regularidade dos registros. Dos casos analisados, a centenária Portela teve o registro deferido, mas o pagamento da concessão não foi efetuado, o que resultou na extinção do registro. A Acadêmicos do Salgueiro possuía marca mista registrada, porém, por ausência de pedido de prorrogação, o registro foi extinto e a escola aguarda novo pedido em andamento. Esses dados indicam a necessidade de um acompanhamento mais atento ao processo de manutenção das marcas, para evitar prejuízos à proteção jurídica e à consolidação da identidade institucional.

Outras gigantes do grupo especial como a Imperatriz Leopoldinense, a Vila Isabel, a Unidos da Tijuca, a Paraíso do Tuiuti e a recém chegada Unidos de Padre Miguel não possuem proteção jurídica alguma sobre seus signos distintivos.

Por fim, ao analisar o histórico dos pedidos de registro, constatou-se que as iniciativas são relativamente recentes, com a maioria dos registros tendo sido realizados após os anos 2000. Essa temporalidade sugere que a proteção da propriedade intelectual é um tema que ganhou relevância apenas nos últimos anos, refletindo uma evolução na percepção do valor das marcas no contexto cultural e econômico do carnaval carioca.

Os resultados evidenciam, portanto, que, embora as escolas de samba tenham começado a adotar práticas de proteção de marca, há um longo caminho a ser percorrido em termos de conscientização, diversificação e regularização. Investimentos nessa área podem não apenas proteger a identidade das agremiações, mas também criar novas oportunidades econômicas e fortalecer o legado cultural dessas instituições e dessas comunidades.

Potencial do uso das marcas pelas escolas de samba

As marcas das escolas de samba têm um grande potencial econômico ainda pouco explorado por seus titulares. Assim como os clubes de futebol utilizam suas marcas para desenvolver produtos, licenciar uso a terceiros e firmar parcerias estratégicas, as escolas de samba poderiam expandir o uso comercial de suas identidades visuais e simbólicas. No contexto do Carnaval, onde tradição e cultura se entrelaçam com um mercado dinâmico, as marcas podem transcender a função representativa e se tornar ativos essenciais para o crescimento econômico e social.

O licenciamento dessas marcas é uma estratégia promissora, permitindo a criação de produtos temáticos e colaborações criativas com empresas. Um exemplo é a parceria entre a Beija-Flor de Nilópolis e a marca carioca Cosmo Rio, que incorporou elementos da identidade da escola de samba em produtos exclusivos, promovendo a cultura carnavalesca e ampliando o alcance da marca. Iniciativas assim destacam o potencial das escolas de samba como marcas culturais de impacto global, enquanto geram novas receitas para as agremiações. 

O uso estratégico de marcas protegidas também pode beneficiar o ambiente do Carnaval, promovendo maior desenvolvimento para as comunidades envolvidas. A monetização adequada das marcas permite a reinjeção de recursos nas escolas, melhorando as condições de trabalho de artesãos, músicos, costureiros e outros profissionais da cadeia produtiva do Carnaval. Esse desenvolvimento econômico fortalece diretamente as comunidades locais que dependem dessa atividade para sua subsistência. 

Sob o aspecto social, a valorização das marcas por meio da propriedade intelectual desempenha um papel transformador. Além de gerar recursos financeiros, a proteção e o uso estratégico das marcas reforçam a autoestima, o empoderamento e o sentimento de pertencimento das comunidades. Reconhecer a relevância cultural dessas marcas no mercado legitima as comunidades como protagonistas do Carnaval carioca, ampliando sua voz e visibilidade. 

De forma ampla, o fortalecimento das marcas das escolas de samba está alinhado à propriedade intelectual como um direito fundamental. Esse reconhecimento garante relevância às manifestações culturais que integram a identidade de um povo. Assim, a proteção e o uso estratégico dessas marcas não apenas fortalecem o aspecto econômico, mas também contribuem para a cidadania e a preservação do patrimônio cultural brasileiro.

Conclusão

As escolas de samba, enquanto símbolos vivos da cultura brasileira, ainda não têm plena dimensão do imenso potencial de seus bens imateriais, especialmente de suas marcas. Esses ativos, quando adequadamente protegidos e explorados, vão muito além da função representativa: possuem potencial de crescimento econômico e fortalecimento cultural.

O papel dos seus estandartes e de outros símbolos visuais é particularmente relevante nesse contexto. Eles não apenas diferenciam as agremiações, mas também são carregados de histórias e significados que unem suas comunidades. Quem não reconhece imediatamente a águia da Portela? Esses elementos de identidade visual, enraizados no imaginário popular, são motivo de orgulho para as comunidades e refletem o compromisso histórico de preservação cultural. 

As escolas de samba representam a resistência, a criatividade e a força de uma herança cultural que moldou o Brasil. Seu fortalecimento, portanto, é uma forma de valorizar essa origem e consolidar sua importância como patrimônio vivo.

A exploração consciente de bens imateriais pode gerar novas oportunidades econômicas, beneficiar diretamente as comunidades que sustentam o carnaval e reforçar sua autoestima e empoderamento. 

Portanto, reconhecer e proteger as marcas, bem como outros bens intangíveis das escolas de samba significa investir em um Brasil que valoriza suas raízes, que promove o desenvolvimento de suas comunidades e que preserva sua riqueza cultural. Dessa forma, garante-se não apenas o valor das escolas de samba como expressões culturais fundamentais, mas também o impacto transformador que elas exercem nas vidas das pessoas que, com dedicação e paixão, constroem um dos maiores espetáculos culturais do país.

______

BARBOSA, Denis Borges. Proteção das Marcas: Uma Perspectiva Semiológica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: . Acesso em: 16 dez. 2024.

BRASIL. Lei nº 14.599, de 25 de setembro de 2023. Reconhece o samba como patrimônio cultural imaterial do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 set. 2023. Disponível em: . Acesso em: 16 dez. 2024.

BRASIL. Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 ago. 2000. Disponível em: . Acesso em: 16 dez. 2024.

INPI. Base de Dados de Marcas. Disponível em < https://www.gov.br/inpi/pt-br/servicos/marcas>. Acesso em: 17 de dez. De 2024.

INSTITUTO NACIONAL DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL (Brasil). Manual de marcas. 3. ed. Rio de Janeiro: INPI, 2023.

IPHAN. Matrizes do Samba no Rio de Janeiro são registradas como Patrimônio Imaterial do Brasil. 2007. Disponível em: . Acesso em: 16 dez. 2024.

LIESA. Carnaval 2025. Disponível em < https://liesa.globo.com/>. Acesso em 18 de dezembro de 2024.

SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

Indhira Batista Santos Soares

Indhira Batista Santos Soares

Advogada especialista em Propriedade Intelectual, pós-graduada em Direito e Assistência Jurídica pelo CDH da Universidade de Coimbra e mestranda em Propriedade Intelectual e Inovação pela Academia do INPI.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *