Zumbi dos Palmares e o
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Zumbi dos Palmares e o “racismo reverso” – Migalhas

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Um argumento comum daqueles que negam a possibilidade de racismo contra brancos é que, por definição, racismo pressupõe a existência de um sistema estrutural de dominação.

No entanto, essa visão não resiste a um exame mais aprofundado, pois ignora que o poder não é exercido apenas em nível macroestrutural (isto é, nas grandes instituições e estruturas sociais), mas também em microestruturas.

Em paralelo, despreza o fato de que o racismo não é apenas um sistema, mas também um ato contra a dignidade da pessoa humana.

Espaços de poder e atos de hostilização racial

Exemplos marcantes a respeito de microcosmos de poder ocorreram na Faculdade Zumbi dos Palmares, instituição de ensino focada na inclusão da população negra. Um professor relatou um caso emblemático.

Dentro da faculdade, foi criado um observatório de denúncias contra crimes de racismo, em convênio com a secretaria de Justiça de São Paulo.

Certo dia, uma aluna branca procurou a coordenação para relatar que havia sido proibida de entrar na universidade por um grupo de estudantes negros, que a insultaram, dizendo que ela era uma “branca azeda” e que aquele não era o seu lugar. A situação foi tratada com ferramentas de mediação e conciliação, impedindo que escalasse para níveis mais graves.

Naquele lugar, a maioria da direção, dos professores e dos alunos (mais de 80%) é negra. Então, como é da natureza humana, quem detém poder local (ou seja, em seu microcosmo) pode dar azo a uma das faces mais sombrias do ser humano: a opressão e a hostilização de quem é diferente.

Ainda sobre a experiência da Zumbi dos Palmares, um excelente empreendimento e também um ótimo laboratório para analisar o ser humano oprimido quando chega ao poder, outro professor, branco, relata que foi alvo de várias ofensas:

“Apesar de ser branco, o senhor é gente boa!”; “O branquelo está fazendo o que aí na fila?” (dia em que foi comprar um lanche e estava na fila da cantina); “A aula do senhor é boa, mas esse conteúdo tem que ser trocado para uma matriz africana. Não é possível um branco com conteúdo programático de branco. Vou falar com o coordenador!”, etc.

Ele também conta que observou uma aluna branca chorando na primeira fileira, uma menina jovem, de uns 19 anos de idade. Ele perguntou o que houve, e ela disse: “Fui cercada no banheiro por várias alunas que me ameaçaram e disseram que aqui não é lugar de branquela!”.

Como já foi dito, “sem educação, o sonho do oprimido é ser o opressor”. Acrescento: com educação identitária e ideológica, o efeito é o mesmo. Tão logo tenha poder para isso, o que ocorre em seus espaços de poder, o oprimido ama oprimir. 

Esses episódios evidenciam que o racismo pode se manifestar em diferentes direções, a depender do contexto social e das dinâmicas de poder locais.

Logo, ainda que o racismo tenha raízes históricas profundas, ele também se manifesta como um ato individual e concreto, o que não pode ser relativizado.

Imagine, por exemplo, um jovem negro, forte fisicamente, que cresceu ouvindo que os brancos são seus opressores e que é justo  “dar o troco” por séculos de escravidão. Se ele encontra uma mulher branca, franzina, dentro de um elevador, a tese de que “ele não pode ser racista porque não tem poder estrutural” se esvazia completamente diante da realidade concreta: ali, naquele espaço, ele tem o poder e pode praticar um ato racista, opressor e violento.

A decisão recente do STJ envia uma mensagem errada para a sociedade. Ela caminha em sentido oposto à Declaração Universal dos Direitos Humanos, à Constituição Federal e ao decreto 10.932/22 (tratado internacional). O art. 20-C da lei 7.716 e o julgamento com perspectiva de raça violam a Constituição Federal.

Mais que tudo, a decisão – mesmo sem essa intenção – na prática abre espaço para o exercício de ódio arbitrário, aleatório e indiscriminado contra brancos. É um “cheque em branco” para ataques raciais.

Ou será, talvez, um cheque em preto? Ou aos pretos? Será que essa verdadeira autorização para hostilizar brancos trará algum benefício para a sociedade? A intenção da Corte foi boa, mas o efeito não será.

Retrocesso

Além da inutilidade da decisão para beneficiar os pretos, salvo os que querem revanche, e do efeito perverso de ampliar conflitos, temos uma questão objetiva:  a norma penal em tela não foi criada para proteger uma única raça, mas sim a dignidade da pessoa humana.

Nos debates contemporâneos sobre racismo, tornou-se comum a afirmação de que racismo é um sistema e que, por essa razão, apenas grupos historicamente dominantes poderiam ser racistas. Essa visão, no entanto, ignora um aspecto essencial: o racismo não é apenas um sistema, mas também um ato – e um ato que viola a dignidade humana, independentemente de quem seja sua vítima.

O tipo penal é “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional”. Não se pode produzir uma exclusão de proteção legal. Não se pode mentir dizendo que uma injúria obviamente racial não é. racial. Isso escamoteia o problema racial e adota tese identitária sem respaldo na Carta Magna.

A injúria racial hoje prevista na lei diz respeito a um FATO, ou seja, alguém pratica um comportamento que ofende a dignidade ou decoro em razão de raça, cor etc. A lei não define qual cor, a lei não exclui quem é de uma “maioria” e, pasmem, a cor “branca” é uma cor. 

O STJ está, na prática, legislando e excluindo 44% dos cidadãos brasileiros da proteção da norma.  A previsão do crime de racismo é uma conquista civilizatória.

A igualdade entre os seres humanos é um direito fundamental de primeira geração. Caminhamos a passos largos para a Idade Média, desprezando os avanços dos direitos fundamentais, apenas invertendo quem deixa de ser considerado humano para fins de proteção da sua dignidade. 

O princípio da vedação do retrocesso deve ser evocado. Se nem mesmo uma emenda constitucional pode excluir garantias individuais, como o Judiciário imagina poder fazê-lo?

Alem do art. 5°, vale citar o art. 19 da Constituição Federal, que estabelece restrições à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios quanto a determinadas práticas, entre elas  a vedação à criação de distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

Prejudicando os pretos

Além da  questão de justiça e equidade, é válido indagar: essa permissão para hostilidade racial vai ajudar em quê? O que se ganha ao permitir que sejam destilados aleatoriamente ressentimentos atuais e históricos? Em que ela melhora a condição socioeconômica dos pretos?

A resposta é clara: em nada. Isso também não reduzirá o racismo contra os negros, ao contrário. Essa postura só vai aumentar rixas, ressentimentos e radicalizações.

O pior é que esse ambiente de hostilidade não apenas retroalimenta o racismo como um todo, mas também prejudica principalmente a própria população negra. Historicamente, quem sempre sofreu mais com o racismo? Os negros. São eles que, ao longo dos séculos, enfrentaram a escravidão, a segregação, a marginalização e a brutalidade.

Ao transformar o combate ao racismo em uma guerra de tribos, em  revanche privada chancelada pelo Judiciário, estamos apenas intensificando um ciclo que continuará afetando principalmente os mais vulneráveis.

A construção de um país mais justo e igualitário não passa por inverter os polos da discriminação. Passa por romper com a lógica do ódio e pela criação de uma sociedade onde nenhuma pessoa – negra, parda, branca ou de qualquer outra origem – precise conviver com medo, hostilidade ou perseguição racial.

Conclusão

Realmente, “não existe racismo reverso”, mas por outra razão: é tudo racismo. A tentativa de redefinir racismo para excluir determinados grupos da possibilidade de serem vítimas apenas reforça divisões e injustiças.

O racismo é abominável sob todas as perspectivas, e seu combate deve ser universal. Microssistemas de opressão existem e podem se manifestar em qualquer ambiente onde um grupo se veja como dominante sobre outro, ainda que em uma escala reduzida.

A solução não está em fomentar ressentimentos ou relativizar atos racistas com base em uma estrutura histórica, mas sim em promover um combate intransigente ao racismo em todas as suas formas.

Se queremos um futuro onde negros, pardos e brancos possam caminhar lado a lado, precisamos rejeitar qualquer forma de hostilização racial. Como disse Martin Luther King Jr., a escuridão não pode expulsar a escuridão; apenas a luz pode fazer isso. O ódio não pode expulsar o ódio; só o amor pode fazer isso.

A nossa Constituição Federal, desde seu preâmbulo, aponta a opção pela fraternidade. Acolher teses que querem legalizar racismos de estimação é dar marcha à ré na luta contra a cultura do racismo. Aqui, boas intenções não bastam: ou há proteção contra a hostilização racial para todos, ou acabou, de fato, a isonomia.

William Douglas

William Douglas

Professor de Direito Constitucional.

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