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O direito à identidade é um direito fundamental da pessoa humana, e, no âmbito do Direito Civil, o direito ao nome apresenta-se como um dos direitos da personalidade expressos em nosso ordenamento, sendo considerado um direito básico de toda a criança pela Convenção sobre os Direitos da Criança, da qual o Brasil é signatário. O nome civil é tão importante em razão de ser o sinal distintivo que identifica e individualiza a pessoa. É intrínseco à natureza humana, mostrando-se o elo do indivíduo com a família, com sociedade e com o Estado.
O nome da pessoa natural está marcado por um duplo aspecto: público e privado. Do ponto de vista público, o nome corresponde à necessidade de se particularizar e distinguir cada uma das pessoas das demais, sendo obrigatório seu uso e restritas as hipóteses de alteração. Já do ponto de vista privado, o nome é um direito fundamental da pessoa humana, personalíssimo e intimamente relacionado com a sua dignidade e identidade, conquanto seja o signo que a representa e identifica perante a família e a sociedade1.
A certidão extraída do registro de nascimento é o documento base para a obtenção de todos os demais documentos e da vida civil e protege aspectos inerentes à dignidade da pessoa humana, como direito à identidade e filiação, entre outros. Especificamente sobre o nome, o senso de reconhecimento que esse sinal designativo traz, permite que a pessoa vivencie sua identidade, impactando na sua relação consigo mesma e com terceiros.
Por motivos óbvios, nas condições padrão não é o próprio titular do nome que o escolhe no momento de seu registro de nascimento2. Essa tarefa incumbe ao declarante do nascimento, revestindo-se de direito e dever de atribuir o nome à pessoa natural3. Grande parte da doutrina trata a escolha do nome como um ato dos pais, que seriam, via de regra, os representantes legais do registrando recém-nascido. Leonardo Brandelli defende que o “direito de pôr o nome é ínsito aos pais, sendo esta a regra geral quando do nascimento de alguém”.4
Tamanha a importância do direito dos pais escolherem o nome dos filhos que a lei 14.382/23 inovou em nosso ordenamento, conferindo na nova redação do art. 54 § 4º da lei de registros públicos – lei 6.015/73, trazendo prazo de 15 dias do registro para que os pais, em unanimidade, alterem o nome aposto à criança, seja no caso de o declarante não tenha observado o que por eles foi direcionado ou simplesmente optem por nome diverso, nos seguintes termos:
Em até 15 dias após o registro, qualquer dos genitores poderá apresentar, perante o registro civil onde foi lavrado o assento de nascimento, oposição fundamentada ao prenome e sobrenomes indicados pelo declarante, observado que, se houver manifestação consensual dos genitores, será realizado o procedimento de retificação administrativa do registro, mas, se não houver consenso, a oposição será encaminhada ao juiz competente para decisão.
Trata-se, portanto, da primeira oportunidade, na via extrajudicial, para alteração do prenome em nosso ordenamento jurídico.
Pela redação original do art. 56 da lei 6.015/73, após a aposição do prenome no momento do registro de nascimento a próxima – e última, possibilidade de alteração imotivada do prenome era a manifestada no primeiro ano após a maioridade, ou seja, apenas quando o indivíduo completasse 18 anos de idade. Ultrapassado esse prazo, a alteração só poderia ser efetivada judicialmente.
A recente alteração realizada pela lei 14.382/22 no conteúdo da lei 6.015/73 manteve essa possibilidade de alteração imotivada, porém, ampliou de forma considerável este direito por excluir o prazo decadencial, ou seja, tornou possível a alteração imotivada do prenome pela via extrajudicial a qualquer tempo uma vez atingida a maioridade civil. Já como forma de equilibrar a autonomia da vontade privada com a segurança jurídica inerente à estabilidade representada pelo nome, tendo-se em vista a importância do nome para além do indivíduo, o legislador permitiu que referida alteração seja realizada apenas uma vez na via extrajudicial.
A atualização legislativa privilegiou a autonomia da vontade do registrado, justamente porque reconheceu a força do nome na vida da pessoa natural, passando a permitir que o próprio titular realize uma escolha, seja no sentido de manter-se inerte e continuar ostentando o nome escolhido no momento do seu registro de nascimento, seja optando por alterá-lo.
O procedimento de alteração de prenome foi regulamentado pelo provimento 153/23 do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, que inseriu o capítulo V-A no CNN/CN/CNJ-Extra – Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial.
Vale mencionar que a possibilidade de alteração de prenome recentemente introduzida em nosso ordenamento, não transformou a alteração do nome em um direito absoluto, imune às regras do Direito. É necessária a observância da legalidade e é justamente a atuação ímpar do oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais que confere concretude à autonomia da vontade e à observância dos limites legais.
Neste contexto, o oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, verificando hipóteses que extrapolem o permitido pelo ordenamento jurídico brasileiro, tem o dever de recusar fundamentadamente ao usuário. Para os casos de recusa por parte do oficial, se o usuário não se conformar com os motivos apresentados, pode solicitar que o caso seja submetido à análise do juiz corregedor permanente. Estas decisões proferidas em âmbito administrativo são observadas como precedentes5, auxiliando os oficiais na análise de casos análogos, sempre atuando com a independência jurídica que pauta a atividade extrajudicial.
Nesse sentido, passamos a uma breve análise das decisões da 2ª vara de Registros Públicos da Comarca da Capital do Tribunal de Justiça de São Paulo neste ano de 2024.
Na primeira que se comenta, publicada em 17 de janeiro de 2024, no pedido de providências 1165832-59.2023.8.26.0100, foi analisado o óbice imposto pelo senhor oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais do 9º Subdistrito – Vila Mariana, Capital, no tocante à pretensão de inclusão pelo registrado de prenome “DON”, que facilmente seria confundido com o título honorífico “DOM”, historicamente utilizado antes do nome dos monarcas e o dos membros do alto clero e da nobreza, de modo que não seria facilmente identificado como prenome6.
Nesse enfoque, a referida decisão demonstra que deve ser observado como limite eventuais prejuízos a terceiros, especificamente no tocante a não acarretar dúvidas de tratar-se efetivamente de um prenome aquele escolhido pelo registrado.
Na mesma toada, a referida decisão trouxe, ainda, a impossibilidade de escolha de prenomes que facilmente seriam confundidos com nomes de família, visto tratar-se comumente de patronímicos, não encontrando fundamento na linha ascendente do registrado.
Nesse sentido, observa-se o seguinte trecho da r. decisão:
Nesse aspecto, dentro do já narrado, destaco que há clara diferenciação entre prenome e sobrenome, que exercem função legal de caráter não só individual, mas de interesse do Estado, na identificação de seus cidadãos. Daí porque a inclusão de patronímico familiar como prenome não é possível, bem como que a inclusão de sobrenome não lastreado em ascendência comprovada, também não o é. Destaco que não se cuida aqui da negativa de direito fundamental ao nome, mas sim da proteção do interesse do Estado na correta, concreta e coerente identificação de seus cidadãos. A alteração do nome do interessado não se cuida de interesse puramente particular. O nome, conforme o define o Código Civil, é direito da pessoa natural, sendo intransmissível e irrenunciável. É o nome da pessoa natural que a distingue na sociedade e a individualiza perante o Estado, permitindo oponibilidade diante deste e do outro. Todavia, o direito ao nome e suas relações dependentes, inter partes e em face do Estado, não pode ser exercido, em nossa sociedade de Direito, sem que tenha havido prévio registro público. (2VRPSP – Pedido de Providências: 1165832-59.2023.8.26.0100 Localidade: São Paulo. Data de Julgamento: 17/1/24. Data DJ: 17/1/24)
Em outra decisão, tratando sobre inclusão de patronímico como prenome, verificou-se a impossibilidade nos autos do pedido de providências 0018731-98.2024.8.26.0100, que analisou o óbice imposto por Registradora Civil de Subdistrito da Capital-SP quanto à inclusão de “Von Cobachuck” como parte do prenome da registrada, salientando que o termo em questão seria patronímico familiar, não se tratando, portanto, de alteração para prenome composto. Além do mais, ficou estabelecida a impossibilidade de sua inclusão como nome de família uma vez que não comprovado que tal sobrenome encontra-se na linha familiar ascendente da registrada.
Outra alteração que se verifica impossibilitada e que foi analisada recentemente pela 2ª vara de Registros Públicos da Comarca da Capital, refere-se à inclusão de agnome como prenome.
Segundo Flávio Tartuce, agnome é um elemento do nome que “visa perpetuar um nome anterior já existente (Júnior, Filho, Neto, Sobrinho)”7. Para Andreia Gagliardi, Marcelo Salaroli e Mario Camargo, “o agnome destina-se a individualizar duas pessoas da mesma família cujos nomes completos sejam idênticos”8.
Nesta decisão a d. juíza relatora, dra. Letícia de Assis Brüning, proferida nos autos do pedido de providências 1153582-57.2024.8.26.0100, de 02/10/2024, manteve a negativa do oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais no pedido de alteração do nome do recém-nascido, nos termos do art. 55, §4º da lei de registros públicos, para inclusão do agnome “Júnior” como prenome.
Expõe a r. decisão que:
Pois bem. Embora particular e íntima, a vontade dos genitores não pode confrontar as regras da língua portuguesa, as normas, a praxe jurídica e usos e costumes vigentes, tampouco pode ser justificada pela flexibilidade das normas ou uso incorreto e divergente das qualificações. Nesse mesmo sentido, “Júnior” não se trata de nome, com o fim de formar um prenome composto, e não se insere na linha de ascendência da família, de modo a ser identificado como patronímico. Os agnomes são utilizados para distinguir os nomes de ascendentes e descendentes, a fim de que os integrantes da mesma linhagem não possuam nomes idênticos, para evitar homonímia (conf., p.ex., art. 515- B, §7º, do CNN-CN-CNJ). Com efeito, não se cuida de mero adereço, mas sim do esforço para a correta identificação dos indivíduos.(2VRPSP – Pedido de Providências: 1153582-57.2024.8.26.0100. Localidade: São Paulo Data de Julgamento: 2/10/24 Data DJ: 2/10/24)
Destaca ainda que “em que pese a autonomia da vontade, a nomeação dos indivíduos segue regramentos específicos, haja vista o interesse público na identificação da pessoa natural”, o que demonstra a possibilidade de aplicação do referido entendimento na interpretação da norma descrita no art. 56 da lei 6.015/73, uma vez que trata da alteração de prenome calcada na autonomia da vontade do seu titular.
Ante todo o exposto, observa-se que, embora a alteração de prenome seja uma efetiva garantia ao titular, uma vez ser o nome direito da personalidade, respeita-se a autonomia privada do indivíduo, sem deixar de ser elemento de grande segurança na identificação da pessoa natural perante a sociedade.
Exatamente com base na segurança jurídica, pilar da atividade registral9 é que estas questões de alteração de prenome devem ser analisadas, pautando-se tanto nas decisões administrativas, mas, também nos princípios e orientações legais e normativas10 de modo a proteger a pessoa humana em sua dignidade e direitos.
Esta integral proteção é garantida em cada atuação do oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, uma vez que, cumprindo a possibilidade legal e os procedimentos normativos, age de modo que a extrajudicialização garanta liberdade para que a pessoa natural escolha o nome que ostentará de forma segura, com a publicidade necessária e o devido respeito aos limites legais que permeiam este tema.
1 Gagliardi, Andreia Ruzzante; Oliveira, Marcelo Salaroli de; Camargo Neto, Mario de Carvalho; coordenado por Cassettari, Christiano. Registro Civil das Pessoas Naturais [recurso eletrônico] – (Coleção Cartórios). 6. ed. – Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2024; 600p.; ePUB.
2 Uma vez que a regra é o registro de nascimento em 15 dias pós parto, a criança absolutamente incapaz depende de representação.
3 Lei 6.015/73, art. 54. O assento do nascimento deverá conter: 4º) o nome e o prenome, que forem postos à criança. Localizado no endereço eletrônico .
4 Gagliardi, Andreia Ruzzante; Oliveira, Marcelo Salaroli de; Camargo Neto, Mario de Carvalho; coordenado por Cassettari, Christiano. Registro Civil das Pessoas Naturais [recurso eletrônico] – (Coleção Cartórios). 6. ed. – Indaiatuba, SP : Editora Foco, 2024; 600p.; ePUB.
5 Neste sentido, Valmir Pontes Filho leciona: “Mas também acontece, é verdade, na ocasião em que a autoridade estatal, na esfera administrativa, também é levada a pronunciar-se oficialmente, embora essa sua atividade interpretativo/aplicativa do Direito seja sempre sindicável pelo Judiciário5. Isto se dá, com enorme freqüência, no âmbito da Administração Pública, quando se instauram processos administrativos de diversas naturezas (disciplinares, licitatórios, tributários etc), em que há ritos e procedimentos a serem seguidos e nos quais se deve obediência estrita às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. A decisão formalmente tomada em tais processos (numa Câmara de Recursos Tributários, por exemplo), é o resultado do exercício de uma jurisdição administrativa, vale dizer, aquela que não tem caráter de definitividade, característica própria das decisões judiciais (que pressupõe o exercício da jurisdição propriamente dita). Ainda, porém, que possa ser sindicável pelo Judiciário (e eventualmente por este anulada ou declarada nula), tal decisão administrativa, enquanto não desconstitída pelo Poder Judiciário, tem força vinculante perante a própria Administração, sendo de cumprimento obrigatório por todos os seus agentes.”. Disponível em: . Acesso em 23 out. 2024
6 2VRPSP – Pedido de Providências: 1165832-59.2023.8.26.0100 Localidade: São Paulo. Data de Julgamento: 17/1/24. Data DJ: 17/1/24.
7 Tartuce, Flávio. Manual de direito civil : volume único. 13. ed. – Rio de Janeiro : Método, 2023.
8 Gagliardi, Andreia Ruzzante; Oliveira, Marcelo Salaroli de; Camargo Neto, Mario de Carvalho; coordenado por Cassettari, Christiano. Registro Civil das Pessoas Naturais [recurso eletrônico] – (Coleção Cartórios). 6. ed. – Indaiatuba, SP : Editora Foco, 2024; 600p.; ePUB.
9 Lei 8.935/94, art. 1º. Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.
Fabiane Queiroz Mathiel Dottore
Mestre em Direito pelo Centro Universitário Fieo – UNIFIEO. Pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Gama Filho. Pós-graduada em Direito Notarial e Registral pela Faculdade Arthur Thomas em convênio com o Instituto Brasileiro de Estudos. Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabeliã de Notas do Município de Biritiba Mirim-SP. Pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Gama Filho.
Mayra Zago de Gouveia Maia
Mestre em Direitos Humanos pelo Centro Universitário FIEO – Unifieo. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – SP. Pós-graduada em Direito Civil pela Universidade Gama Filho; Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho. Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas da Sede da Comarca de Socorro – SP.
Christiane Gonzalez Hepner
Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas da Sede da Comarca de Carapicuíba – SP. Aprovada em concurso público de outorga de delegações notariais e registrais do TJSP e TJRJ desde 2013. Pós-graduada em Direito de Família e Sucessões e em Direito Notarial e Registral. Professora e palestrante.