CompartilharComentarSiga-nos no A A
“Temos dito e repetido que as palavras guardam o segredo do seu significado.” Miguel Reale
I – Contradictio in terminis
No clássico Lições Preliminares de Direito,1ao discorrer sobre a “(…) estrutura das normas éticas (…)” e ressaltar a importância de “(…) a norma explicitar o que deve ser feito e como se deve agir (…)”, Miguel Reale enfatiza: “(…) as palavras guardam o segredo do seu significado.”2
O que o nosso jusfilósofo quis dizer?
Quis dizer que as palavras, usadas pelo legislador na formulação de regras de conduta e, em especial, na designação de institutos jurídicos, devem ser fiéis, sempre que possível, às suas origens, mantendo íntegro o sentido comum e intocada a acepção tradicional, sob pena de violarem a sua essência, embora, é consabido, que as palavras podem sofrer pequenas ou grandes alterações ao longo do tempo3 ou permanecer intocadas, expressando sempre a mesma ideia,4 como se dá com “sociedade”.
Longe de me considerar um purista da língua, mas infenso à deturpação do significado de um vocábulo assaz conhecido e empregado, diuturnamente, durante décadas, sem discussão/objeção/censura, por especialistas e leigos, deploro as inovações inúteis, mudar o que é de evidência palpável.
Aprendi, lendo e relendo Rui, que a elaboração das leis é um “terreno escabroso e esmarrido”,5 que os “jurisperitos” devem empenhar-se para “que o projeto (no caso, o “Projeto de Código Civil”) lhes saia das mãos sem a menor mácula de linguagem”,6 que “as codificações não devem menos à forma, que se lhes imprime, do que ao espírito, que se lhes sopra”.7
Se, para o príncipe dos advogados brasileiros, o legislador não pode “descurar o lavor literário”,8 não pode negligenciar os aspectos linguístico e semântico das palavras e frases, não pode fazer uso de expressões com significados incompatíveis entre si, o Poder Legislativo deveria ter substituído “empresa individual” por “empresa unipessoal” e não por “sociedade unipessoal”, eis que, etimologicamente, sociedade, do latim societas, significa associação, aliança, parceria, colaboração entre duas ou mais pessoas, e socius, companheiro, aliado, associado, parceiro,9por conseguinte, quando dois ou mais socius se unem para consecução de um fim comum, criam uma societas, razão pela qual “sociedade unipessoal” é um paradoxo, uma contradição em termos, não obstante empregada por leis de diversos países, inclusive a CEE,10 o que não abona, por si só, o uso entre nós.
II – O caos na “troca” de empresa individual por sociedade unipessoal
O “Código Beviláqua” e o CC/02 não trataram da SLU – sociedade limitada unipessoal, ou empresa limitada unipessoal, ou EIRELI – empresa individual de responsabilidade limitada.
Embora muitos países já a houvessem incorporado ao seu Direito Positivo, somente em 2011, a lei 12.441 (art. 1º) criou a EIRELI, ao acrescentar o inciso VI ao art. 44, e a regulou, ao acrescentar o art. 980-A, título I-A, livro II, da parte especial, ambos do CC em vigor.
O Poder Executivo, ao constatar, oito anos depois, que era indispensável deixar patente que o fundador da EIRELI não deveria responder pelas dívidas sociais, editou a MP 881/19, convertida na lei 13.874/19, conhecida como lei da liberdade econômica, para acrescentar o § 7º ao art. 980-A, e, ainda, os §§ 1ºe 2º ao art. 1052.
Em 2021, a lei 14.195, no art. 41, transformou a EIRELI em SLU e, menos de um ano depois, a lei 14.382/22, art. 20, VI, (a), revogou o inc. VI do caput do art. 44, do CC e, no art. 20, inc. VI, (b), revogou o título I-A do livro II da parte especial do CC.
Embora a empresa unipessoal tenha sido imaginada e estudada, em 1895, por Karl Wieland, na Suíça,11 o Brasil – somente após mais de um século – incorporou-a, com absurdo atraso, ao Direito Positivo, para, após remendada, mais de uma vez, ser extinta apenas onze anos após a sua promulgação.
Diz-se que a revogação do inc. VI do art. 44 e do art. 980-A, ambos do CC, ocorreu porque:
Tais objeções não deveriam ter acarretado o desaparecimento da EIRELI, mas levar à alteração do art. 980-A, caput, e do seu par. 2º, nem, tampouco, deveria o legislador utilizar a operação chamada “transformação involuntária por força de lei”, por ela ser prenhe de dúvidas e controvérsias.12
__________
1 Saraiva,1984.
2 Ob. cit., p. 36.
3 Vilão significava camponês, hoje, individuo perverso; bicho, qualquer ser vivo, inclusive plantas, hoje, significa animais; mulher, esposa ou senhora da casa, hoje, ser humano do sexo feminino; negócio, atividade ou ocupação, hoje, atividades comerciais e industriais.
4 Casa, mar, paz, lua, fogo, sempre com o mesmo sentido.
5 Réplica, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980, p. 11.
6 Ob. cit., p. 13
7 Idem, p. 25
8 Ibidem, p. 24.
9 Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha, Lexikon, 1986, p. 730.
10 Meu estudo Empresa Unipessoal De Responsabilidade Limitada, in Direito Empresarial contemporâneo, coord. Drs. Adalberto Simão Filho e Newton de Luca, 2004, 2ª ed.
11 Estudo cit., p.
12 Vide Modesto Carvalhosa, Comentários à LSA, Saraiva, 4ª. ed., 4º. vol., tomo I, pags. 191 e segs.
Jorge Lobo
Jorge Lobo, sócio titular do Jorge Lobo Advogados, é ex-Procurador de Justiça (MPRJ), Doutor e Livre Docente em Direito Empresarial, autor de 10 livros, especialista em soluções jurídicas estratégica