A responsabilidade penal nas fraudes contra os planos de saúde   Migalhas
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A responsabilidade penal nas fraudes contra os planos de saúde – Migalhas

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A palavra fraude, segundo o dicionário1, significa engano, burla, logro. 

As fraudes praticadas contra as operadoras de saúde, hodiernamente, têm sido algo recorrente. Dentre as fraudes podemos destacar o reembolso assistido, que, basicamente, funciona da seguinte forma: ao contratar um plano de saúde o beneficiário espera ser plenamente atendido. No entanto, isso não ocorre, seja por questões burocráticas, seja pela falta de profissionais na rede credenciada, por exemplo. Diante disso, para que a prestação continuada de serviços seja, de fato, válida, pode o segurado ser atendido em local não credenciado e/ou submeter a procedimento não coberto e, ao final, solicitar ao plano de saúde o reembolso dos valores despendidos, desde que previsto no contrato avençado com a operadora. Ampliando assim os direitos previstos no art. 12, inciso VI, da lei 9.656/19982.

Com o avanço tecnológico, visando eficiência e rapidez, o reembolso pode ser solicitado através de aplicativo no celular ou página da internet, por meio de envio do recibo de pagamento ou nota fiscal e relatório de prestação do serviço realizado, nos quais informam os valores das consultas e os procedimentos realizados. 

Ocorre que nesse procedimento, aparentemente simples, há pessoas, que de posse do login e senha do beneficiário, utilizam-se de informações falsas para burlar e enganar as operadoras de saúde, solicitando o reembolso de valores de procedimentos que sequer foram realizados e com isso obter, de forma indevida, valores que podem ser vultosos. 

Diante disso, o ordenamento jurídico não ficaria alheio a tal prática, uma vez que é inadmissível utilizar-se da fraude para obter vantagem, pois há violação do bem jurídico patrimônio. Sendo necessária a intervenção do Estado por meio da aplicação do Direito Penal, com base no princípio da lesividade.

Logo, se o agente, visando obter valores, de forma indevida, procurando enganar a vítima, utilizando-se de meios fraudulentos, por meio de informações inverídicas, estará cometendo a famigerada figura típica do estelionato, prevista no art. 171 do CP:

 “Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa”

Cumpre informar que na conduta prática pelo agente, para configurar ilícito penal, imprescindível a figura do dolo ab initio, ou seja, uma premeditação para conduta, aliada a gravidade do dano, consistente na razão determinante para a prática ilícita. Em outras palavras, há um planejamento para enganar desde o início, induzindo ou mantendo a vítima em erro, alterando a percepção da realidade dos fatos e a impeça que descubra o equívoco e, assim, obter vantagens, que podem consistir em valores indevidos e exorbitantes, levando ao prejuízo, e, por consequência, uma significativa perda patrimonial (dano emergente) ou diminuição de receitas econômicas (lucro cessante). 

Insta salientar, caso a conduta estelionato, além de reiterada, se for praticada no mesmo local, em dias e horários próximos, nas mesmas circunstâncias e com mesmo modus operandi (maneira da execução), obtendo, mediante meio fraudulento, vantagem ilícita patrimonial de forma contínua, pode ser aplicado o instituto do crime continuado, previsto no art. 71 do CP: 

Art. 71 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, prática dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplicasse-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

Considerando que na prática ilícita do estelionato, o agente utiliza-se de documentos falsos e/ou informações inverídicas para obter a vantagem patrimonial indevida, o que poderia, conjuntamente, configurar os crimes dos arts. 299 e 304, do CP. Entretanto, a documentação falsa é fase de execução do delito de estelionato, conforme o princípio da consunção. Nesse sentido Cezar Roberto Bittencourt dispõe: “Em termos bem esquemáticos, há consunção quando o fato previsto em determinada norma é compreendido em outra, mais abrangente, aplicando-se somente esta3.” 

Além disso, o referido princípio da consunção está sedimentado na jurisprudência, de acordo redação da súmula 17 do STJ: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido.” 

Portanto, na conduta perpetrada de reembolso assistido, não pode o agente ser responsabilizado pelos crimes de falsidade documental, uma vez que a figura do estelionato abrange a falsidade.

No que concerne a tentativa do crime, esta pode perfeitamente ocorrer pela ocorrência de fatos não previsíveis, os quais impossibilitam a consumação, como por exemplo, os procedimentos realizados serem informados para a operadora, no entanto, não há pagamento, pois percebe-se, de plano, a fraude, de acordo com a inteligência do art. 14 do CP: 

Art. 14 – Diz-se o crime:

II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

Necessário informar que se o erro não for capaz de ludibriar, e por consequência, levar a vítima a erro, não há que se falar em crime do art. 171 do CP, como por exemplo, envio da documentação em branco solicitando o reembolso, sem qualquer informação do paciente e o procedimento a qual fora submetido, o que impede qualquer tipo de análise. Nesse diapasão, Guilherme de Sousa Nucci aduz:

“A utilização de mecanismos grosseiros de engodo não configura o crime, pois é exigível que o artifício, ardil ou outro meio fraudulento seja apto a ludibriar alguém.4”

Por conseguinte, ao induzir os pacientes, que também são considerados consumidores, a uma falsa percepção da realidade, enganando-os sobre o serviço utilizado, o agente, além do estelionato previsto no CP, pode ainda ser responsabilizado, em concurso de crime material5, com infração penal contra a relação de consumo, conforme preceitua no art. 7º, inciso VII da lei 8.137/90:  

“Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo:

VII – induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço, utilizando-se de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária;

Pena – detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.”

No concurso material, diante das inúmeras condutas ilícitas praticadas, tem se resultados diversos, para ao final, somar as penas de todos os delitos. Não sendo tão benéfico para o agente.  

No que concerne a questão processual, cumpre informar que o estelionato é crime de ação penal pública condicionada à representação, conforme preceitua a norma hibrida prevista no § 5º do art. 171, do CP6. 

A representação da vítima é imprescindível para a persecução penal. Sendo condição de procedibilidade, uma vez que sem ela, não pode o Estado apurar7 e, por consequência, julgar a conduta praticada8. 

Evidentemente que a representação das operadoras de planos de saúde deve ocorrer por meio de seus representantes legais, por se tratar de pessoa jurídica, podendo ainda ser por meio de advogado, conforme redação do art. 39 do CPP: 

Art. 39. O direito de representação poderá ser exercido, pessoalmente ou por procurador com poderes especiais, mediante declaração, escrita ou oral, feita ao juiz, ao órgão do Ministério Público, ou à autoridade policial.

Cumpre ressaltar, que acerca das condutas consideradas típicas e ilícitas mencionadas acima, necessário que a persecução penal seja realizada com base no princípio do devido processo legal9. Isto significa que as infrações penais devem ser apuradas previamente, por meio da uma investigação imparcial e minuciosa, realizada pela autoridade policial10, para alcançar um juízo de probabilidade11 e, assim, disponha ou não, de elementos para subsidiar eventual ação penal. 

Já na fase processual, observando continuamente os princípios do contraditório, ampla defesa12 e demais atrelados, superadas todas as etapas processuais, deverá o magistrado, com base no juízo de certeza, proferir uma sentença penal condenatória13 ou absolutória14 (absolvição).

Se a sentença for condenatória, além da pena cominada, deverá, ainda, constar o valor mínimo para reparação, decorrentes do crime15 e após o trânsito em julgado, poderá ser executada no juízo cível16. 

Diante da colisão entre a indisponibilidade de liberdade e a proteção do Estado ao patrimônio, que são direitos antagônicos, imprescindível a instauração da persecução penal, a fim de apurar os delitos que podem ou não terem sido cometidos, para culminar com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória ou absolutória e, assim, no caso concreto, um dos direitos será considerado justo e perfeito. 

_________

1 Minidicionário Soares Amora da língua portuguesa / Antônio Soares Amora. – 19ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2009. p. 329.

2 Art. 12.: …

VI – reembolso, em todos os tipos de produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nos limites das obrigações contratuais, das despesas efetuadas pelo beneficiário com assistência à saúde, em casos de urgência ou emergência, quando não for possível a utilização dos serviços próprios, contratados, credenciados ou referenciados pelas operadoras, de acordo com a relação de preços de serviços médicos e hospitalares praticados pelo respectivo produto, pagáveis no prazo máximo de trinta dias após a entrega da documentação adequada; 

3 Tratado de direito penal: parte geral v. 1 / Cezar Roberto Bittencourt. – 25.ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 268.

4 Manual de direito penal :  parte geral :  parte especial / Guilherme de Souza Nucci. – 6. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 756.

5 Art. 69 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido.

6 Art. 171: …

“§ 5º Somente se procede mediante representação, …”

7 Art. 5o  Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:

§ 4o  O inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá sem ela ser iniciado 

8 Art. 24.  Nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.

9 CF: Art. 5º:…

“LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”

10 Lei 12830:

Art. 2º :

“§ 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.”

11 Lei 12830: 

art. 2º: 

§ 6º O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.

12 Art. 261.  Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor.

13 Art. 387 do CPP. 

14 Art. 386 do CPP. 

15 “Art. 387.  O juiz, ao proferir sentença condenatória:  

IV – fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido;” 

16 Art. 63.  Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.

Parágrafo único.  Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso iv do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido.

Luiz Cezar Yara

Luiz Cezar Yara

Advogado Coordenador do escritório Almeida Santos Advogados.

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