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Em julho de 2024, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, o STF julgou a ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1.011/PE, trazendo clareza sobre a legitimidade processual ativa na execução de sanções de débitos e multas impostas pelos Tribunais de Contas a agentes públicos municipais.
A base argumental do voto condutor do acórdão da Suprema Corte fundamentou-se na premissa interpretativa advinda do art. 71, inciso VIII combinado com o §3º da CF/881, que distingue duas modalidades de responsabilidade financeira imputáveis a agentes públicos em geral, quais sejam: (i) a de natureza «reintegratória», relacionada à reposição de recursos públicos, objeto de desvio, pagamento indevido ou falta de cobrança ou liquidação nos termos da lei, configuradora de “débitos” oriundos de danos causados ao erário e; (ii) de outro lado, a de natureza «sancionatória», consistente na aplicação de sanção pecuniária aos responsáveis em razão de determinadas condutas previstas em lei, inclusive a multa proporcional ao dano ao erário identificado.
A partir de tais distinções, é possível detectar os seguintes agrupamentos de sanções patrimoniais imputáveis a título de responsabilização: (a) imposição do dever de recomposição do erário, também intitulado, por alguns, de imputação de “débito”; b) multa proporcional ao dano causado ao erário/”débito”, que decorre diretamente – e em razão – do prejuízo infligido ao patrimônio público; e (c) multa simples, aplicada em razão da inobservância de normas financeiras, contábeis e orçamentárias, ou como consequência direta da violação de deveres de colaboração (obrigações acessórias) que os agentes fiscalizados devem guardar em relação ao órgão de controle.
O STF estabeleceu, por fim, que as sanções relacionadas à prática de atos lesivos ao patrimônio público causadores de danos ao erário municipal (“débitos”) juntamente com a sanção pecuniária de multa proporcional atrelada a tal dano/débito (“multa-sanção”), devem ser judicialmente executadas e cobradas pelos «municípios», assegurando que os recursos desviados ou mal aplicados pelo gestor faltoso sejam restituídos diretamente aos cofres municipais lesados.
Por outro lado, as multas autônomas simples, de cunho meramente acessório, decorrentes de infrações administrativas específicas definidas em lei, são de competência exclusiva dos «Estados-membros» para a devida execução judicial, através de suas procuradorias jurídicas.
Com o julgamento da ADPF 1.0112, a Corte Suprema aperfeiçoou a tese de repercussão geral originalmente fixada no julgamento do RE 1.003.433/RJ geradora do Tema 6423, acrescentando-lhe, pois, um segundo item, lançando a seguinte redação final integrativa, literalmente:
“1. O Município prejudicado é o legitimado para a execução de crédito decorrente de multa aplicada por Tribunal de Contas estadual a agente público municipal, em razão de danos causados ao erário municipal.
2. Compete ao Estado-membro a execução de crédito decorrente de multas simples, aplicadas por Tribunais de Contas estaduais a agentes públicos municipais, em razão da inobservância das normas de Direito Financeiro ou, ainda, do descumprimento dos deveres de colaboração impostos, pela legislação, aos agentes públicos fiscalizados”.
Esse aperfeiçoamento e influxo interpretativo estabelecido nos proporciona maior clareza jurídica, evitando interpretações que possam gerar insegurança quanto às competências e legitimidades processuais ativas dos entes públicos na execução das sanções aplicadas pelas Cortes de Contas estaduais.
A aplicação prática do entendimento fixado é importante não só para respeitar e salvaguardar as garantias constitucionais e legais dos gestores municipais evitando-lhes cobranças judiciais indevidas e (in)consequentes constrições e perdas patrimoniais, mas, sobretudo para corrigir, na praxe, uma atuação judicial indevida por parte de muitas das PGEs – Procuradorias Gerais dos Estados que ainda persistem (não raro) a executar acórdãos de TCEs – Tribunais de Contas Estaduais em evidente usurpação de competência e legitimidade relegadas, de fato e de direito, às procuradorias jurídicas municipais.
Em síntese: o julgamento da ADPF 1.011 pelo STF trouxe importantes esclarecimentos sobre a execução de sanções pelos Tribunais de Contas estaduais, reforçando a autonomia dos municípios na cobrança de débitos e multas a eles correlatas (“multas-sanções”) acotando, limitando e ao mesmo tempo pontuando que a legitimidade processual ativa dos Estados membros da Federação na execução de acórdãos prolatados por Corte de Contas Estaduais em desfavor de agentes públicos municipais apenas se restringe a multas autônomas do tipo simples.
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1 Art. 71 CF/88. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
VIII – aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;
§ 3º As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo.
2 Disponível em https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur506977/false
3 Disponível em https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur454322/false
Hilário de Castro Melo Júnior
Advogado, Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca, MBA em Governança Pública e Gestão Administrativa, Professor Adjunto UFAC, Desembargador Eleitoral TRE/AC (jurista), Consultor jurídico.