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Nos artigos anteriores dessa série sobre a proposta de atualização do Guia do CADE para os Acordos de Leniência Antitruste apresentamos o que entendemos ser a quarta fase, atual, no processo de evolução do Programa de Leniência Antitruste do CADE, bem como a proposta de expansão de ilícitos e de signatários trazidos em sede de consulta pública.1 Ademais, apresentamos comentários sobre dosimetria das sanções, cessação da conduta, amplitude da confissão e leniência antitruste parcial.2 Ainda, detalhamos a proposta de nova fase prévia na negociação de Acordos de Leniência Antitruste e as mudanças referentes à análise de disponibilidade do marker à luz dos critérios de “conhecimento prévio da infração” e “provas suficientes para assegurar a condenação”.3 Neste artigo, apresentaremos comentários sobre as mudanças referentes à parte II do Guia, referentes ao processo negociação em si de um Acordo de Leniência Antitruste e as consequências de um eventual arquivamento da investigação.
Parte II. Fases da negociação do Acordo de Leniência no CADE. Parte II.3. Terceira fase: Apresentação de informações e documentos que comprovem a infração
As alterações nessa seção específica da Proposta de Novo Guia de Leniência do CADE foram no sentido de apresentar esclarecimentos adicionais. Houve um detalhamento do que se espera como informações que podem ser apresentadas pelo proponente, passando a incluir locais dos fatos, das reuniões, a frequência e o modo das comunicações e/ou das trocas de informações. Entendo que essa redação está alinhada com a interpretação mais expansiva proposta pelo CADE da possibilidade de Acordo de Leniência para além do cartel, já discutido no primeiro artigo dessa série.
Foi realizada um importante registro, ademais, sobre a consequência de um arquivamento da investigação por insuficiência de provas. Essa inclusão deve ser festejada, já que surgiu de casos concretos no Tribunal em que se discutiu qual a consequência jurídica ao signatário do Acordo de Leniência e quase colocou em xeque, a nosso ver, a segurança jurídica do Programa de Leniência do CADE.
A seguinte dúvida começou a surgir: e se, ao final de toda a instrução processual, o Tribunal do Cade entender que não há provas suficientes para condenar os investigados, o que aconteceria com o acordo de leniência celebrado? No final de 2017, houve discussão que tangenciou esse tema, ao arquivar duas investigações iniciadas por acordo de leniência antitruste no mercado de autopeças.4 Ambos os casos foram arquivados por insuficiência de provas, uma vez que se entendeu que, a despeito da existência de comunicações frequentes entre rivais, elas não indicavam formação de cartel. Em que pese o arquivamento, em ambos os casos os signatários tiveram os benefícios do acordo confirmados pelo Tribunal, resultando na sua extinção da punibilidade. Nota-se, portanto, que o Cade entendeu que os signatários tinham cumprido o requisito de que a cooperação resultasse na identificação dos demais participantes da infração e na obtenção de informações e documentos que comprovassem a infração noticiada ou sob investigação, e que uma não condenação não significaria o descumprimento deste requisito.
Diferentemente, uma discussão bastante arriscada para a confiabilidade do Programa de Leniência Antitruste foi levantada em 2021 pelo Tribunal do Cade. Após a celebração de um acordo de leniência,5 a SG/Cade instaurou inquérito administrativo sigiloso, mas que após um ano e meio, depois de onze prorrogações, a própria SG/Cade arquivou o processo, por insuficiência de provas. Em voto do conselheiro relator, argumentou-se que o Tribunal Administrativo apenas poderia declarar cumprido o acordo de leniência e conceder seus benefícios se da colaboração houvesse resultado na instauração de processo administrativo para imposição de sanção por infração da ordem econômica. Segundo tal linha interpretativa, o Tribunal do Cade não poderia declarar o cumprimento do acordo de leniência em sede de procedimento preparatório ou de inquérito administrativo, mas tão somente em sede de processo administrativo. Ao final, por maioria, o Tribunal do CADE afastou tal interpretação, arquivou o processo para todos e confirmou os benefícios ao signatário do acordo, mas o risco aos administrados passou a ficar evidente.
Esclareço. Essa discussão está inserida na avaliação de um dos requisitos para a celebração de Acordo de Leniência, que é justamente a cooperação da empresa e/ou da pessoa física resultar na identificação dos demais envolvidos na infração e na obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação. Trata-se aqui de requisito que faz uma análise das informações e documentos obtidos como resultado de toda a investigação, abarcando não apenas o que a SG/Cade eventualmente tinha no momento da propositura do acordo, mas também o que foi trazido pelo signatário do Acordo de Leniência Antitruste e o que a autoridade antitruste conseguiu obter como resultado da cooperação com o signatário.
Entendo que o requisito de cooperação e de identificação dos demais participantes da infração e obtenção de informações e documentos que comprovassem a infração noticiada ou sob investigação consiste em uma obrigação de resultado potencial. No momento da assinatura de um acordo de leniência, nem o colaborador nem a SG/Cade conseguem precisar, com exatidão, se aquele conjunto probatório será ou não suficiente para condenar, e essa dúvida pode se dar a uma série de fatores. Pode ser que as evidências apresentadas sejam suficientes para iniciar a investigação e, após, serem realizados outros passos investigativos, como uma busca e apreensão, por exemplo. Pode ser que posteriormente haja ou conjunto probatório relevante, ainda que unilateral, ou interno à empresa colaboradora, de modo que com a celebração de um TCC, com novas informações e documentos apresentados, haverá um fortalecimento da investigação. Pode ser, simplesmente, que haja um Tribunal Administrativo mais ou menos rigoroso em termos de arsenal probatório para justificar uma condenação. Pode ser que parte dos infratores não consiga ser notificado, pode ser que algum deles tenha falecido, pode ser que haja alguma preliminar de prescrição envolvendo alguma das partes. Pode ser que haja algum julgamento no Judiciário que resulte em interpretação sobre a admissibilidade ou não de determinadas provas ou de certa interpretação jurídica. Pode ser, inclusive, que a SG/Cade, ao assinar o acordo, detivesse a expectativa de implementar determinados atos investigativos, mas que, por razões alheias à sua vontade, não tenha sido possível. Ou seja, há uma miríade de situações inimagináveis entre o momento da assinatura do acordo de leniência e o seu julgamento pelo Tribunal do Cade, de modo que a SG/Cade e nenhum colaborador jamais poderão precisar, com absoluta certeza, se haverá ou não condenação dos demais infratores.
A esse fator soma-se o fato de que as instruções de processos administrativos no Cade demandam anos e que, em casos de acordos de leniência, esses prazos são ainda mais alargados, conforme evidenciam as estatísticas de julgamentos pelo Cade.6 Logo, qualquer imputação de obrigação de resultado ao colaborador (e não de obrigação de resultado potencial) terminaria por aniquilar um dos principais pilares do Programa de Leniência Antitruste, que é justamente o da previsibilidade e da segurança jurídica.
Uma interpretação como aquela aventada, mas que restou – felizmente – vencida, acabaria por imputar, aos administrados, uma obrigação que seria da SG/Cade. Ou seja, se a própria SG/Cade assinou o acordo de leniência é porque entendeu que havia ali os elementos mínimos para a celebração do acordo e para iniciar a investigação. Se a própria SG/Cade é quem muda de opinião e, posteriormente, não instaura processo administrativo, mantendo-se em sede de procedimento preparatório ou de inquérito administrativo, não pode o Tribunal do Cade impor esse fato aos colaboradores se ficar evidenciado que apresentaram todas as informações e evidências que lhes estavam razoavelmente disponíveis, no momento da celebração e posteriormente, durante a instrução processual.
Se o Tribunal discordar da assinatura da SG/Cade, este poderá sinalizar que entende que não há provas suficientes para a condenação e manter os benefícios para o colaborador, justamente porque este foi quem permitiu que a autoridade pública pelo menos tivesse a oportunidade de investigar um fato total ou parcialmente desconhecido. Se a própria SG/Cade, que assinou o acordo de leniência, não foi capaz de reunir outras provas para robustecer a investigação, há que se concluir que ou (i) o acordo não deveria ter sido sequer assinado, ou (ii) a SG/Cade não cumpriu sua missão de investigar e realizar atos instrutórios posteriores, e nenhuma dessas falhas pode ser atribuída ao signatário. Em qualquer dessas hipóteses, o administrado não poderia ser penalizado.
Caso um raciocínio como o aventado, mas que restou vencido, viesse a prosperar, haveria, no mínimo, um duplo prejuízo para o programa de leniência. Primeiro porque a própria SG/Cade não possuiria incentivos para não prosseguir com investigações que não tenham reconhecidamente substância, pois já terão a sinalização do Tribunal de que, no mínimo, deverá ser instaurado um processo administrativo caso haja um acordo de leniência assinado. E este processo administrativo instaurado não teria robustez suficiente, e possivelmente se alongaria por anos, resultando, ao fim e ao cabo, em um arquivamento, mas que não pôde ser feito anos antes por conta da orientação – equivocada, na nossa opinião – de que um tipo processual específico é o único que autoriza a homologação do acordo. E em segundo lugar, haveria um prejuízo mais amplo para todo o programa de leniência do Cade. Se o signatário do acordo de leniência tiver receio de que poderá sair, ao final de toda a sua colaboração, pior do que entrou, tanto ele quanto todos os demais infratores não terão mais incentivos para colaborar com as autoridades públicas no Brasil, perdendo-se, assim, todas as inúmeras vantagens desse instrumento.
Assim, caso o Tribunal do Cade venha a entender que o arcabouço probatório não seria suficiente, deveria passar essa sinalização para a própria SG/Cade, para que futuros acordos não sejam assinados com evidências de mesmo nível de informações e documentos, não imputando ao signatário dos acordos uma obrigação que é da própria Administração Pública, que é continuar investigando as práticas delitivas. De modo correto, a nosso ver, ao final, o Tribunal decretou, por maioria, a extinção da pretensão punitiva da Administração Pública e a manutenção da confidencialidade da identidade dos signatários.
Assim, vem em boa hora a inclusão de trecho na Proposta de Guia para indicar que eventual decisão do Tribunal do CADE pelo arquivamento de um inquérito ou processo administrativo em relação às demais empresas envolvidas na conduta reportada por insuficiência de provas nos autos não implica, necessariamente, o descumprimento das obrigações de cooperação da signatária com a Superintendência-Geral do Cade.
Nos próximos artigos dessa série, comentaremos as últimas alterações propostas no Guia de Leniência do CADE, bem como sugestões de alteração no Guia, no regimento interno do Cade e/ou na própria lei 12.529/11.
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1 ATHAYDE, Amanda. Análise da proposta de novo Guia de Leniência do CADE: 4ª fase no processo de evolução do Programa de Acordos de Leniência Antitruste, a proposta de expansão de ilícitos e de signatários e a limitação da responsabilidade solidária do grupo econômico. Migalhas, 21 jan. 2025. Acesso em: https://www.migalhas.com.br/depeso/423188/artigo-1–analise-sobre-proposta-de-novo-guia-de-leniencia-do-cade
2 ATHAYDE, Amanda. Segunda parte da análise sobre a proposta de novo Guia de Leniência do Cade: Dosimetria das sanções, cessação da conduta, amplitude da confissão e leniência antitruste parcial. Migalhas, 3 fev. 2025. Acesso em: https://www.migalhas.com.br/depeso/423818/analise-novo-guia-de-leniencia-do-cade-leniencia-antitruste-parcial
3 ATHAYDE, Amanda. STerceira parte da análise sobre a proposta de novo guia de leniência do Cade: “Conhecimento prévio da infração”, “provas suficientes para assegurar a condenação” e fase prévia na negociação. Migalhas, 12 fev. 2025. Acesso em: https://www.migalhas.com.br/depeso/423818/analise-novo-guia-de-leniencia-do-cade-leniencia-antitruste-parcial
4 Ver os seguintes inquéritos administrativos, julgados na 116ª Sessão Ordinária de Julgamento do Cade: CADE. Inquérito Administrativo nº 08700.010322/2012-23 (acesso restrito) e 08700.008005/2017-51 (público). Relator: João Paulo de Resende. Julgado em: 13 dez. 2017; CADE. Inquérito Administrativo nº 08700.010319/2012-18 (acesso restrito) e 08700.008004/2017-15 (público). Relator: Paulo Burnier da Silveira. Julgado em: 13 dez. 2017. Para mais informações, sugere-se: MOTTA, Lucas Griebeler da. Tribunal do Cade arquiva investigação de cartel iniciada com leniência. Boletim, jan. 2018. Disponível em: http://www.levysalomao.com.br/publicacoes/Boletim/tribunal-do-cade-arquiva-investigacao-de-cartel-iniciada-com-leniencia. Acesso em: 23 out. 2018.
5 CADE. Inquérito Administrativo Sigiloso nº 08700.003246/2017-12 (apartado nº 08700.003272/2017-32).
6 BARRETO, Matheus Augusto Gomes. O CADE contra o relógio: um diagnóstico da morosidade das investigações de infrações da ordem econômica à luz da Lei 12.529/2011. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2024.
Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I – Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.