Autonomia da vítima: Limites do consentimento em medidas protetivas   Migalhas
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Autonomia da vítima: Limites do consentimento em medidas protetivas – Migalhas

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O afastamento da tipicidade no descumprimento de medida protetiva de urgência (art. 24-A da lei 11.340/06) pelo consentimento da vítima é, no âmbito do STJ, um tema tormentoso. Recentemente, infere-se de decisão da Corte:

RECURSO ESPECIAL. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. VIOLAÇÃO DO ART. 24-A DA LEI MARIA DA PENHA. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA PARA APROXIMAÇÃO. PROVAS SUFICIENTES E IDÔNEAS. NECESSIDADE DE REEXAME DE FATOS E PROVAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7 DO STJ. AGRAVO CONHECIDO E RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. I. CASO EM EXAME 1. Agravo em Recurso Especial interposto contra acórdão de tribunal de justiça que manteve a condenação da recorrente pelo crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência, conforme o art. 24-A da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). A recorrente alega atipicidade da conduta, sustentando que o consentimento da vítima afastaria a tipificação do delito e justificaria sua absolvição. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO 2. Há duas questões em discussão: (i) avaliar se o consentimento da vítima para aproximação poderia afastar a tipicidade da conduta de descumprimento das medidas protetivas; e (ii) verificar se o acolhimento do recurso depende de reexame de fatos e provas, o que atrairia o óbice da Súmula 7 do STJ. III. RAZÕES DE DECIDIR (…) 5. O conjunto probatório, incluindo o boletim de ocorrência, as declarações da vítima e depoimentos de testemunhas, demonstra a prática dolosa do crime de descumprimento de medidas protetivas, evidenciando que a recorrente aproximou-se deliberadamente da vítima, mesmo ciente da ordem judicial que lhe proibia tal conduta. 6. Nos crimes de descumprimento de medidas protetivas em contexto de violência doméstica, o consentimento da vítima não afasta a tipicidade da conduta, pois o bem jurídico tutelado é a eficácia da ordem judicial, e não apenas a integridade da vítima. (…). (AREsp 2.739.525/SP, relatora ministra Daniela Teixeira, 5ª turma, julgado em 10/12/24, DJEN de 16/12/24).

Curiosamente, no caso concreto, não houve consentimento da vítima, embora esse argumento tenha sido usado pela defesa. Na verdade, autora e vítima estavam em um mesmo ambiente, quando a primeira decidiu se deslocar em direção à segunda, colocando a mão em seu ombro e dizendo que precisavam ter uma conversa. Esta circunstância é exposta no acórdão do TJ/SP (apelação criminal 1506592-52.2023.8.26 .0269, relator, desembargador Jayme Walmer de Freitas, DJ 13/6/24, 3ª Câmara Criminal), que analisou o apelo defensivo, passando a ser o objeto do recurso manejado perante o STJ.

Em segundo grau, o magistrado anotou que “eventual consentimento ou concorrência da vítima para o descumprimento de medida protetiva, fato que, frise-se, inocorreu no caso em análise, não revoga a decisão que as deferiu, muito menos afasta a tipificação do art. 24- A da lei 11.340/06, que pune aquele que desobedece a ordem judicial”. Em seguida enfatizou que o crime do art. 24-A da lei Maria da Penha se caracteriza como “crime contra a administração da Justiça e seu normativo visa reforçar, em primeiro plano, o caráter imperativo das decisões judiciais, tendo como proteção secundária a destinatária da medida”.

A decisão do STJ não se debruça sobre o consentimento da ofendida, pois, para tanto, seria necessário reanalisar o acervo fático probatório dos autos, mas, faz destaque na ementa que “nos crimes de descumprimento de medidas protetivas em contexto de violência doméstica, o consentimento da vítima não afasta a tipicidade da conduta”. E essa conclusão decorreu da admissão, pela 5ª turma do Tribunal, da “eficácia da ordem judicial” como bem jurídico tutelado pela norma incriminadora (art. 24-A).

A mesma turma do STJ, com composição distinta, um ano antes, julgou outro caso de descumprimento de medidas protetivas. Naquela oportunidade a conclusão foi diversa, consoante se verifica na seguinte ementa:

PENAL. PROCESSO PENAL. RECURSO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. ART. 24-A DA LEI N. 11.340/2006. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. AUSÊNCIA DE LESÃO AO BEM JURÍDICO. FATO ATIPICO. PRECEDENTES DESTA CORTE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Esta Corte possui entendimento de que, em razão da intervenção mínima do direito penal, em observância aos critérios da fragmentariedade e subsidiariedade, o descumprimento das medidas protetivas, com o consentimento da vítima, afasta eventual lesão ao bem jurídico tutelado, tornando o fato atípico. Precedentes. 2. Agravo regimental desprovido (AgRg no REsp 2.049.863/MG, relator ministro Joel Ilan Paciornik, 5ª turma, julgado em 30/10/23, DJe de 8/11/23). 

Essa decisão está em consonância com aquela exarada pela 6ª turma quando do julgamento do HC 521.622/SC, em que, além da ausência de lesão jurídica em decorrência do consentimento da vítima, seus integrantes abordaram a inexistência de dolo do sujeito ativo. Considerando-se a importância do voto do ministro relator, reproduz-se literalmente: “(…) Com efeito, nota-se que a tese de absolvição, em razão do consentimento da vítima, não foi aceita pelo Sodalício a quo, porquanto não se pode entender que a autorização da vítima possa servir de justificativa para o descumprimento de ordem judicial, especialmente porque o crime visa, acima de tudo, resguardar a dignidade e prestígio da Administração da Justiça, não podendo a vontade do particular sobrepujar a supremacia do interesse público. Contudo, sabe-se que o direito penal deve ser a ultima ratio, devendo um sujeito ser sancionado penalmente apenas se existir um bem jurídico ameaçado ou violado, o que não ocorreu no presente caso. Destaco que, ainda que a conduta seja formalmente típica, não é possível constatar uma ameaça ou lesão ao bem jurídico tutelado, uma vez que a vítima autorizou a aproximação do réu” (HC n. 521.622/SC, relator ministro Nefi Cordeiro, 6ª turma, julgado em 12/11/19, DJe de 22/11/19).

Não é difícil perceber que o principal ponto de tensão entre os pronunciamentos do STJ reside na objetividade jurídica atribuída ao crime do art. 24-A da lei 11.340/06. 

Concebemos o descumprimento de medidas protetivas de urgência como um crime contra a pessoa, não como um crime contra a administração da Justiça, de modo que, para sua caracterização, o que importa é a existência do risco à integridade (física, moral, psicológica etc.) da vítima, a qual, caso não tenha a autonomia de sua vontade maculada por fraudes, coações e outros expedientes, e sendo capaz, pode anuir para com a periclitação desses bens jurídicos. Ou seja, se a vítima abre mão voluntariamente da proteção que lhe foi concedida, não se verifica o respectivo delito previsto na lei Maria da Penha.

Essa legislação, sem dúvida, é um importante instrumento de proteção às mulheres vítimas de quaisquer tipos de violência. No entanto, é necessário impor alguns limites na sua aplicação para respeitar a autonomia individual e não reduzir a vítima a um ser completamente vulnerável. Existem diversas situações possíveis que poderão surgir na relação entre agressor e agredida e cada uma merece um tipo de tratamento.

A mulher adulta, maior de dezoito anos, presume-se capaz de tomar decisões por si mesma. É o que diz a lei. Porém, a própria legislação reconhece hipóteses em que a autonomia resta prejudicada e o consentimento não tem validade. São as situações em que a mulher se encontra em estado de vulnerabilidade e o agente explora essa condição.

A vulnerabilidade pode resultar do ciclo de violência, grave ameaça, problemas de saúde mental, redução de recursos financeiros, entre outros. O consentimento, por óbvio, não tem validade para reconhecer decisões da vítima fragilizada. O próprio Tribunal da Cidadania se manifestou recentemente nesse sentido. Veja-se, sendo nossos os destaques:

DIREITO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA E AMEAÇA. CONDENAÇÃO MANTIDA. I. Caso em exame 1. Agravo regimental interposto contra decisão que não conheceu do habeas corpus, mantendo a condenação por descumprimento de medida protetiva e ameaça no âmbito de violência doméstica. 2. A defesa alega que o consentimento da vítima deveria ser considerado como causa de exclusão da ilicitude e atipicidade da conduta, além de questionar a dosimetria da pena. 3. A Corte de origem manteve a condenação com base em provas de que o réu descumpriu medida protetiva e ameaçou a vítima, sua mãe, idosa de 82 anos. II. Questão em discussão 4. A questão em discussão consiste em saber se o consentimento da vítima afasta a tipicidade do crime de descumprimento de medida protetiva e se a dosimetria da pena foi adequada. III. Razões de decidir 5. O consentimento da vítima não foi considerado válido, pois estava prejudicado pela intimidação causada pelo réu, que tinha pleno conhecimento das medidas protetivas. 6. A condenação por ameaça foi mantida com base em depoimentos consistentes da vítima e testemunhas, que confirmaram o temor causado pelo réu. (…)” (AgRg no HC 860.073/SC, relator ministro Ribeiro Dantas, 5ª turma, julgado em 13/11/24, DJe de 18/11/24.)

Entretanto, não é legítimo presumir a vulnerabilidade da mulher sempre que houver uma medida protetiva judicialmente decretada em seu favor. O Estado pode, e deve, proteger pessoas vulneráveis contra aqueles que se aproveitam do desequilíbrio da relação. No entanto, a vulnerabilidade não pode ser presumida de forma absoluta pela condição de mulher. Negar a ela a possibilidade de se posicionar sobre fatos relevantes de sua vida é, igualmente, uma forma de violência, travestida de boas intenções paternalistas.

A própria legislação penal reconhece isso, ao prever, por exemplo, que na injúria por razões da condição do sexo feminino (art. 140, c/c art. 141, § 3º do CP), eventual ação penal dependerá de uma queixa-crime, jungida a considerações de conveniência e oportunidade por parte da ofendida (art. 145, caput, do CP). Assim, se houver medida protetiva e a vítima aceitar conscientemente a aproximação do agressor e puder manifestar sua vontade livremente, não existirá ilicitude no fato tipificado no art. 24-A da lei 11.340/06.

A medida protetiva – com sua denominação autoexplicativa – tem por objetivo garantir uma proteção intensificada à vítima mulher no âmbito das violências domésticas e familiares. Repisando, o bem jurídico tutelado em caso de desobediência às medidas protetivas fixadas não é a administração da Justiça, e sim a integridade pessoal da vítima em todas as suas dimensões (física, moral, psicológica). Colocar o Estado acima da pessoa humana contraria a essência da CF/88, que foi elaborada tendo o ser humano como seu núcleo. Além disso, a lei Maria da Penha foi instituída para proteger a mulher das várias formas de violência, não para tutelar a administração da Justiça.

Não se pode cogitar a existência de um crime pelo simples descumprimento de um dever, pois, do contrário, existiria evidente violação à função crítica da teoria do bem jurídico. Outrossim, justamente pelo risco de descumprimento da função crítica, no contexto dos crimes contra a Administração Pública, deve-se evitar o apelo a expressões sem densidade conceitual, como “prestígio da Administração” ou “respeitabilidade dos funcionários públicos”. Trata-se de expressões sonoras e nada mais, pois carentes de conteúdo. Quanto à desobediência – crime do art. 330 do CP -, o bem jurídico tutelado é a efetividade das ordens administrativas, que se coliga com o princípio da eficiência. Por esse ângulo, atribui-se ao delito um objeto de tutela delimitado e com esteio constitucional. 

A referência ao crime de desobediência se mostra útil porque o descumprimento de uma decisão concessiva de medidas protetivas, quando a pessoa salvaguardada se mostra desinteressada na proteção, torna-se simplesmente um desrespeito a uma ordem judicial. Integridades corporal, psicológica, moral, sexual, patrimonial e outras somente compõem a tutela do art. 24-A quando a vítima delas não dispõe, ou quando não há uma expressão válida dessa disposição. Ao levarmos em consideração a assunção do risco pela vítima, sobra apenas a “afronta” à decisão judicial. Quando se percebe que a substância dessa decisão não se mantém, ou seja, que não há um desrespeito material à decisão (já que a vítima aceita o risco), sequer se pode aventar o risco à efetividade, pois não há o que efetivar. Resta apenas o “desprestígio”, que, como vimos, não é tutelável. Dessa forma, não é possível, sequer remotamente, classificar o delito como um crime contra a administração da Justiça.

Todavia, ainda que se compreenda como punível esse desrespeito, a punição pelo art. 24-A da lei 11.340/06 representaria evidente desproporcionalidade. Abstraindo-se o risco à integridade da mulher da objetividade jurídica, ter-se-ia uma desobediência em si mesmo considerada punida com pena de dois a cinco anos de reclusão. Nem mesmo se torna possível, em caso de flagrante delito, o afiançamento em sede policial. Apenas a título de comparação, há outro tipo incriminador concernente ao desrespeito a decisões judiciais, previsto no art. 359 do CP. Neste, a pena cominada é de detenção, de seis meses a dois anos. Trata-se, portanto, de infração de menor potencial ofensivo. Já a desobediência genérica, tipificada no art. 330, tem pena de detenção, de quinze dias a seis meses. Ainda em paralelo, tomemos como exemplo o descumprimento de medidas protetivas na qualidade de circunstância majorante do crime de feminicídio (art. 121-A, § 2°, IV do CP). Esse reconhecimento importa um acréscimo mínimo à pena acima de seis anos (considerando a sanção de 20 anos). O simples desrespeito poderia justificar um acréscimo tão amplo na reprovabilidade do comportamento?

Não se olvide, ainda, que a conduta de desobediência, quando superável por meios de intervenção extrapenais, não pode subsistir como delito, restando evidente o seu caráter de subsidiariedade, sendo certo que, no caso de descumprimento de medidas protetivas, existiriam medidas aptas a garantir a efetividade da ordem, se essa fosse a preocupação do legislador (medidas cautelares do art. 319 do CPP, prisão preventiva etc.).

Portanto, a presunção de vulnerabilidade da vítima, no caso de desobediência à medida protetiva, deve ser relativa. Quando houver provas de que a mulher protegida aceitou, conscientemente, a aproximação do agressor, não pode a lei desconsiderar sua autonomia individual e considerá-la um ser que merece proteção a todo custo, em desrespeito ao princípio da isonomia. Trata-se de hipótese de paternalismo rígido, em que o Estado passa por cima da liberdade individual, contra a vontade da pessoa, para protegê-la de si mesma, ainda que haja autonomia. Uma tal postura não deverá prevalecer.

João Paulo Orsini Martinelli

João Paulo Orsini Martinelli

Advogado Criminalista, Consultor Jurídico e Parecerista; Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra; Autor de livros e artigos jurídicos; Professor.

Leonardo Schmitt de Bem

Leonardo Schmitt de Bem

Doutor em Direito Penal pela Università degli Studi di Milano (Itália). Pós-Doutor em Direito Penal pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha). Professor Adjunto V na UEMS.

Bruno Gilaberte

Bruno Gilaberte

Mestre em Direito. Especialista em Investigação Criminal no Contexto dos Direitos Humanos. MBA em gestão da segurança pública. Autor de obras sobre Direito Penal. Delegado de Polícia/RJ. Professor.

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