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Recentemente1, foi noticiado o caso de juíza de Direito que, alertando os riscos de ataque à democracia brasileira em 2022 por sua mídia social, foi punida com “disponibilidade”2 de 60 dias. Por esse motivo, a juíza de Direito Rosália Guimarães Sarmento foi demandada em um PAD – Processo Administrativo Disciplinar junto ao CNJ3, assim como sua conta de mídia social foi suspensa4.
O mérito do debate (sobre postagem da juíza em rede pessoal), por si, chama a atenção por alguns pontos: Primeiro, trata-se de uma postagem alertando sobre os riscos ao Estado Democrático de Direito em período extremamente conturbado da política brasileira, riscos os quais geraram, inclusive, ações penais pelos fatos do “8 de janeiro” e afins, tais como na recente denúncia sub judice apresentada ao STF contra a cúpula anterior do Poder Executivo Federal – ou seja, a postagem da juíza ganhou, agora, certos contornos “premonitórios” e com aval da denúncia do PGR – Procurador-Geral da República5; Segundo, por se tratar de juíza que há mais de 10 anos não exerce a magistratura eleitoral e sem históricos infracionais, com perfil pouco visualizado; Terceiro, decorrente exatamente do segundo ponto, mesmo com todos aqueles dados positivos, foi-lhe negada a possibilidade de celebrar um TAC – “Termo de Ajustamento de Conduta”.
Nesse contexto, o presente texto não focará no mérito do CNJ, envolto de razões sobre ética na magistratura, mas sim em um debate de índole processual: de fato, não caberia uma medida despenalizadora e consensual? Para refletir sobre tal questão, apontar-se-á possível incoerência entre julgados jurisdicionais com a negativa de TAC pelo CNJ nesse caso.
No âmbito do CNJ, o tema é regulado pelo provimento CNJ 162/246 e o mesmo órgão chegou a se posicionar, em 2024, pelo cabimento da TAC somente até antes7 da instauração do PAD.
O caso noticiado, contudo, é anterior ao provimento acima indicado. Por isso, no debate sobre o cabimento do TAC, um dos conselheiros – Guilherme Feliciano -, ressaltou se tratar de juíza sem (!) histórico de infrações disciplinares, razão pela qual faria jus a um “TAC retroativo”, porquanto se tratava de procedimento anterior ao provimento CNJ 162/24. Porém, prevaleceu a posição do relator Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, segundo a qual somente cabe o TAC em momento antecedente ao PAD. Outro conselheiro, Ulisses Rabaneda dos Santos também negou o TAC mas por outros fundamentos, considerando sua insuficiência para prevenir novas infrações e à promoção da moralidade judiciária.
Outrossim, apesar das três posições serem juridicamente sustentáveis, um olhar à jurisprudência do STF e STJ pode indicar caminho diverso à conclusão do CNJ – em harmonia com a posição do conselheiro juiz Guilherme Feliciano.
Inicialmente porque o STF já admitiu medidas despenalizadoras – nessas situações, o ANPP – acordo de não persecução penal -, não somente no curso da ação penal ainda que iniciada antes da positivação da nova regra processual com efeitos materiais (HC 185.9138), como também até o trânsito em julgado (HC 217.2759). Aliás, igual entendimento foi firmado em recurso repetitivo no STJ (REsp 1.890.34410).
Com efeito, tratando-se de “Direito Administrativo Sancionador”11, as normas impactantes nessa esfera, ainda que de cunho híbrido (processual e material) devem incidir retroativamente – até porque os membros da magistratura judicante possuem as mesmas garantias constitucionais em foco na discussão.
Por outro lado, em tempos nos quais o Poder Judiciário fala tanto em “julgamento sob perspectiva” (Exemplos: de gênero; de raça; e das desigualdades em geral), a “punição sem direito a TAC” de uma mulher, magistrada há mais de duas décadas, sem histórico ético-infracional, sem notícias de envolvimento em corrupção e cuja declaração avaliada pelo CNJ quase que se revelou “premonitória” ao alertar sobre os antecedentes daquilo que hoje é uma das ações penais mais “famosas” dos últimos anos no STF, não parece acenar aos precedentes do STF e STJ sobre “medidas despenalizadoras”. Por isso, o decisório analisado não parece tangenciar a um “Julgamento sob perspectiva de Democracia” – e daqui se retira a ironia decorrente da punição (sem direito TAC) da “magistrada pró-democracia”, ironia essa já anunciada no título: “Casa de ferreiro, espeto de pau”.
Afinal, a instância nacional de controle do Poder Judiciário (CNJ) não deveria respeitar os precedentes sobre o devido processo sancionador firmados pelo STJ e STF? Questionado de outro modo: as posições do STF e do STJ sobre medidas despenalizadoras não deveriam ser reiteradas em processos administrativos sancionatórios da magistratura? Tal questionamento, ressalte-se, faz-se sem ingressar no mérito sobre as limitações políticas dos juízes brasileiros.
Com efeito, é preciso repetir o óbvio, ainda que de outra forma: processos administrativos sancionadores devem respeitar os direitos fundamentais e, como não poderia deixar de ser, os membros do Poder Judiciário também possuem igual direito à observância de tal categoria superior de direitos.
Em suma, no Brasil, toda esfera administrativa – inclusive, por certo, o CNJ – submete-se à interpretação uniformizante do STJ e do STF. Em casos similares, resta torcer para que o tema seja debatido com profundidade e até mesmo, por ser questão de ordem pública, arguido oficiosamente. É isso ou, por fim, somente restaria a própria esfera jurisdicional para solucionar o impasse da possível divergência exposta.
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1 MIGALHAS. Pad: PAD Maioria do CNJ suspende juíza que declarou voto em Lula nas redes. Portal Migalhas, de 21 Fev. 2025. Disponível em: . Acesso em: 23 Fev. 2025.
2 “Proclamação do resultado: O Conselho, por maioria, rejeitou a preliminar suscitada pela defesa para celebração de Termo de Ajustamento de Conduta e, no mérito, julgou procedente o presente processo administrativo disciplinar para aplicar à magistrada a pena de disponibilidade com proventos proporcionais ao tempo de serviço, pelo prazo de sessenta (60) dias, nos termos do voto do Relator. Quanto à preliminar, o Conselheiro Ulisses Rabaneda acompanhou o Relator para rejeitá-la, mas por fundamento diverso. Vencido o Conselheiro Guilherme Feliciano, que votava pelo deferimento do pedido apresentado como preliminar na defesa da magistrada requerida para celebração de Termo de Ajustamento de Conduta e, via de consequência, pela remessa dos autos à Corregedoria Nacional de Justiça, com sugestões de medidas de conformação da conduta da requerida. (…).” (CNJ. Processo n. 0006139-89.2023.2.00.0000. Disponível em: . Acesso em 24 Fev. 2025). Consulta Pública.
3 MIGALHAS. Redes sociais CNJ abre PAD contra magistrados por manifestação política na internet. Portal Migalhas, de 5 Set. 2023. Disponível em: . Acesso em: 23 Fev. 2025.
4 MIGALHAS. Conteúdo inapropriado: CNJ suspende redes sociais de magistrados por manifestações políticas. Portal Migalhas, de 28 Out. 2022. Disponível em: . Acesso em: 23 Fev. 2025.
5 MIGALHAS. Trama golpista: PGR denuncia Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado; veja a íntegra. Portal Migalhas, de 18 Fev. 2025. Disponível em: . Acesso em: Acesso em: 23 Fev. 2025.
6 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n. 162 de 11/03/2024. Disponível em: . Acesso em 24 Fev. 2025.
7 MIGALHAS. Solução consensual TAC no CNJ só é possível antes de instauração do PAD, esclarece Barroso. Portal Migalhas, de 12 Mar. 2024. Disponível em: . Acesso em: 24 Fev. 2025.
8 “(…). Teses de julgamento: (…) 4. Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir da proclamação do resultado deste julgamento, a proposição de ANPP pelo Ministério Público, ou a motivação para o seu não oferecimento, devem ser apresentadas antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura, pelo órgão ministerial, no curso da ação penal, se for o caso. (…)”. (STF, HC 185913, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, j. 18/9/2024, DJe 18/11/2024, p. 19/11/2024).
9 “(…) 3. O art. 28-A do Código de Processo Penal, acrescido pela Lei 13.964/2019, é norma de conteúdo processual-penal ou híbrido, porque consiste em medida despenalizadora, que atinge a própria pretensão punitiva estatal. Conforme explicita a lei, o cumprimento integral do acordo importa extinção da punibilidade, sem caracterizar maus antecedentes ou reincidência. 4. Essa inovação legislativa, por ser norma penal de caráter mais favorável ao réu, nos termos do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, deve ser aplicada de forma retroativa a atingir tanto investigações criminais quanto ações penais em curso até o trânsito em julgado. Precedentes do STF. 5. A incidência do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, como norma constitucional de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não está condicionada à atuação do legislador ordinário. (…).” (STF, HC 217275 AgR-segundo, Rel. Min. Edson Fachin, T2, j. 27/3/2023, DJe 4/4/2023, p. 10/4/2023).
10 STJ, REsp n. 1.890.344/RS, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, S3, j. 23/10/2024, DJe 28/10/2024
11 Para mais sobre o tema: OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 10ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2025.
Maurilio Casas Maia
Professor (UFAM) e Defensor Público (DPAM). Pós-Doutor em “Direito Processual” (UFES). Doutor em Direito Constitucional (UNIFOR). Mestre em Ciências Jurídicas (UFPB).