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A crescente popularização das motocicletas como meio de transporte e trabalho transformou o cotidiano urbano. Mais acessíveis que os automóveis e mais ágeis que o transporte coletivo, as motos se consolidaram nos grandes centros, onde, além de sua utilização tradicional, como mototáxis, passaram a ser empregadas no transporte de passageiros via aplicativos.
No entanto, o aumento dos acidentes envolvendo motociclistas acendeu alerta sobre a segurança viária e a necessidade de regulamentação desse modal, a fim de evitar que essa alternativa de mobilidade se converta em um problema de saúde pública.
Em São Paulo, essa preocupação já se reflete em uma disputa judicial entre empresas do setor e a prefeitura. Enquanto as plataformas de transporte por aplicativo buscam operar livremente na cidade, a administração municipal alega riscos à segurança no trânsito.
Ademais, a ausência de regulamentação nacional unificada para o serviço de mototáxi – tanto na versão tradicional quanto nas plataformas digitais – mantém cenário de incertezas e desafios para o setor.
O que diz a legislação nacional?
A lei 12.587/12, que institui a Política Nacional de Mobilidade Urbana, não inclui expressamente o mototáxi entre as modalidades autorizadas, deixando a regulamentação a cargo dos Estados e municípios.
Em contrapartida, há legislação Federal que estabelece requisitos para o exercício da profissão. A lei 12.009/09 exige idade mínima, tempo de CNH, curso especializado e uso de equipamentos de segurança para atuação como mototáxi.
Normas locais
Entre as dez capitais brasileiras mais populosas, apenas quatro possuem regulamentação para serviços de mototáxi tradicional, enquanto duas proíbem a atividade por decreto. Nas demais quatro, o serviço opera sem qualquer normatização específica.
Mesmo nas capitais onde há normas específicas para o serviço tradicional de mototáxi, aqueles que operam via aplicativos ainda enfrentam um vácuo regulatório, funcionando à margem das legislações municipais.
Confira como os serviços de mototáxi funcionam nas principais capitais do país:
Entre as 10 capitais mais populosas, duas proibiram mototáxis.(Imagem: Arte Migalhas)
Em cidades como São Paulo e Curitiba, onde a atividade foi formalmente proibida, os mototáxis continuam operando.
Já entre os municípios que regulamentam o serviço, Fortaleza e Salvador impõem critérios rigorosos. Além da exigência de idade mínima e tempo de habilitação, na capital baiana os condutores precisam apresentar atestado médico e certidão negativa de antecedentes criminais.
Manaus e Goiânia adotam regras voltadas à segurança dos passageiros, como a obrigatoriedade de seguro e equipamentos de proteção individual.
No Rio de Janeiro, a atividade é permitida, mas sem regulamentação padronizada, sendo operada por cooperativas ou empresas cadastradas.
Confira todos os requisitos exigidos nas quatro maiores capitais brasileiras que regulamentam o serviço:
O caso de São Paulo
Em 2023, a prefeitura de São Paulo proibiu os mototáxis por aplicativo por meio do decreto 62.144, alegando questões de segurança viária.
Mesmo diante da restrição, em janeiro de 2024, empresas lançaram o serviço na cidade, amparadas pelas leis federais 12.587/12 e 12.009/09. Para as companhias, a proibição violaria o direito à mobilidade e à livre iniciativa.
Diante da resistência, a prefeitura reagiu emitindo notificações e determinando um prazo de 24 horas para a suspensão do serviço, o que não foi cumprido.
O impasse chegou à Justiça. O juiz Josué Vilela Pimentel, da 8ª vara de Fazenda Pública do TJ/SP, negou o pedido das empresas para reverter a proibição. A decisão foi posteriormente confirmada pelo desembargador Eduardo Gouvêa.
Mesmo assim, os mototáxis continuaram operando na capital, levando a apreensões de motocicletas e multas aplicadas aos condutores.
Então, a prefeitura ingressou com uma ação civil pública, solicitando a aplicação de uma multa diária de R$ 1 milhão às empresas. No entanto, a Justiça negou o pedido, argumentando que a atividade não estava formalmente proibida por decisão judicial.
Em fevereiro de 2024, o prefeito Ricardo Nunes propôs um projeto de anistia para cancelar as multas já aplicadas diretamente aos motociclista, cerca de R$ 7 mil por mototaxista. Contudo, a concessão da anistia foi condicionada à retirada das empresas do mercado paulistano.
Além disso, a administração municipal avalia acionar judicialmente as operadoras para que arquem com os prejuízos financeiros causados aos motociclistas autuados.
Aumento da frota
Segundo dados do registro nacional de veículos automotores, em 2011, o país possuía 18,4 milhões de motocicletas registradas, representando 26,1% da frota total. Dez anos depois, esse número saltou para 30,3 milhões, ampliando sua participação para 27,1%.
Frota de motocicletas aumentou quase 65% em 10 anos.(Imagem: Arte Migalhas)
Em entrevista, o doutor em Engenharia Civil e professor da USP, Antonio Clóvis Ferraz, afirma que o crescimento do uso de motocicletas no Brasil está fortemente ligado à sua acessibilidade econômica. “O custo é baixo, a locomoção é rápida e há uma série de vantagens em relação ao transporte coletivo”, explica.
Ele também aponta que essa tendência não é exclusiva do Brasil. No cenário internacional, países como Itália e Espanha registram um aumento no uso de motonetas, veículos que oferecem mais estabilidade e conforto para os usuários.
No contexto brasileiro, a motocicleta deixou de ser apenas uma opção e se tornou uma necessidade para milhões de pessoas. “Ela permite deslocamentos mais rápidos, elimina a necessidade de transbordo e, para quem tem menor renda, muitas vezes sai mais barato do que pagar pelo ônibus”, observa.
Além do custo, segurança e praticidade também são fatores decisivos na escolha da moto como meio de transporte. “Mulheres que voltam do trabalho à noite, por exemplo, preferem o mototáxi porque ele as deixa na porta de casa, reduzindo o risco de violência”, exemplifica Ferraz.
Veja a entrevista:
Mortes de motociclistas
Os números evidenciam a vulnerabilidade dos motociclistas. De acordo com análise do Datasus 2023, divulgada pelo Observatório Nacional de Segurança Viária, as mortes de motociclistas aumentaram 11,77% entre 2022 e 2023, passando de 12.058 para 13.477 óbitos.
Mortes de motociclistas aumentou 11% em um ano.(Imagem: Arte Migalhas)
Embora não seja possível determinar a quantidade de mototaxistas dentro desse total, é possível identificar o perfil das vítimas fatais.
Segundo boletim do ministério da Saúde de 2023, a maior parte dos motociclistas mortos no trânsito em 2021 era homem (88,1%), jovem entre 20 e 29 anos (30,8%), de baixa escolaridade (39,6%), de raça negra (64,9%) e solteiro (57,3%).
Fatores de risco
Ainda, de acordo com o boletim de 2023 do ministério da Saúde, grande parte dos acidentes com motociclistas está ligada a condutas de risco, como o não uso do capacete, pilotagem sob efeito de álcool ou drogas e excesso de velocidade.
A imprudência, incluindo mudanças bruscas de faixa, condução em zigue-zague e frenagens abruptas, também aumenta as chances de colisões. Além disso, a baixa visibilidade no trânsito, devido ao uso inadequado de faróis e roupas escuras, torna os motociclistas mais vulneráveis.
Fatores externos, como a falta de infraestrutura adequada, vias em más condições e trânsito misto sem segregação, elevam ainda mais os riscos.
A ausência de fiscalização rigorosa e políticas públicas eficientes contribuem para a perpetuação de práticas inseguras.
Ainda, a precarização do trabalho impulsiona motociclistas de aplicativos a adotarem comportamentos arriscados para cumprir prazos e aumentar os ganhos, ampliando a exposição ao perigo.
Como minimizar riscos?
Para o doutor em Engenharia Civil e professor da USP, Antonio Clóvis Ferraz, são necessários investimentos em fiscalização e educação para reduzir riscos no trânsito.
Segundo o especialista, embora as motocicletas apresentem um nível de insegurança maior em relação ao transporte coletivo, proibir não é a solução.
Diferente de carros e caminhões, as motocicletas não possuem uma estrutura de proteção para o condutor em caso de colisão. A ausência de itens como airbags e barras laterais torna os impactos significativamente mais severos, resultando em ferimentos mais graves. Além disso, a menor estabilidade da moto em comparação a veículos de quatro rodas aumenta as chances de tombamento e derrapagem.
Ferraz defende que a saída para um trânsito mais seguro não está na proibição, mas na adoção de medidas eficazes. Fiscalização rigorosa, sinalização adequada e, sobretudo, educação para o trânsito são fundamentais. “Não adianta lutar contra a corrente. A população quer a motocicleta, e a melhor solução é regulamentar e investir em segurança”, afirma.
Ele destaca que, em cidades como São Paulo, a criação de corredores exclusivos para motos demonstrou impactos positivos na redução de acidentes e mortes. No entanto, alerta que, sem uma fiscalização eficiente e contínua, os riscos permanecem elevados.
Um exemplo dessa estratégia é a Faixa Azul, via exclusiva para motocicletas implantada em algumas avenidas paulistanas, com o objetivo de organizar o tráfego e reduzir colisões.
Faixa Azul exclusiva para motociclistas foi implementada no trânsito de São Paulo/SP.(Imagem: Renato S. Cerqueira/Ato Press/Folhapress)
Uma outra iniciativa promissoras vem da UFS – Universidade Federal de Sergipe, onde os pesquisadores Kelly Lima e Alcides Benicasa desenvolveram um modelo inteligente para otimizar o serviço de mototáxi, priorizando a segurança viária.
O projeto propõe uso de algoritmos avançados para sugerir trajetos que evitem áreas de alto risco, analisando dados sobre criminalidade, acidentes e fluxo de trânsito. Dessa forma, é possível reduzir a exposição a assaltos, minimizar riscos de colisões e garantir um serviço mais seguro sem comprometer sua agilidade.
Integração
Garantir a segurança dos mototaxistas exige ações integradas. Além do avanço tecnológico, é essencial investir em educação para o trânsito, campanhas de conscientização e fiscalização rigorosa para coibir infrações.
A capacitação dos condutores também é indispensável para aprimorar a segurança. Em vez de proibir o serviço, a solução está na regulamentação eficiente, garantindo proteção tanto para motociclistas quanto para passageiros e fortalecendo a mobilidade urbana sem colocá-los em risco.