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Em razão das denúncias oferecidas contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 33 pessoas, incluindo militares, pelos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-l) e de golpe de Estado (art. 359m), a delação premiada voltou a ser tema de debate.
Uma digressão quanto ao percurso da legislação brasileira demonstra que a delação premiada ganhou seus primeiros traços ainda nas Ordenações Filipinas, em vigência de 1603 a 1830, e que consignava a faculdade de se perdoar o indivíduo que delatasse conspirações ou conjurações, bem como fornecia dados que ajudassem na prisão dos envolvidos.1
No entanto, o termo inicial do instituto já com a denominação de delação premiada teve início após a promulgação da Constituição da República, inspirada no movimento da “Lei e Ordem”, trouxe dispositivo acerca da criação da lei dos crimes hediondos (art. 5º, inciso XLIII, da CR).
Influenciados pela excitação gerada pela operação italiana mani pulite, bem assim pelo clamor social advindo da sensação de insegurança incrementada pelos meios de comunicação sensacionalistas e pelo aumento do crime de extorsão mediante sequestro, notadamente, contra pessoas com poder e influência, a primeira imersão do instituto sob análise no ordenamento jurídico brasileiro ocorreu com o advento da lei 8.072/90 (lei de crimes hediondos).
No que pese os vários questionamentos que são feitos em relação a delação premiada, inclusive de ordem ética, é certo que com a entrada em vigor da lei 12.850/13 (lei de organização criminosa), a delação com o nome de colaboração premiada entrou definitivamente no ordenamento jurídico brasileiro.
Para melhor análise do instituto da delação (colaboração premiada), necessário diferenciar “meios de prova” e “meios de obtenção de prova”.
Assim, enquanto meio de prova é o meio através do qual se oferece ao juiz meios de conhecimento, de formação da história do crime, que poderá servir de base para decisão, como por exemplo: a prova testemunhal, os documentos etc.
Os meios de obtenção de prova são instrumentos que permitem obter-se à prova. “Não é propriamente a prova, senão meios de obtenção”. São exemplos: a delação premiada, interceptações telefônicas etc.2
No dizer de Gustavo Badaró,
Enquanto os meios de prova são aptos a servir, diretamente, ao convencimento do juiz sobre a veracidade ou não de uma afirmação fática (por exemplo, o depoimento de uma testemunha, ou o teor de uma escritura pública), os meios de obtenção de provas (por exemplo, uma busca e apreensão) são instrumentos para a colheita de elementos ou fontes de provas, estes sim, aptos a convencer o julgador (por exemplo, um extrato bancário documento encontrado em uma busca apreensão domiciliar). Ou seja, enquanto o meio de prova se presta ao convencimento direto do julgador, os meios de obtenção de provas somente indiretamente, e dependendo do resultado de sua realização, poderão servir a reconstrução da história dos fatos.3
De tal modo, sendo a colaboração premiada – um meio de obtenção de prova e não meio de prova – não poderá servir, de maneira isolada, para fundamentar uma sentença condenatória. Posto que, de acordo com o parágrafo 16 do art. 4º da lei 12.850/13, “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador” (grifo nosso).
No que diz respeito a delação do ex-ajudante de ordem de Jair Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, questionada pela sua defesa – o que é natural vindo do seu respeitável advogado – é importante destacar que para além da delação como meio de obtenção de prova não faltam provas que corroboram o que foi dito pelo delator/colaborador.
A atividade probatória tem como principal finalidade formar o convencimento do juiz através de uma “reconstituição histórica”4. E provas, no dizer de Francesco Carnelutti, “são, pois, os objetos mediante os quais o juiz obtém as experiências que lhe servem para julgar”. As provas, para Carnelutti, são como as “chaves, mediante as quais ele (juiz) trata de abrir as portas do desconhecido, do qual, como qualquer outro homem, se encontra rodeado, para saber o que não sabe…”5
Por tudo, em razão dos inúmeros elementos de prova (testemunhas, documentos, entrevistas etc.), não somente todas as “portas” como, também, as “janelas” foram abertas para que os julgadores tomem completa ciência de todos os fatos. Portanto, não há motivos (falta de justa causa) para que a denúncia, oferecida pelo procurador-geral da República, não seja recebida e, afinal, sejam os denunciados julgados – respeitado o devido processo legal, o contraditório e ampla defesa – perante o STF, pelos atos que culminaram no 8/1/23.
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1 BITTAR, Walter Barbosa. “Delação premiada no Brasil e na Itália. Uma análise comparativa”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 19, n. 88, p. 255-270, jan./fev. 2011.
2 LOPES Jr. Aury. Direito processual penal. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 352.
3 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 387.
4 TORNAGUI, Hélio. Curso de processo penal. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 1990, p. 267.
5 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre processo penal. Tradução: Francisco José Galvão Bueno. Campinas: Bookseller, 2004, v.1, p. 275.
Leonardo Isaac Yarochewsky
Advogado Criminalista, Mestre e Doutor em Ciências Penais pela UFMG. Professor de Direito Penal Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) Membro do IDDD