A indevida aplicação de multa nos embargos de declaração   Migalhas
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A indevida aplicação de multa nos embargos de declaração – Migalhas

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Outro dia, li uma lamentável decisão de um juízo Federal ratificada, na apelação, pelo tribunal do TRF-2, em 21/2/25, que manteve a aplicação de multa, nos termos do art. 1026 § 2º, CPC.

Ocorre que a multa equivocada, foi simplesmente, pela parte ter interposto embargos de declaração, exercendo o seu direito constitucional de ação, e, apontando vícios do art. 1022, do CPC, II, vale dizer quando o julgador incorre em quaisquer condutas descritas no art. 489, § 1º, do CPC. Vejamos, por exemplo algumas condutas:

Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que (art. 489 §, IV):

“não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador “(art. 489 §, IV)

“se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos” (art. 489 §, V)

“deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento” (art. 489 §, VI).

Percebe-se de pronto, que, o legislador de 2015, demarca de forma detalhada e bem clara, os elementos estruturais essenciais da decisão judicial, sentença e acórdão.

Logo, é de uma obviedade óbvia, que quando o julgador não cumpre o art. 489, §, 1º, e seus incisos gera nulidade absoluta.

Quem, recorre, é evidente, quer que o julgador enfrente todos os argumentos deduzidos no processo. É o que fala o art. 489, §1º, IV, NCPC. Logo, não há espaço para discricionariedade e subjetividade; pois toda atividade estatal está submetida à lei e ao Direito.

Cabe ter presente, neste ponto, os ensinamentos do festejado e respeitabilíssimo Lenio Streck, professor emérito da Escola de Magistratura do TJ/RJ e um dos grandes pensadores do Direito ao lado de Ferrajoli, Hart, Dworkin, dentre outros1:

“Não é possível realizarmos leitura do artigo 489, parágrafo 1º, IV, do novo CPC, atribuindo a ele a conclusão de que o juiz não tem o dever e examinar todos os argumentos das partes. Somente, é claro, com o atendimento ao artigo 489, parágrafo 1º, IV (e todos os seus demais incisos) teremos a demonstração de que todas as opções decisórias foram submetidas ao filtro do contraditório e que o raciocínio decisório levou em conta o conglomerado de argumentações das partes, relevantes para o julgamento da causa”.

Vejamos o que ensina, com brilhantismo, o festejado mestre e desembargador Alexandre Freitas Câmara2:

“Ora, se a parte apresenta diversos argumentos, e um deles é acolhido, sendo suficiente para justificar uma decisão que a favoreça, evidentemente não há para o órgão jurisdicional qualquer dever de examinar os demais argumentos, que se limitariam a confirmar a decisão proferida. Pois é neste, e apenas neste sentido, que se pode examinar como correta a afirmação de que o órgão julgador não está obrigado a examinar todos os argumentos da parte se já encontrou um que sustenta a sua conclusão. (…) De outro lado, porém, se a parte deduz vários argumentos e um deles é rejeitado impõe-se o ao órgão julgador o dever de examinar os demais fundamentos que, em tese, poderiam caso acolhidos, levar a conclusão diferente. É que só é legitimo decidir contrariamente ao interesse de uma das partes se todos os seus argumentos forem rejeitados.”

Alguma dúvida?

Da fundamentação das decisões judiciais

Consoante o inciso IX do art. 93 da Constituição da República, “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”.

No mesmo sentido, o NCPC – Novo Código de Processo Civil, no art. 11, repete essa premissa constitucional: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”.

Vale ressaltar, por oportuno, que a fundamentação das decisões judiciais não só é uma exigência do Estado democrático de Direito, como concebe, ainda, um direito fundamental do cidadão. No ponto, as abalizadas lições doutrinárias.3

“A fundamentação das decisões – o que, repita-se, inclui a motivação – mais do que uma exigência própria do Estado Democrático de Direito, é um direito fundamental do cidadão. Fundamentação significa não apenas explicitar o fundamentado legal/constitucional da decisão. Todas as decisões devem estar justificadas e tal justificação deve ser feita a partir da invocação de razões e oferecimento de argumentos de caráter jurídico. O limite mais importante das decisões judiciais reside precisamente na necessidade de motivação/justificação do que foi dito. Trata-se de uma verdadeira “blindagem” contra julgamentos arbitrários”.

A decisão equivocada do juízo e o voto condutor que aplicou a multa

O juízo de piso assim decidiu:

“Evidente, outrossim, o intuito manifestamente protelatório da recorrente nestes segundos embargos de declaração. As razões do presente recurso, porquanto, como ponderado antes, visam a um repetitivo revolvimento do debate fático-probatório da demanda, deixam transparecer que o objetivo da recorrente é apenas, e tão somente, protelar o andamento regular do feito, causando tumulto ao deslinde da demanda. Tudo indica que assim se comporta para adiar o pagamento da dívida assentada na sentença, na monta de R$ 65.650,48, a ser acrescida de juros e encargos de mora nos termos do contrato avençado entre as partes. A postura, reprovável sob o aspecto da ética processual, viola o princípio da boa-fé objetiva, por isso tem de ser sancionada, à luz do art. 1.026, § 2º do CPC.”

O voto condutor do relator aduz que:

“Por fim, entendo que a aplicação da multa cominada, com espeque no art. 1.026, §2º, do CPC, foi devidamente fundamentada pela decisão do evento 116, SENT1, merecendo, desse modo, ser mantida (REsp n. 1.250.739/PA, relator Ministro Mauro Campbell Marques, relator para acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 4/12/2013, DJe de 17/3/2014)”.

Técnica de fundamentação “per relationem”: Constitucionalidade duvidosa

Uma pausa: foi incorporado, por inteiro, ao voto condutor, as ponderações contidas na motivação do r. decisório recorrido, como razões de decidir (técnica de fundamentação “per relationem”, admitida pela Suprema Corte.

Não obstante, a nosso sentir, essa técnica é de constitucionalidade duvidosa. Tanto é que no agravo interno interposto contra decisão monocrática do relator, consoante art. 1021. § 3º, CPC, é vedado ao relator limitar-se à reprodução dos fundamentos da decisão agravada para julgar improcedente o agravo interno.

É vedado “copiar e colar” decisões

A propósito, a 6ª turma, do STJ, no AgRg, no HC 741.194/RS, relator minitro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 13/3/23, decidiu que:

“É nula a decisão que apenas realiza remissão aos fundamentos de terceiros, desprovida de acréscimo pessoal que indique o exame do pleito pelo julgador e clarifique suas razões de convencimento.”

Por outras palavras, é proibido ao julgador “copiar e colar” uma decisão. Por quê? Porque “copiar e colar” não é fundamentar…

Prosseguimos. Pois é. Os causídicos nunca apontam vícios do art. 1.022 do NPCP, sustentam erro judiciando, querem modificar a convicção do julgador, o intuito é sempre “manifestamente” protelatório, violam a boa-fé objetiva etc.

A palavra mágica é “manifestamente” protelatórios? Como assim? E a fundamentação, excelentíssimos?

Ora, ora, trata-se de uma questão de boa-fé hermenêutica, pois os embargos de declaração são interpostos para esclarecer: obscuridade ou eliminar contradição, suprir omissão ou corrigir erro material (art. 1.022 do NCPC).”

Ou seja, a parte embargante pode e deve, sim, usar mecanismos processuais previstos no NCPC para defesa de seu direito.

Pois então. A presunção de boa-fé é princípio geral de Direito: a boa-fé se presume; a má-fé se prova.

A oposição de embargos de declaração só pode ser caracterizada como má-fé se houver flagrante e escancarada deslealdade processual. Deve-se respeitar a boa-fé daquele que observou o NCPC.”

Isso é uma obviedade óbvia! Aliás, aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé (art.5º do NCPC). Porém, está incluído, também, o magistrado, não é?”

Equívoco da multa

Sempre com toda cordialidade, o julgador não fundamentou por a + b, o porquê da multa. Não provou que os embargos são protelatórios.

Não vale a presunção de má-fé. Não vale somente falar. Tem que provar. A propósito, foi feito um juízo moral e não do devido processo legal que, aliás, permite na democracia, o direito fundamental do cidadão embargar, agravar e apelar, não é?

De outro modo: não vale o achismo e subjetivismo do julgador. O triste decido, depois fundamento. Senão, tome-lhe multa! 

Se embargar, pode multar; mesmo com boa-fé hermenêutica?  

O que causa imensa tristeza e perplexidade! Nossa dor é perceber que, às vezes, a decisão, sentença e acórdão não têm coerência e integralidade!

Cumpre ainda observar que, em consonância com o enunciado da súmula 98/STJ, “embargos de declaração manifestados com notório propósito de prequestionamento não têm caráter protelatório”

E o que diz a doutrina?

Importa, sim, o que diz a doutrina. Direito tem que ter sempre coerência e integralidade.

Aliás, se a doutrina não vale nada, por que, então, juízes, desembargadores, ministros do STJ e STF escrevem livros?

Os embargos viraram a “geni do processo, disse Lenio Streck.

Importante: Manifestamente protelatório quer dizer evidente. claro, óbvio, inequívoco.

Conclusão

Quando o juízo é seletivo e faz cara de paisagem, fingindo não ver  alguns argumentos relevantes deduzidos, será que, no processo civil democrático, a parte não pode embargar, no sentido, de que, sim, as omissões continuam?

A resposta só pode ser: É claro que pode embargar!

Por acaso, a embargante conspirou contra as garantias constitucionais do devido processo legal? Muito pelo contrário. Ela exerceu o seu sagrado direito de defesa!

Estava, sim, com boa-fé hermenêutica!

Logo, a multa aplicada é equivocada! A propósito, não foi fundamentado pelo julgador o dolo manifestamente protelatório.

A presunção de boa-fé é princípio geral de Direito: a boa-fé se presume; a má-fé se prova.

A propósito, a embargante estava  apenas exercendo o seu direito constitucional de ação e respeitando o devido processo legal, a fim de obter a efetiva tutela jurisdicional.

Cá pra nós: O curioso é que muitos magistrados quando mudam de lado no balcão, vale dizer, passando a advogar defendem teses opostas quando tinham a poderosa caneta para decidir…

Em Pindorama, os causídicos e as partes sofrem… Até quando?!

___________

1 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, 2014)

2 CÂMARA, Alexandre Freitas, Manual de Direito Processual Civil, 2ª edição, p.69, Gen/Atlas, 2023)

3 CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W; STRECK, Lênio L. (Coords). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1324)

Renato Otávio da Gama Ferraz

Renato Otávio da Gama Ferraz

Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras

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