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1. Introdução
Defendo nesse ensaio a necessidade de se estabelecer uma distinção mais clara entre o ato de concessão e prorrogação das medidas protetivas. A ideia tem reflexos práticos relevantes. Apesar de as protetivas restringirem direitos fundamentais, entendo que a cognição para as conceder deve ser menor que para prorrogá-las. Sustento que o ato de concessão está fundado na versão da vítima e na verossimilhança da sua alegação (concessão: versão da vítima + verossimilhança), ao passo que a prorrogação está fundada em elementos mais concretos, ou seja, demonstração empírica (prorrogação: versão da vítima + demonstração do risco). Isso se deve ao fato de que na prorrogação, a vítima teve tempo suficiente (leia-se: meses) para coletar evidências da suposta continuidade do risco e tecnologia à sua disposição (smartphone) capaz de registrar em tempo real os acontecimentos. Se durante o período de vigência das protetivas, a vítima não logrou demonstrar nenhuma situação de risco, não pode seu desejo de prorrogação ser atendido pela autoridade judiciária. O fundamento de que me valho para exigir maior profundidade e critério na análise do pedido de prorrogação das protetivas está no fato de os direitos fundamentais não admitirem restrições com base em desejo.
2. Desenvolvimento
A lei Maria da Penha é um importante marco legal para a proteção das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Desde a sua promulgação, em 2006, a lei 11.340/06 salvou mulheres, protegendo-as da violência de gênero.
Uma das principais ferramentas de proteção instituídas pela referida lei são as medidas protetivas de urgência. Concebidas atualmente como medidas cautelares satisfativas, aplicadas em sede de cognição sumária, as protetivas são deferidas a partir de uma situação de risco.
O fundamento das medidas protetivas é a prevenção e a repressão à violência doméstica e familiar contra a mulher. Ou seja, para que a autoridade judiciária conceda as protetivas, mostra-se indispensável a existência de situação de risco proveniente de violência doméstica. Em outras palavras, a concessão das protetivas não está amparada apenas no desejo da mulher que se autodeclara vítima de violência doméstica. É preciso que o relato traduza, ainda que em potência, uma situação de risco de violência. O desejo isolado, por si só, não justifica a concessão, muito menos a prorrogação das medidas protetivas.
Não podemos esquecer que toda e qualquer restrição derivada das medidas protetivas afeta direitos fundamentais da pessoa submetida às protetivas. Ainda que se defenda que as restrições advindas das protetivas são geralmente mínimas ou pouco invasivas, é fato que ninguém pode sofrer restrições desproporcionais ou arbitrárias.
As medidas protetivas protegem a vítima de situação de violência doméstica e familiar. Por outro lado, não estão em uma gôndola de supermercado aguardando serem solicitadas ao bel-prazer de quem as reivindica. As protetivas tutelam a vítima contra o risco e não devem ser deferidas a partir de um simples desejo. O pedido de proteção deve se mostrar verossímil. A vontade, por si só, não se mostra apta a embasar o deferimento das restrições, ainda mais contra direitos fundamentais.
Defendo que, para o devido tratamento da questão, se faz necessário distinguir as protetivas em dois momentos distintos: o da concessão e o da prorrogação. Conceder é diferente de prorrogar. Conceder é iniciar; prorrogar é continuar.
Para fins de concessão das protetivas, a versão unilateral e coerente da mulher autodeclarada vítima é demasiadamente relevante e crucial para embasar a outorga da proteção. Não fosse assim, os fins da lei Maria da Penha estariam frustrados. Exigir da vítima, na concessão das medidas protetivas, que demonstre concretamente a situação de risco, poderia acarretar proteção insuficiente.
De outro lado está a prorrogação. Prorrogar pressupõe vigência prévia das protetivas e vontade da vítima de mantê-las por mais tempo. A prorrogação amplia a vigência das restrições. Defendo que a regra para a concessão deve ser diferente da aplicada para a prorrogação.
No momento da concessão, a versão da vítima é relevante e suficiente para a outorga da proteção, desde que verossímil o relato; já na prorrogação, defendo que a versão pura e simples da vítima não autorizaria a manutenção das restrições.
Na prorrogação, é preciso algo mais que o simples desejo: exige-se demonstração empírica mínima da continuidade do risco.
Isso porque entre a concessão e a prorrogação existe um tempo decorrido, o que permitiria maior facilidade de a vítima demonstrar a continuidade do risco a justificar a prorrogação das restrições.
Um dos motivos para se exigir comprovação (mínima) do risco no pedido de prorrogação pode ser explicado pela presença cada vez mais intensa e marcante da tecnologia em nossas vidas. A popularização dos smartphones tem impactado toda a sociedade da informação. Tais equipamentos fazem parte da vida das pessoas. Atualmente, não é possível imaginar alguém sem um smartphone. Esse equipamento está incorporado à realidade. Eles captam e gravam tudo em tempo real. São capazes inclusive de registrar a localização, de gravar conversas e ligações, além de produzir vídeos com qualidade impressionante. Não podemos pensar no Direito sem considerar os impactos que a tecnologia e os smartphones representam, em especial para a lei Maria da Penha.
Em nosso cotidiano, um simples botão é capaz de registrar todos os acontecimentos em nossa volta. As pessoas registram encontros, eventos, e comumente publicam simultaneamente os acontecimentos em tempo real em suas redes sociais. Essa relação complexa tem total correlação com as medidas protetivas.
Sustento que, se após meses de vigência das medidas protetivas, a vítima solicitar a sua prorrogação por entender que ainda persiste o alegado risco, é crucial que o pedido de prorrogação das restrições seja criteriosamente avaliado pela autoridade judiciária. O pedido de prorrogação das protetivas deve ser acompanhado de demonstração mínima, sobretudo porque a vítima dispõe de poderoso instrumento probatório em seu poder, que é o smartphone, e meses de vigência de protetivas em que poderia registrar o risco alegado. Ora, se mesmo após dispor de todo esse tempo à disposição, a vítima não lograr minimamente demonstrar a situação de risco alegada, defendemos que é hipótese de revogação das protetivas.
No entanto, na prática, os pedidos de prorrogação vêm sendo deferidos acriticamente de forma automática. Basta a vítima assim desejar, que as protetivas são automaticamente concedidas ou prorrogadas. O que se presencia na prática, de forma generalizada, é um total desprezo à avaliação de risco. O risco é medido pelo sentimento da vítima. Se ela disser que ainda se sente em risco, as protetivas são mantidas. As medidas protetivas se transformaram em direito potestativo da mulher. Bastam ser solicitadas, que geralmente serão concedidas. Classifico esse fenômeno como efeito Aladim das protetivas: basta a vítima esfregar a lâmpada, e pronto! Seu desejo é uma ordem (leia-se: as protetivas são concedidas ou prorrogadas). Em matéria de prorrogação, a situação ainda é mais caótica. Se a vítima solicitar a prorrogação, é como se fosse uma ordem dada ao juiz. No âmbito das protetivas, há o que denomino império do desejo da “vítima” sobre a independência jurisdicional. Tenho lá minhas dúvidas se existe independência funcional no âmbito das medidas protetivas. O que o Estado fez foi entregar a toga para a vítima e deixá-la decidir sobre os rumos das medidas protetivas. O juiz, nesse cenário, atua como chancelador do desejo e não mais como garantidor dos direitos fundamentais. Enquanto isso, assistimos atônitos a séculos de construção científica se desfazendo.
3. Conclusão
De todo exposto, é indispensável uma atualização legislativa para diferenciar o momento da concessão e da prorrogação das medidas protetivas. Defendo que a concessão e a prorrogação de medidas possuem cognição diferentes. Na concessão vigora o princípio da precaução, aplicando-se o in dubio, pro proteção. Nesse estágio inicial, a versão da vítima assume relevância e é suficiente para embasar a outorga da proteção à vítima. Já a prorrogação, que pressupõe meses de vigência, defendo que o desejo da vítima não é suficiente. É preciso demonstração empírica da continuidade do risco, especialmente diante do tempo de vigência e da tecnologia à disposição, que facilita o registro e a demonstração do risco alegado. Entendo que, se o pedido de prorrogação de protetivas vier desacompanhado de evidências mínimas, é caso de revogação das restrições. Isso se explica porque as medidas protetivas são restrições a direitos fundamentais, que não podem depender do desejo.
Júlio Cesar Konkowski da Silva
Advogado especializado na defesa na LEI MARIA DA PENHA e em MEDIDAS PROTETIVAS, com atuação em todo o Brasil.