Roberto Campos (o avô), o Banco Central e eu   Migalhas
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Roberto Campos (o avô), o Banco Central e eu – Migalhas

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O BCB – Banco Central do Brasil está completando 60 anos de uma magnífica jornada e eu tive a honra de nele servir por metade desse tempo, de 1967 a 1997. Mas o que tem o Roberto Campos a ver com isso? Vamos lá.

Roberto Campos, amado por muitos e odiado por outros tantos, dotado de inteligência aguda e de vastos conhecimentos, foi uma das figuras mais importantes da recente história política e econômica brasileira, tendo começado a sua carreira quando da sua aprovação por concurso do Itamarati, em 1938 e tomado posse em abril de 1939. É muito longa a relação dos cargos públicos que ocupou ao longo de todos os anos de sua vida como servidor – encerrada 50 anos depois, tendo convivido e trabalhado com 14 presidentes e exercido infindáveis missões de relevo. 

Mas o meu objetivo é tratar da biografia de Roberto Campos tão somente no que diz respeito às suas relações com a SUMOC – Superintendência da Moeda e do Crédito – e do Banco Central do Brasil, do qual aquela foi o embrião, a par da sua participação na criação do BNDE – Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, então ainda sem o “S” de Social, fato que, entre outros, lhe proporcionou conhecimento do sistema bancário1. Depois falarei um pouco do que foi a minha experiência naquela instituição como um parafuso daquela complexa engrenagem.

Como já tive a oportunidade de me manifestar em outras ocasiões2, a SUMOC foi criada com o fim da sua futura transformação no nosso Banco Central, como resultado de uma campanha internacional da adoção de instituições da espécie por todo os países que até então não os conheciam. Na América Latina, isso ocorreu pela visita da missão empreendida por Sir Otto Niemeyer, que esteve no Brasil em 1931. Entendiam os governos democráticos, a ONU e as instituições financeiras internacionais que agasalhar bancos centrais como o núcleo dos sistemas financeiros nacionais contribuía fortemente para a segurança financeira interna, o controle do papel da moeda e a redução da inflação. O resultado positivo assim alcançado seria muito bom para os países que comprassem aquela ideia e para a realização segura do comércio internacional. Bem a propósito Roberto Campos proferiu uma palestra no Paquistão em 1964 sobre a política monetária nos países em desenvolvimento, ao tempo em que aqui nos encontrávamos na véspera da criação do BCB (p. 544 das referidas memórias). 

Relatou Roberto Campos que o primeiro projeto de lei para a criação do Banco Central entre nós foi o de número 104, apresentado em 1950 por Correia e Castro, ministro do Governo Dutra. Nele era previsto o Banco Central como órgão executor da política monetária e um Conselho Monetário na qualidade de órgão normativo. Paralelamente seriam criados cinco bancos estaduais especializados, o Banco Rural do Brasil, o Banco Industrial do Brasil, o Banco de Investimento do Brasil, o Banco Hipotecário do Brasil e o Banco de Importação e Exportação do Brasil, tendo sobrado nos diversos projetos sucessivos apenas a ideia do Banco Rural. No movimento em questão surgiram três questões controvertidas: (i) a proibição ou permissão do financiamento do déficit do Tesouro pelo Banco Central; (ii) o tratamento especial a ser dado ao setor rural; e (iii) a redefinição do papel a ser exercido pelo Banco do Brasil.

Observo que dois pontos fundamentais do BCB que veio a ser criado em 1964 já estavam presentes no Projeto 104, ou seja, a competência para o exercício da política monetária – que dependeria da plena autonomia do órgão – e a ideia de um Conselho Monetário, dotado de funções normativas de segundo grau. 

A questão do financiamento ao Tesouro sempre foi de enorme interesse e jamais resolvida de forma inteiramente adequada. Dois limites extremos se apresentavam, o da proibição total e o da permissão total, ficando no meio algum modelo que permitisse essa prática, aceitável dentro de certos parâmetros muito rígidos para que o Banco Central não se transformasse em financiador regular dos déficits dos Governos. Atualmente a matéria é disciplinada pela lei 13.820/19, que estabeleceu as relações financeiras entre a União, o BCB e a carteira de títulos mantida por esse para o fim da condução da política monetária. Não sendo esse o objeto do presente artigo, anotamos que no art. 2º da referida lei, o resultado positivo apurado no balanço semestral do BCB, após a constituição de reservas, será considerado obrigação da referida entidade com a União, devendo ser objeto de pagamento até o 10º dia útil subsequente ao da aprovação do balanço semestral. Os valores correspondentes somente podem ser utilizados para o fim do pagamento da DPMF – Dívida Mobiliária Federal. Além disso, nos termos do art. 3º, a parcela do resultado positivo apurado no balanço semestral do BCB que corresponder ao resultado financeiro positivo de suas operações com reservas cambiais e das operações com derivativos cambiais por ele realizadas no mercado interno, observado o limite do valor integral do resultado positivo, será destinada à constituição de reserva de resultado.

Verifica-se que no próprio site do Tesouro Nacional a DPMF é a dívida contraída por aquele órgão para financiar o déficit orçamentário do governo Federal, nele incluído o refinanciamento da própria dívida, bem como a realização de operações com finalidades específicas definidas em lei.

Ora, a discussão sobre esse tema, feita sobre os projetos originais, mostra que a solução veio a ser pior do que se encontrava nas primeiras propostas, isto é: (i) o financiamento direto pelo BCB ao TN se dá automaticamente pela obrigação da transferência a este do resultado positivo apurado no balanço semestral do primeiro, independentemente de qualquer condição; e (ii) existe apenas um pseudo limite ao destino dos valores repassados pelo BCB ao Tesouro, pois podem se constituir em um moto contínuo, na medida em que eventualmente se prestarão ao refinanciamento da própria dívida. 

E na lei vigente, a contrapartida, nos casos em que o balanço semestral do BCB se revelar negativo, a contribuição da União somente se dará depois de reveladas sucessivamente algumas impossibilidades, nos termos do art. 4º da lei acima citada: (i) reversão da reserva de resultado constituída na forma do art. 3º daquela Lei; (ii) redução do patrimônio institucional do Banco Central do Brasil; (iii) a cobertura do resultado negativo na forma do inciso II do caput deste artigo somente ocorrerá até que o patrimônio líquido do Banco Central do Brasil atinja o limite mínimo de 1,5% do ativo total existente na data do balanço; (iv) caso o procedimento previsto no caput do art. 4º não seja suficiente para a cobertura do resultado negativo, o saldo remanescente será considerado obrigação da União com o Banco Central do Brasil, devendo ser objeto de pagamento até o 10º dia útil do exercício subsequente ao da aprovação do balanço.

Assim sendo, o casamento do BCB com o Tesouro Nacional quanto aos déficits em pauta está desbalanceado nas relações entre eles, sendo o grande mal o financiamento tão desequilibrado do déficit público. E se alguma mudança legislativa vier a ocorrer, será importante rever os critérios atualmente vigentes para que governos irresponsáveis não vejam os recursos daquele órgão como uma caderneta de poupança. 

Por sua vez, a proposta original da criação de alguns bancos estaduais especializados, que não teve êxito, representava um grande perigo para as finanças públicas, tendo em vista o forte risco do seu controle administrativo e operacional pelo peso das forças políticas que os envolveriam, no seu desvirtuamento. Isso foi precisamente o que aconteceu com quase todos os bancos estaduais que vieram a ser criados no futuro, invariavelmente quebrados pelas suas gestões, solução que somente veio a se dar pela instituição do Programa PROES que, ao lado do PROER foi o preço pago pela sociedade brasileira para que não acontecesse uma quebra generalizada do sistema financeiro interno3.

Voltando às memórias de Roberto Campos, sobre a SUMOC e a criação do BCB, nelas ele relatou a existência de uma verdadeira odisseia de projetos e de ideias a respeito, umas boas, outras que poderiam se revelar verdadeiras calamidades financeiras caso adotadas, não havendo aqui espaço para falar de todas elas. 

Anote-se que uma das forças mais atuantes contra a proposta da criação do BCB residia no BB – Banco do Brasil, que por meio daquele evento perderia espaço e consequente importância, tendo havido uma ideia consistente na simples transformação em autoridade monetária, substituindo-se o Conselho da SUMOC em um “Conselho Nacional da Moeda e do Crédito”. Ora, esse seria um remendo com tecido velho e outro tecido mais velho ainda. Na lei de reforma bancária o BB recebeu uma competência diferenciada das demais instituições financeiras, o que teria dado abertura para o sério problema que foi o da chamada conta-movimento.

Para Roberto Campos, o grande herói da reforma bancária foi o professor Otávio Gouveia de Bulhões que, depois de retornar da conferência de Bretton Woods de 1944, propôs a criação da SUMOC que no futuro deveria redundar no BCB. Essa ideia foi transformada na lei 7.293/45, outorgando àquele órgão a competência para a coordenação da política monetária, atuando também como interlocutora perante as instituições financeiras internacionais. Isso quer dizer que se haviam passado 13 anos da passagem de Sir Otto Niemeyer pelo Brasil, ainda sem o resultado de termos nosso Banco Central, o que somente ocorreu 19 anos mais tarde. Afinal de contas, o Brasil sempre teve o futuro à sua disposição, tendo se especializado em viver décadas perdidas.

A vida da SUMOC, ao lado de suas limitações operacionais legais, não foi nada fácil. Sabe-se que o Brasil não tinha um sistema financeiro, mas um aglomerado de instituições financeiras públicas e privadas e de órgãos dotados de poder de atuação naquele mercado, com competências que muitas vezes podiam se revelar superpostas, ao lado de outras sem regulamentação apropriada ou simplesmente inexistente. Esse problema se manteve na gestão inicial do BCB, agravando-se pelo fato de que a competência originária deste para incluía o mercado de capitais, que lhe foi outorgada pela lei 4.728/65, cujo exercício foi um verdadeiro desastre e sobre o qual falarei um pouco mais adiante4.

Observou Roberto Campos que a gestação do embrião BCB foi lenta e difícil, durante a fase da SOMOC, diante do enorme trabalho que havia pela frente, devendo ser feita a reorganização e regulamentação dos bancos e de outras instituições presentes algumas limitações na área do câmbio. E o câmbio, sabemos, foi e é um dos calcanhares de Aquiles da economia e do Direito Bancário brasileiro, tendo em vista a nossa desorganização econômica institucional, as deturpações do comércio internacional e a sempre presente inflação. 

Sob a SUMOC a busca da disciplina do crédito sempre foi problemática, com dificuldades na área do redesconto, do compulsório e do open market, tendo sido um grande desafio disciplinar a expansão creditícia do BB, concorrente privilegiado ao lado da Caixa Econômica Federal frente às instituições privadas.

O BB, ao tempo da SUMOC – o que se estendeu durante algum tempo depois de criado o BCB – era um deus com muitas faces. Ele ao mesmo tempo exercia tarefas próprias dos bancos centrais (inclusive um tipo de redesconto diante da rede bancária) e operações no mercado de câmbio, onde se verificaram vários desencontros, atuava como um banco comercial e como um banco financiador do setor agrário, função aliada à de fiscalização da utilização dos empréstimos concedidos. Um verdadeiro imbroglio.

No mercado de crédito um dos pontos altos foi a regulamentação das sociedades de crédito, financiamento e investimentos, por meio da portaria SUMC 309/59, somente revogada depois de criado o BCB com a resolução 45/66 do CMN, que as configurou oficialmente como instituições financeiras que já eram pela definição do art. 17 da lei 4.595/64. Essa norma se prestou ao suprimento de crédito de médio e de longo prazo, o que facilitou a consolidação de bens de consumo duráveis, de preço elevado (aparelhos de TV coloridos) e da indústria automobilística. Para tanto foi criado um tipo de letra de câmbio ao portador, ao arrepio da Convenção de Genebra sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias, sacadas pelos adquirentes dos bens financiados e aceitas por aquelas instituições que as colocavam no mercado com deságio sobre o preço de face. Esse mecanismo, bem a propósito, colocava tais operações ao largo da renitente lei da usura, que limitava os juros contratuais em 12% ao ano, frente a uma inflação até muitas vezes superior. Como os valores de muitas das referidas letras de câmbio eram de valor relativamente baixo e diferentes entre si, as financeiras criaram um tipo de securitização, por meio da qual elas eram reunidas em pacotes de valores homogêneos para a sua destinação do mercado. Esses títulos tiveram um grande sucesso, o que foi abalado posteriormente por frequentes falsificações daquelas letras de câmbio e sua multiplicação, uma imitação barata e fraudulenta multiplicação dos pães e peixes do Novo Testamento, sendo os mesmo títulos negociados em diferentes financeiras, o que gerou a quebra de algumas, a começar da ADEMPAR, em 1980, já ao tempo do BCB. Ou seja, os pacotes de letras de câmbio falsos correspondeu à criação de um subprime tupiniquim.

Na caminhada da criação do BCB o corporativismo exercido pelo BB sempre foi muito forte, tendo sido alegada a inviabilidade da criação daquele pela falta de recursos humanos, que segundo os defensores da transformação deste último em banco central, somente com os seus funcionários tal objetivo poderia ser alcançado. É interessante que esse inconveniente foi superado pelo art. 52 da lei 4.595/64, o qual permitiu ao BCB requisitar funcionários do BB e de outras instituições financeiras, para a realização de suas competências. Dessa forma, a par de requisições individuais, foram transferidos diversos departamentos do BB – porque suas funções havia sido transferidas ao BCB – junto com todos os seus funcionários, a não ser aqueles que resolveram permanecer nas instituições de origem. Entre outros casos, isso se deu com o câmbio, o registro e fiscalização dos capitais estrangeiros e o crédito rural.

Aliás, um dos maiores óbices à criação do BCB, conforme relatou Roberto Campos, foi precisamente a oposição dos ruralistas que desejavam a criação de um banco para o setor, tendo sugerida uma solução completamente estapafúrdia, consistente no privilégio de que as dívidas correspondentes não estivessem sujeitas a correção monetária. A sugestão que veio a ser proposta representou a instituição de um sistema de crédito rural, que integrasse o BB e os bancos privados, cabendo ao BCB atuar na realização do redesconto das dívidas correspondentes.

Precisamente o redesconto foi mais um tema de discussões, tendo sido proposta a configuração de duas modalidades, o de liquidez e o destinado aos financiamentos que viessem a ser favorecidos, entre os quais os relativos ao crédito rural. O redesconto de liquidez seria destinado ao socorro das instituições financeiras que atravessassem problemas pontuais com prazo máximo de pagamento de 15 dias e praticado a taxas punitivas. O fundamento mais do que correto estava no fato de que bancos não podem se manter descobertos, tendo em conta os saques a vista e a curto prazo que, não pagos, os levariam a uma solução de inadimplência, acarretando a intervenção, a liquidação ou falência. 

A questão fundamental dos mandatos dos diretores do BCB foi um problema que causou embates muito quentes desde os primeiros projetos a respeito de sua criação, tendo passado por diversos estágios, seja de fato, seja na lei e até hoje ainda cria dissensos. Se Roberto Campos disse a certa altura de suas memórias que os economistas são em geral favoráveis à autonomia dos bancos centrais, eles passam para o outro lado quando se tornam Ministros da Fazenda, quando a consideram um incômodo. Mas esse fato somente acontece quando os governos entendem que não devem estar sujeitos a freios na sua atuação político/econômica enquanto os bancos centrais agem para segurar a gastança irresponsável. Várias dessas novelas nós já assistimos, inclusive encenada pelo atual Governo.

Eu do meu modesto lado digo, sem qualquer originalidade e muito bem acompanhado, que quase todos os governantes, especialmente no Brasil, desejam um banco central para chamar de seu. E se os interessados não podem alcançar seus objetivos de forma direta, buscam fazê-lo pela demissão de diretores do BCB considerados por eles como não ligados às suas políticas e procuram nomear alguém que possa ser tomado como seus serviçais. A esse respeito Roberto Campos afirmou com todas as letras que o BCB em certas situações teve na sua administração a rotatividade de uma casa de tolerância.

Na esfera do mercado de capitais, o BCB recebeu competência para nele atuar pela lei 4.728/65, o que representava um desvio do padrão internacional moderno, que já havia adotado o modelo de um órgão especializado, tal como o da SEC americana – Securities and Exchange Comission, criada em 1934, como uma das respostas legislativas à crise de 1929.

Segundo a lei acima citada, os mercados financeiro e de capitais seriam disciplinados pelo CMN e fiscalizados pelo BCB (art. 1º), dentro de uma competência bastante extensa, relacionada nos arts. 2º e 3º. Ainda que a lei 4.728/65 fosse considerada, segundo Roberto Campos, como um documento complexo, extremamente sofisticado para a época, dotada de qualidades importantes, ela apresentava alguns problemas internos e externo, pois foi desastrosa a atuação do BCB naquela área.

Do ponto de vista qualitativo foi extremamente relevante o estabelecimento de uma disciplina sistematizada para o MC, antes inexistente, com competências a ele respeitante espalhadas por outros órgãos governamentais. Também contou favoravelmente a separação entre instituições financeiras de crédito – os bancos comerciais – e aquelas que operavam no MC – bancos de investimento -, havendo empresas mistas, como as financeiras, que atuavam nos dois lados. Na verdade, a separação em relação ao BCB foi feita tão somente no papel, uma vez que sua competência se espraiava pelos diversos institutos dos dois mercados. Do ponto de vista a compartimentalização das operações era se no fundo nominal, pois os grupos financeiros possuíam instituições atuantes nos dois mercados, como também no imobiliário e securitário, na formação de conglomerados financeiros. Essa separação fictícia terminou pela criação dos bancos múltiplos, nos quais as diversas empresas que formavam os grupos financeiros poderiam passar a operar por meio de carteiras especializadas naquelas instituições múltiplas, se fosso o caso separando-se as suas atividades de pelo recurso a chinese walls, o que se revelou na prática como um segredo de Polichinelo, pois dentro do banco múltiplo todo mundo sabia de tudo. 

Uma verdadeira revolução no MC foi a instituição pela lei 4.728/65 da alienação fiduciária em garantia, nos seus arts. 66, somente revogado pela lei 10.931/01, quando foi disciplinada a alienação fiduciária em garantia no âmbito do MC, sem prejuízo para a sua utilização no mercado de crédito bancário. Inspirada no modelo americano do trust, aqui ela jamais se aclimatou de forma absolutamente adequada, dada a diferença substancial entre os princípios da commom law e do direito continental europeu ao qual nos filiamos, especialmente diante de uma interpretação desnaturadora da sua essência pelos tribunais pátrios, motivos de querelas sem fim.

Uma das facetas negativas foi a falta de experiência do BCB no MC, considerando que não havia internamente expertise naquela área, tendo em vista que seus funcionários eram originados da SUMOC e do BB, mais experientes no mercado financeiro – com forte ênfase nas operações de desconto e de crédito rural – mais ligada ao dia a dia dos bancos, que até a criação do BCB era responsabilidade do BB, inclusive quanto à fiscalização dos recursos financeiros destinados àquele setor. Do meu lado, apesar de ter adquirido conhecimentos na área do MC, demonstrado pela minha participação como coautor da obra “Vade-Mécum do Mercado de Capitais” publicada em, 1971, somente fui ali aproveitado brevemente no final de 1963, quando houve uma mudança na diretoria correspondente do BCB por motivo de um escândalo, tendo eu sido designado para montar o gabinete do novo diretor, Paulo Yokota no Rio de Janeiro. Com a mudança do governo em 1974 deu-se a queda do até então todo poderoso ministro Delfim Netto, com a desmobilização de toda a sua equipe, inclusive no BCB, tendo eu sido nomeado para a nova função de fiscal, recém criada.

Mais um problema havia sido gerado pela promulgação do dec.-lei 157/67, que procurou incentivar o MC por meio de uma renúncia fiscal em favor de pessoas físicas e jurídicas, concernente em uma dedução do IF devido por aquelas (10% para as primeiras, 5% para as segundas) que resolvessem aplicar em ações de empresas ligadas a projetos de desenvolvimento, como a Sudene, a Sudam, etc. A coisa deu muito errado porque o credenciamento das companhias para esse fim se deu junto ao BCB de forma absolutamente descontrolada sobre a identidade das favorecidas e dos seus projetos. Muitas companhias falsas ou com projetos irreais foram aos poucos descobertas5.

O crash das bolsas de valores no Brasil foi o marco da reforma que viria a ocorrer em 1976 com a lei 6.385, criadora da CVM – Comissão de Valores Mobiliários, sucessora do BCB no MC. No final da década de 60, começo da década de 70, o Brasil atravessava o que foi então chamado de Milagre Econômico, face a um aumento significativo da produção industrial e, consequentemente, do PIB. Mas na verdade ele escondia problemas estruturais, no tocante a desequilíbrio econômico, ao lado de uma inflação persistente e do endividamento externo. No ambiente então vivido abriu-se larga margem para especulação desenfreada nas bolsas de valores, tendo sido criada a maior bolha especulativa brasileira, sem precedentes na nossa história. A fome de ganhar nas bolsas era tão intensa que levava indivíduos a venderem casas e carros e a tomarem empréstimos bancários, tudo arruinado quando aquela bolha estourou, tendo sido causa direta da debacle da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. 

O que se percebeu é que o BCB não se deu conta do nascimento e da evolução daquela bolha, tendo eu sido testemunha de colegas que perderam recursos vultosos porque nela haviam acreditado, até alguns da área do MC.

Cabe-me falar um pouco mais do que foi a minha experiência – não somente minha, mas comum principalmente aos servidores do primeiro e do segundo concurso – de trinta anos no BCB, o que faço como um depoimento de quem ali esteve no seu difícil e muito tumultuado começo e ao longo de sua consolidação, até chegar a ser considerado um dos mais importantes órgãos da espécie entre as nações, um verdadeiro modelo a seguir, o que tem sido feito. 

Não havia ainda quadro de carreira próprio, tendo sido copiado provisoriamente o do BB. Os servidores da antiga SUMOC vieram para o BCB na sua condição funcional originária. Os funcionários originados do BB continuavam ligados administrativamente a este como requisitados ao BCB, para efeito de suas promoções. Somente quando veio a ser criado o regime próprio deste é que houve uma unificação. A situação era de uma babilônia administrativa, com diversos regimes em vigência. Somente muito mais tarde, por meio da lei 9.650/68 foi organizado o quadro de pessoal do BCB com três carreiras: a o nível superior. Mas a lei 10.769/03 modificou o regime, para duas carreiras, a de Especialista e de Procurador. Por sua vez, a carreira de Especialista foi dividida em Analista com nível superior e Técnico de nível médio. Mais tarde a lei MP 1.286/24 passou a denominar como de auditor os antigos analistas. 

A situação funcional do BCB continua ruim, a meu ver. De longe e com a experiência passada, me parece ser muito complicado definir com clareza e de forma muito objetiva a separação interna das funções de Auditor e de Técnico, o que deve acontece de forma residual, na medida do disposto no art. 5-A da lei 9.650/88, com a nova redação dada pela MP acima citada, o que já devia acontecer no regime anterior. Evidentemente há um pleito dos funcionários do BCB e dos que se preocupam com a seu futuro em que sejam criadas somente toadas as carreiras sejam de nível superior. 

Voltando ao meu caso – que é emblemático, em 1966 eu prestei concurso para o cargo de escriturário do BCB. Uma das exigências era estar matriculado em alguma faculdade, estando eu na época matriculado na Faculdade de Direito da USP, onde havia ingressado naquele mesmo ano. Jejuno em contabilidade e ruim de matemática, assim mesmo fui aprovado na faixa dos 400 aprovados de um total de 700. Mas o processo de posse demorou e somente tomei posse em abril de 1967, tendo ido trabalhar no departamento que se voltava para a moralização da emissão de cheques sem fundo, objeto da circular 58 do BCB. 

O trabalho era tão pesado e maçante que o setor era chamado internamente de Vietnã. Listas semanais imensas de emitentes de cheques sem fundos eram organizadas a partir de informações colhidas no setor de compensação de cheques e outros papéis e semanalmente distribuídas aos bancos para que as contas dos titulares fossem encerradas, o que foi de quase nenhuma eficácia. Naquele tempo os cheques sem fundo eram uma verdadeira instituição nacional, tendo recebido alguns apelidos no mercado bancário. Assim, o cheque boemia era aquele que estava de regresso para o titular; o cheque faroeste, recebia que sacava primeiro; o cheque borracha porque batia e voltava; e assim por diante.

A função da moralização do cheque parecia não se revelar como própria de um banco central, mas o dano para a economia era extremamente grave, tanto para as finanças individuais quanto as das empresas, que se viam obrigadas a gastar tempo e recursos na busca do recebimento dos valores correspondentes.

Quando assumi a função de fiscal no começo de 1974, a minha primeira função junto com os demais colegas foi a de dar início a uma blitzkrieg voltada para a ainda larga emissão de cheques sem fundo. Eu e outros colegas fomos designados para a fiscalização dos bancos situados na rua Teodoro Sampaio em São Paulo. Ao chegarmos ao primeiro banco, nos apresentamos ao gerente e ele quase morreu de susto porque era a primeira vez que a agência havia recebido fiscais do BCB já que, até então, a fiscalização era exercida somente nas sedes das instituições, com raras exceções. Feita a primeira vistoria foi determinado e fechamento das contas dos emitentes faltosos. A notícia correu célere naquele bairro, conforme íamos subindo aquela rua banco por banco e a partir do terceiro já quase não havia contas a serem fechadas porque as agências tomaram elas mesmas a iniciativa naquele sentido para que o BCB não ficasse de mal com os bancos desobedientes. 

Tendo passado rapidamente pela fiscalização bancária naquele período – logo promovido para o cargo de inspetor do MC, no mesmo ano de 1974 foi transferido para o departamento jurídico mediante comissionamento, já que ainda não havia sido criada a função de procurador, tendo ali ficado até 1978. Neste assim, voltei para o cargo de inspetor do MC até 1986, quando passei no concurso para o cargo de procurador, no qual terminei a minha carreira no BCB em 1997.

Nos anos em que atuei como inspetor na área do MC eu terminei me especializando nos temas relacionados à intervenção lato senso nas instituições financeiras, principalmente como relator das comissões de inquérito previstas na lei 6.024/74, com o fim de promover a responsabilidade civil especial dos seus controladores e administradores. A experiência ali haurida me permitiu escrever a minha tese de doutoramento na Faculdade de Direito da USP, realizada em 1993, como uma contribuição para o aperfeiçoamento do instituto, até hoje não se realizado, estando em curso o estudo de modelos de resolução bancária na esteira do direito comparado. 

No campo do papel do BCB em relação às instituições financeiras insolventes a lei atual apresenta qualidades e defeitos que precisam ser sanados em função de se alcançar maior grau de eficiência. Dada infinidade de questões em jogo a tarefa não é nada fácil e o estudo do direito comparado não dá elementos para um caminho adequado, consideradas as particularidades do nosso sistema financeiro.

Enfim, a conversa já vai muito longe, devendo ser terminada, havendo um bom campo para temas que aqui podiam ser considerados. Mas deve ser anotado que o BCB no qual eu trabalhei, mesmo a partir da experiência da SUMOC e do BB nos setores ligados ao papel por ele exercido antes da criação da nossa Autoridade Monetária, foi uma pálida sombra do que ela é hoje, uma das mais importantes e respeitadas no cenário internacional.

Um destaque que todos percebem no BCB de hoje é o seu domínio na área da do desenvolvimento da tecnologia financeira aplicada ao setor, revelada, por exemplo, na organização do sistema de pagamentos brasileiro e dos arranjo que o compõem, bem como no lançamento do pix, que mereceu um sucesso estrondoso e imediato.

O caminho foi árduo e longo, tendo sido notável a mudança de mentalidade inicial, onde se destacava uma visão meramente bancária do papel do BCB, a partir da formação dos seus primeiros servidores, até alcançar uma visão estratégica do SFN, considerado o panorama internacional, atuando não somente no presente, mas olhando para o futuro, com a percepção do passado, tendo assim operado em favor da estabilidade do SFN e na aplicação de freios à inflação, neste papel enfrentando fortes resistência como todos sabemos. 

O momento é crítico, diante da presente vontade do Congresso Nacional de transformar o BCB em um ente novo e completamente desconfigurado, havendo muitos interessados em se tornar o seu patrão.  

Como disse acima, nos meus trinta anos de serviço ao BCB eu exerci o papel de um parafuso integrante de uma grande máquina, tendo procurado ser útil à sua finalidade institucional.

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1 Recomendo fortemente a leitura das memórias de Roberto Campos, calhamaço de mais de mil páginas, “Lanterna na Popa”, Rio de Janeiro, Topbooks, 1994.

2 In “Bancos Centrais no Direito Comparado- O Sistema Financeiro Nacional – O Regime Vigente e as Propostas de Reformulação, ed. Malheiros São Paulo, 2005”; “Aspectos da Teoria Geral do Direito Bancário – A Moeda e o Sistema Financeiro Nacional e Internacional”, Ed. Dialética, São Paulo, 2022; e em diversos artigos publicados particularmente na Revista de Direito Mercantil e no Jornal Eletrônico Migalhas”.

3 Conta-se que certo governador afirmava que quebraria o banco do seu estado, mas elegeria o seu sucessor, o que efetivamente ocorreu.

4 Veja-se que funções estranhas aos bancos centrais estavam ou caíram nas mãos do BCB, como é o caso dos consórcios, lembrando que em 1979 houve a quebra do Almeida Prado, então o maior um funcionamento no Brasil, que apresentava perdas para milhares de consorciados em todo o País. Verificou-se que a competência para a aprovação de sua instituição e de sua fiscalização estava em mãos da Receita Federal que se revelou a esse respeito inteiramente omissa. A pressão política foi muito forte e tal competência foi repassada ao BCB, que decretou liquidação extrajudicial daquele consórcio a qual durou de 1979 a 1992, ao lado de um solução de mercado. Eu vim a ser relator da Comissão de Inquérito que deveria identificar as causas da quebra e responsabilizar os administradores. Fato pitoresco estava na exigência de haver 100 consorciados para a aprovação de um grupo. Os administradores então inventaram consorciados fantasmas tomando nome de ruas ou de pessoas conhecidas, como o corredor de Fórmula 1 Nelson Piquet e José Carlos Pace, em grupos para aquisição de fuscas. E a conta também não fechava porque além da inadimplência natural, no mesmo grupo havia inscritos para adquirir o sonho de consumo que era o Ford de luxo, ao lado dos inefáveis fuscas. Quando era sorteado um fusca o grupo dava lucro. Se era um Ford, dava prejuízo. Até hoje essa criança está no colo do BCB que não vê a hora de passar para outro pai, tendo em conta a missão impossível de fiscalizar um consórcio com sede em Caixa Prego.

5 No meu caso, fazendo a declaração de IR do meu pai para o fim da referida dedução, escolhi numa lista oficial uma companhia da área da Sudene. Mais tarde soube que ela – que se dizia uma empresa de fabricação de instrumentos de precisão – não passava de uma fábrica de despertadores de corda do interior de Pernambuco.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE – Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

Duclerc Verçosa Advogados Associados Duclerc Verçosa Advogados Associados

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