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“E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém.”(Hobbes, no capítulo XVII do Leviatã.)
Introdução
Se mirarmos a história, não há razões para duvidar de que o ser humano tende a viver em sociedade. Daí a célebre premissa de Aristóteles, que embasa seu pensamento político: o homem é um animal social e, por conseguinte, político (zoon politikon)1. É político porque, uma vez presente a sociabilidade, torna-se inevitável a luta pelo poder. Política, portanto, confunde-se com o poder. Percebe-se que há, por trás dessa concepção, uma especulação sobre a natureza humana, tratada de forma variada por uma plêiade de pensadores – a cada qual corresponde uma convicção sobre a indagação “o que é o homem?”. Se tomada como referência a filosofia política de Thomas Hobbes (1588-1679) – a partir, sobretudo, de sua seminal obra Leviatã2 (cuja primeira edição inglesa data de 1651) -, há um afastamento da noção naturalista de Aristóteles3; em lugar dela, aponta-se para um estado de natureza em que os homens são “lobos” uns para os outros; em que, na anarquia, haveria uma “guerra de todos contra todos”. Adentrarei os pormenores da teoria de Hobbes na seção 1.
Por ora, sobreleva assentar que os pressupostos hobbesianos contribuem demasiado para analisar a política brasileira hodierna. Mas até certo ponto; pois nosso cotidiano político recente (principalmente de 2013 para cá4) sugere um estado anterior a um “pacto de soberania”: não é exagero concluir que vivemos, na política nacional, ao menos momentaneamente, uma guerra de todos contra todos. Após o mandato do conservador e reacionário Jair Bolsonaro (2018-2022), a eleição de Lula (2022) sinalizou o retorno a um período genuinamente democrático. No entanto, as relações com o Congresso Nacional permanecem delicadas, especialmente em função da manipulação em torno da governabilidade maquinada pelo Centrão – o que não é novidade, já que, como veremos adiante5, o Centrão se infiltra na política brasileira desde, no mínimo, a redemocratização pós-1985; e, atualmente, apropria-se indevidamente de toda a estrutura do Poder Legislativo nacional, inclusive do orçamento (adiante, mencionaremos as controversas emendas parlamentares, componentes de um “orçamento secreto”). Disso tratarei na seção 2.
Um aspecto que quero ressaltar nas ideias de Hobbes é a indispensabilidade do direito positivo para a vida em sociedade, sintetizada na máxima “os pactos sem a espada não passam de palavras”6. Isto é, acordos sem o receio de coerção, sem um meio de compelir os pactuantes à obediência do contrato social, se esvaziam; são meras palavras jogadas ao vento. E, curiosamente, percebo que a “espada” que tem insurgido para refrear as intenções quase nunca nobres do Centrão é o Supremo Tribunal Federal – STF. Já me manifestei, noutras oportunidades7, quanto aos riscos indesejados de uma “ditadura do Poder Judiciário”. De fato, qualquer desequilíbrio de um dos Poderes na balança de freios e contrapesos é preocupante para o Estado de direito. Não obstante, é simplesmente factual que o Supremo tem sido a única instituição capaz de impor limites à promiscuidade do Centrão – como uma espada, no exercício de sua atribuição e missão constitucional de guardião da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB8. O Poder Executivo, por seu turno, está cada vez mais refém dos ardis do Parlamento, incapaz de estabelecer acordos políticos com segurança e equidade, inexistindo uma confiabilidade recíproca entre a Presidência da República e o Congresso Nacional. Conclamado a salvaguardar a Carta Cidadã, o Supremo desempenha, hoje, protagonismo necessário, imprescindível para a democracia pátria. Desenvolverei essa tese na seção 3.
Antes de passar às seções deste artigo, já à guisa de antecipar uma conclusão propositiva, gostaria de incitar os leitores a uma reflexão algo otimista sobre formas de, por meio de amplo e democrático engajamento social, pensarmos modelos mais efetivos de controle social do patrimônio público. Vá-se, então, aos argumentos.
1. A regra da política: Hobbes, pactos e a espada
Nesta seção, estabelecerei minhas premissas filosóficas de análise, a partir da leitura e interpretação da teoria do contrato social de Hobbes, extraindo desta o que for útil para compreender o tema ora proposto. Tal teoria foi fundante do juspositivismo moderno, ao entender o direito como uma convenção, no contexto turbulento da Guerra Civil inglesa (1642-1651)9. Noutra obra10, assim busquei contextualizar e sintetizar o pensamento hobbesiano:
No século XVII, no auge das monarquias absolutistas europeias, acreditava-se que apenas um Estado unificado governado por um soberano forte, onipotente, todo-poderoso seria capaz de dar fim à guerra de todos contra todos; de apaziguar os ímpetos oriundos da inelutável busca pelo benefício próprio; de conciliar os direitos com a segurança coletiva e, em última instância, individual; de, em outras palavras, impedir que a igualdade de todos perante a lei natural tornasse a sociedade ingovernável. Apostava-se na cessão contratual, tacitamente pactuada, da liberdade individual de cada um em benefício de uma liberdade soberana que a todos se impõe, da qual era titular o monarca absoluto, símbolo e depositário da lealdade do Estado. O pensamento hobbesiano é a expressão máxima dessa visão.
Seguindo essas pistas, assentemos que o edifício argumentativo de Hobbes consiste nestas fundações: (a) a compreensão do estado de natureza que exprime uma antropologia negativa, devido à (a.1) razão calculadora e à (a.2) igualdade generalizada; (b) a consequente guerra civil; (c) a necessidade de pactuar a paz permanente, mediante um contrato social, (d) o qual constitui o soberano e o direito positivo, (e) cujas decisões são garantidas pela coerção do Estado. Se não, vejamos.
A antropologia hobbesiana (sua concepção acerca da natureza humana) afasta-se da concepção aristotélica à medida que se aproxima da concepção maquiavélica. O humano, segundo Aristóteles, é naturalmente “animal social” (zoon politikon) e só desenvolve suas potencialidades dentro da sociedade. Pressupõe-se daí uma sociedade harmônica, bem contrária à visão tensionada de Hobbes, que, ao invés, detecta o conflito (a “guerra civil”) e almeja contê-lo11. Ambas as filosofias divergem fundamentalmente12 já no seu ponto de partida: enquanto a razão humana em Aristóteles é “ética” e comunitária, voltada a servir a polis em busca do bem comum, a razão humana em Hobbes é “antiética”, calculadora, voltada a assegurar o benefício próprio, seja a vantagem, seja a glória13. A ideia de razão calculadora é, antes, tributária de Maquiavel14, para quem o mundo seria desprovido de harmonia natural, motivo pelo qual nada asseguraria a plausibilidade de compreender a política sob o primado da ética, daí a política estar à mercê da força e da coerção15. Entendemos então por que o indivíduo depende de um instrumento político equivalente a uma ordem social estável: porque, em sua experiência da condição humana, empreende cálculos racionais, sendo a ordem política o caminho mais racional para que atinja seus objetivos e interesses16.
Junta-se ao pressuposto da razão calculadora o pressuposto da igualdade generalizada entre todos os homens no estado de natureza. Sendo todos naturalmente iguais tanto nos interesses quanto nos direitos, ceticamente Hobbes17 vaticina, no capítulo XIV:
O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim’. (…) O estado de natureza é uma condição de guerra, porque cada um se imagina (com razão ou sem) poderoso, perseguido, traído.
Os desejos humanos perfazem a busca pela autopreservação (sob o medo) e pela vantagem (impulsionada pela esperança). Se todos desejam os mesmos bens com capacidades semelhantes de auferi-los, e se esses bens são escassos, instaura-se a inevitável competição que, ao se generalizar, aflora na guerra civil18. Isso porque, dotados da razão calculadora já no estado de natureza, conforme anota o jusfilósofo Wayne Morrison19, “os homens recorrem à violência e ao embuste, à fraude e à trapaça para satisfazer seus desejos e necessidades”. No entanto, não se trata de uma luta necessariamente real, mas de uma disposição para guerrear na ausência de garantias para a paz (como se anota no capítulo XIV):
(…) durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida20.
Desse contexto abstratamente belicoso, surgiria a necessidade de firmar o contrato social (veja-se o capítulo XIV, idem):
Desta lei fundamental da natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em qual tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo. Porque enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira, todos os homens se encontrarão numa condição de guerra21.
Veja-se que a cessão da liberdade dos indivíduos uns aos outros é que permitirá a liberdade geral compositiva de uma unidade política. A liberdade irrestrita, antissocial e apolítica do estado natural é então transferida ao soberano22, “este, sim, responsável pela guarida da paz social, pelo apaziguamento da guerra de todos contra todos”23. Na verdade, a própria sociedade nasce concomitantemente à constituição do Estado, como se lê nesta passagem do capítulo XVII:
(…) conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é, mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações24.
Promana daí o direito positivo: são as regras editadas pelo soberano, no papel de representante de cada cidadão do Estado, que hão de ser subsumidas à vontade de cada indivíduo representado. A liberdade individual dá-se na forma de cessão contratual, a qual fundamenta a irrevogável autoridade do soberano (do Leviatã), artefato criado pela anuência de uma multidão amorfa de indivíduos isolados e calculistas25. Esse monstro bíblico, essa criatura teratológica evocada pelo Estado impinge medo aos súditos, que, pelo medo mesmo, lhe devotarão obediência. A coerção jurídica, logo, é uma força externa que visa à garantia de não ruptura do pacto social. É o direito posto pelo soberano, aliás, que definirá o que são justiça e injustiça (a saber: justa é a manutenção dos termos pactuados, enquanto injusto é seu rompimento). A fim de garantir a estabilidade da ordem social e conferir-lhe legitimidade, a coerção atua como poder garantidor do cumprimento dos contratos: “estes serão inúteis a menos que exista algum poder capaz de fazê-los cumprir – e punir seu rompimento”26. A esse propósito, leiam-se as palavras de Hobbes27, no capítulo XV:
(…) antes que as palavras ‘justo’ e ‘injusto’ possam fazer sentido, é preciso haver algum poder coercitivo que obrigue igualmente os homens a cumprir seus pactos por medo de algum castigo que seja maior que o benefício que esperam obter mediante o rompimento do pacto, e também capaz de valorizar aquela propriedade que os homens adquirem por contrato mútuo, em recompensa pelo direito universal de que abriram mão; e esse poder não existe antes da criação de um Estado. (…) Vínculos cuja força não provém de sua própria natureza (uma vez que nada se quebra mais facilmente do que a palavra de um homem), mas do temor de alguma consequência funesta que decorra da ruptura. (…) De modo que a natureza da justiça consiste em manter a validade dos pactos, mas tal validade só começa com a constituição de um poder civil suficiente para forçar todos os homens a mantê-los (…).
Por serem justos e necessários os pactos, e por ser o homem naturalmente egoísta e indisposto ao seu cumprimento, é necessária a instauração do medo – da força estatal, da coerção do direito -, porquanto, sem medo, ninguém abriria mão de sua liberdade natural. O soberano governa pelo temor (awe) infligido aos súditos. Essa constante ameaça é exprimida pela metáfora da espada – artifício presente na capa da primeira edição inglesa do Leviatã28. Já na epígrafe deste ensaio, alude-se à metáfora da espada; vale repisar a máxima hobbesiana: “os pactos sem espadas não passam de palavras”.
Quero retomar essa conclusão em torno do objeto da espada, com a finalidade de analisar a política brasileira dos últimos anos sob uma perspectiva hobbesiana. Aqui, será feita a transição da regra para a prática de nossa política: se compreendermos a Constituição brasileira como soberana, logicamente vamos reconhecer no direito positivo a sua espada, na medida em que este dota de coercibilidade o “pacto constitucional” que funda nossa Nação. Apesar da espada (isto é, do direito público objetivo), a política nacional empreendida pelo Poder Legislativo parece à deriva, sem esteio no pacto constitucional, como se fosse anterior a este, notadamente em razão da pérfida política que vem há décadas sendo praticada pelo Centrão. Passemos a esse ponto.
Confira a íntegra do artigo.
Antonio Oneildo Ferreira
Advogado. Presidente da OAB/RR no período de 2001 a 2012. Diretor-Tesoureiro do CFOAB no período de 2013 a 2019.