Por uma vida enlutável   Migalhas
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Por uma vida enlutável – Migalhas

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Tramita no Senado Federal a PEC 46/24, que visa alterar o art. 5º da CF, incluindo os direitos das vítimas de crimes e de calamidades públicas entre os direitos e garantias fundamentais, vedando a proteção estatal insuficiente.

Também tramita o PL 3.890/20, que institui o Estatuto da Vítima. Esse projeto reconhece os direitos das vítimas de crime: informação, participação, proteção, reparação, verdade, justiça e memória.

Essas iniciativas buscam assegurar às vítimas, especialmente as de crimes violentos, serem tratadas como sujeitos de direito e destinatárias da ação estatal que realiza a justiça criminal.

A luta pelo reconhecimento e proteção das vítimas de crimes ressoa profundamente com as reflexões de Judith Butler em “A força da não violência”, onde lança a indagação: “Por que tentamos preservar a vida do outro?”

A autora discorre sobre vidas enlutáveis e não enlutáveis, e relata que as formas distintas, a partir das quais o valor da vida é calculado, são enformadas por esquemas tácitos de valoração, de acordo com os quais as vidas são consideradas como mais ou menos enlutáveis. Algumas atingem dimensões icônicas – a vida absoluta e manifestamente enlutável-, ao passo que outras quase não deixam rastro – a vida absolutamente inlutável, uma perda que não é perda.

Segundo Butler, a falha na responsabilização pela morte violenta impossibilita o luto, pois apesar de a perda ser conhecida, a explicação para a morte não o é, e, por isso, a perda não pode ser plenamente registrada. Os mortos assim permanecem, nesse sentido, inlutáveis. 

Ao compararmos os números da letalidade violenta no Brasil com os índices de elucidação e responsabilização do autor, chega-se à triste conclusão de que no Brasil, além da distribuição desigual de bens e recursos, existe também uma distribuição desigual da inlutabilidade, em que determinadas pessoas não são consideradas enlutáveis e, por esta razão, não podem ser percebidas como vidas merecedoras de luto. Desta maneira, as vítimas inlutáveis não possuem o direito à justiça, à verdade e à memória.

O Estudo Global Sobre Homicídios divulgado pela ONU, em dezembro de 2023, apontou que mais pessoas morreram por homicídio entre 2019 e 2021 do que em conflitos armados ou atos terroristas combinados, e o Brasil aparece em 14º lugar na lista, com 21,26 homicídios a cada 100 mil habitantes. 

Aliado ao elevado índice de homicídios e à baixíssima taxa de elucidação, o Brasil sofreu 16 condenações na Corte Interamericana de Direitos Humanos, seja por não investigar, processar e punir adequadamente os violadores dos direitos humanos das vítimas, seja por não assegurar às vítimas durante o processo criminal os direitos de informação, de participação, de proteção e de reparação. 

Este quadro permite inferir que, além da impunidade estrutural, há outra falha estrutural, que é a negligência em relação às vítimas de crimes, rotineiramente invisibilizadas. O art. 245 da CF menciona a necessidade de assistência pelo poder público às vítimas indiretas de crimes dolosos, condicionada a legislação específica ainda inexistente.

Da mesma forma, a lei 14.717/23, que institui pensão especial aos filhos e dependentes de vítimas de feminicídio, ainda não foi implementada em vários Estados.

Diante deste estado de coisas omissivas, ao tempo em que celebramos a tramitação da PEC 46 e do PL que cria o estatuto da vítima, é crucial não esquecermos de que tão importante quanto criar e declarar direitos, é a instituição de mecanismos eficazes de realização, procedimentos adequados e equitativos, de modo que todas as vidas possam ser enlutáveis.

Simone Sibilio

Simone Sibilio

Coordenadora do CAO Criminal MP/RJ, coordenadora do GAEJURI MP/RJ – Grupo de Atuação Especializada do Tribunal do Juri e mestranda da PUC RIO.

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