IVA à moda brasileira e violação ao pacto federativo   Migalhas
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IVA à moda brasileira e violação ao pacto federativo – Migalhas

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A EC 132/23, recentemente aprovada, trouxe uma transformação significativa no sistema tributário brasileiro, principalmente com a criação da CBS – Contribuição sobre Bens e Serviços e do IBS – Imposto sobre Bens e Serviços.

Embora esses novos tributos sejam amplamente chamados de IVA – Imposto sobre Valor Agregado, é fundamental ressaltar que eles não possuem a natureza jurídica de um verdadeiro IVA. O IVA, já conhecido em outros países, incide sobre o valor agregado das operações, isto é, sobre a diferença entre o valor das vendas e o valor das compras de bens e serviços de uma empresa. No entanto, no Brasil, o que se aprovou foi uma incidência sobre operações com bens e serviços, com resguardo a não cumulatividade, o que distorce a essência do imposto e aumenta as distorções que o sistema pretende combater.

Diferentemente de um IVA real, em que se tributa apenas o valor agregado em cada etapa da produção, o modelo brasileiro aprovado tributa a operação como um todo, ampliando a base de incidência e, consequentemente, o peso do tributo na economia. Isso acaba gerando o que se pode chamar de uma tributação cumulativa disfarçada de IVA, onde os contribuintes são sobrecarregados com um imposto que deveria ser mais transparente e eficiente. Ao invés de simplificar e modernizar o sistema tributário, como era prometido, a CBS e o IBS acabam por replicar problemas históricos de nosso sistema, além de ampliar o controle do governo Federal sobre as receitas tributárias.

E é nessa ampliação de controle tributário pelo governo Federal que reside o maior problema: a EC 132/23 impõe uma grave violação ao pacto federativo ao retirar dos entes subnacionais qualquer possibilidade de autonomia na gestão dos tributos. Com a criação do Comitê Gestor Nacional, que será responsável pela administração da arrecadação dos novos tributos, Estados e municípios perdem sua capacidade de gerir e fiscalizar suas próprias receitas. A unificação da gestão tributária em um órgão centralizado fere de morte a autonomia federativa, um dos pilares da Constituição de 1988. O Brasil, sendo uma federação, deve garantir aos Estados e municípios a capacidade de decidir e gerir seus próprios tributos, conforme as necessidades locais. No entanto, com a nova reforma, essa prerrogativa é praticamente anulada.

Esse movimento centralizador por parte da União não só viola o princípio federativo, como também afronta o princípio democrático e o Estado de Direito. A ideia de que todas as decisões sobre arrecadação e distribuição dos tributos serão tomadas por um órgão controlado em grande parte pela União faz com que os Estados e municípios percam o controle sobre seus próprios recursos. Isso cria um desequilíbrio de poder e atenta contra a própria essência da federação, onde as decisões devem ser compartilhadas e os entes subnacionais precisam ter voz ativa. Ao centralizar a arrecadação, o governo Federal reforça um poder coercitivo sobre as administrações locais, transformando a arrecadação tributária em um instrumento de controle político e econômico.

Esse cenário pode ser considerado como um verdadeiro flerte com o totalitarismo fiscal, onde o poder central sobrepõe-se à vontade dos entes subnacionais e, consequentemente, da própria população. Quando a autonomia financeira dos Estados e municípios é suprimida, o princípio da descentralização do poder é violado, resultando em um enfraquecimento do Estado Democrático de Direito. A concentração de poder tributário nas mãos da União traz consigo o risco de uma administração autoritária, que desrespeita a vontade das regiões e impõe uma gestão única, sem espaço para a pluralidade e diversidade que caracterizam o Brasil.

Quando comparamos o modelo brasileiro com os IVAs de outros países, fica ainda mais evidente o descompasso. Na União Europeia, por exemplo, os países aplicam o IVA de maneira coordenada, mas respeitando as particularidades de cada nação e assegurando a autonomia fiscal dentro de seus territórios. Na Alemanha, por exemplo, a administração do IVA é descentralizada, e os Estados possuem autonomia na arrecadação e distribuição das receitas, sempre em cooperação com o governo Federal, mas sem subordinação total. O mesmo acontece na Suíça, onde os cantões (uma espécie de Estados-membros) têm controle sobre parte das receitas arrecadadas, respeitando o princípio da subsidiariedade. No Canadá, o modelo do GST/HST permite que as províncias decidam sobre suas próprias alíquotas e regras de arrecadação, em um claro exemplo de respeito ao pacto federativo.

O Brasil, ao contrário, com a EC 132/23, caminha em direção oposta, centralizando o poder tributário e eliminando as poucas liberdades que os Estados e municípios ainda possuíam. Ao contrário do que ocorre nas economias avançadas, em que os tributos são geridos de maneira cooperativa e respeitando a autonomia local, o novo modelo brasileiro impõe uma estrutura de poder que favorece a União em detrimento das administrações regionais.

Para que o Brasil possa, de fato, avançar em um sistema de “IVA” eficiente e respeitoso ao pacto federativo, é necessário repensar essa estrutura. A descentralização da gestão tributária, a simplificação verdadeira da base de incidência e o respeito à autonomia dos Estados e municípios são essenciais para garantir um sistema justo, eficiente e democrático. Caso contrário, o país corre o risco de aprofundar ainda mais suas distorções fiscais e agravar os problemas que há décadas impedem o crescimento sustentável e a justiça social.

Ramon Henrique Santos Fávero

Ramon Henrique Santos Fávero

Advogado fundador do Fávero Sociedade de Advogados. Dupla titulação de especialista em Direito Tributário (IBET e LFG). Mestrando em Direito Processual (UFES). Professor de Direito.

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