CompartilharComentarSiga-nos no A A
1. Definição do problema: a resolução normativa 1.030/22 da ANEEL e a limitação de compensação das geradoras
A resolução normativa 1.030/22 da ANEEL introduziu restrições às compensações financeiras de geradoras de energia em casos de corte de geração por constrained-off1, limitando a indenização apenas a eventos classificados como indisponibilidade externa e sujeitando-a a franquias de horas. Essa mudança regulatória tem gerado intensos debates sobre sua legalidade, culminando em disputas judiciais que envolvem geradoras de energia elétrica, inclusive por meio de suas associações, e a ANEEL.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), por decisão monocrática2 do ministro Herman Benjamin, revogou a liminar que determinou à ANEEL a promoção da compensação integral aos mais de 1.200 geradores associados à ABEEÓLICA e ABSOLAR, em relação a todos os eventos de restrição de operação por constrained-off, sem limitação aos eventos classificados como “indisponibilidade externa” e “incidência da franquia de horas”.
A demanda originária teve como objetivo a suspensão da eficácia de dispositivos das Resoluções Normativas nos 1.030/22 e 1.073/23, ambas da ANEEL. Esses dispositivos restringiam a compensação financeira decorrente de cortes na geração de energia, os chamados constrained-off, apenas a eventos classificados como “razão de indisponibilidade externa” e condicionavam o pagamento à observância de franquias de horas.
Segundo as associações autoras, de tempos em tempos, parte das geradoras de energia elétrica são obrigadas a reduzir ou parar a exploração de seu potencial elétrico disponível para atender às determinações do Operador Nacional do Sistema Elétrico (“ONS”). Tais determinações emergem da incapacidade operacional do Sistema Interligado Nacional (“SIN”) absorver a energia gerada por essas produtoras de energia, em fenômeno conhecido como constrained-off.
Durante quase duas décadas, as geradoras impactadas pelos cortes de energia possuíam direito a compensação financeira, em decorrência da lei 10.848 e o decreto 5.163/04, que definiam o pagamento de encargo para cobrir os “esquemas de corte de geração”, sem que, contudo, houvesse qualquer tipo de limitação em decorrência da motivação do corte3.
A ANEEL, todavia, por meio da edição da resolução normativa 1.030/22 – que consolida as resoluções normativas nos 927/21 e 1.073/23 -, restringiu as hipóteses de compensação das geradoras, por meio da criação de três categorias de restrição de operação por constrained-off, nos termos dos arts. 14 e 20-B:
1. Razão de indisponibilidade externa: Eventos causados por indisponibilidades em instalações externas às usinas e centrais geradoras fotovoltaicas.
2. Razão de atendimento a requisitos de confiabilidade elétrica: Restrições motivadas por questões de confiabilidade elétrica em equipamentos de instalações externas, não relacionadas a indisponibilidades.
3. Razão energética: Situações em que a geração de energia não pode ser alocada à carga.
Das três categorias definidas, apenas a primeira – referente às razões de indisponibilidade externa – ensejará a compensação financeira em razão de eventos de restrição de operação por constrained-off. Ainda, a compensação dessa hipótese única somente será devida quando o período de restrição exceder 78 horas, quanto às usinas eólicas, e 30 horas e 30 minutos, quanto às solares.
Nesse contexto, as associações autoras defendem que, por meio de tais dispositivos, a ANEEL inovou no ordenamento jurídico, em afronta à legalidade administrativa, e violou a lei 10.848/04 e o decreto 5.163/04, impondo prejuízos financeiros e operacionais ao setor de energias renováveis.
O ajuizamento da ação 1098384-92.2023.4.01.3400 e seus subsequentes desdobramentos processuais têm gerado um ambiente de insegurança jurídica para as geradoras de energia e a ANEEL. Esse cenário decorre das sucessivas mudanças de entendimento sobre a compensação devida às geradoras por eventos de restrição de operação decorrentes de constrained-off, que já passaram por cinco reinterpretações desde o início da referida ação:
1. Em primeira instância, a tutela provisória foi indeferida.
2. As associações interpuseram agravo de instrumento com pedido de antecipação de tutela, a qual foi deferida pelo Juiz Federal Convocado Caio Castagine Marinho.
3. Diante do deferimento da liminar, a ANEEL interpôs agravo interno contra a decisão monocrática, levando-se à reconsideração da tutela recursal pelo Desembargador Relator Alexandre Vasconcelos.
4. Em sede de julgamento colegiado do agravo de instrumento, a 5ª turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região deu parcial provimento ao recurso, determinando que a ANEEL promova a compensação integral dos geradores associados às agravantes, relativamente a todos os eventos de restrição de operação por constrained-off ocorridos a partir da intimação do acórdão, sem limitação aos eventos classificados como indisponibilidade externa ou incidência da franquia de horas
5. Por fim, em decisão monocrática do Ministro Herman Benjamin, nos autos do SLS 3.546, a liminar foi novamente revogada.
No mais, além das associações ABEEOLICA e ABSOLAR, diversas geradoras de energia ajuizaram ações4 contra a ANEEL, com o objetivo de assegurar a compensação integral, independentemente da classificação do corte de geração e dedução por “franquia de horas”.
2. A solução proposta pela ANEEL afronta o princípio da legalidade administrativa?
O princípio da legalidade administrativa carrega íntima relação com os princípios da isonomia e separação de poderes. Se, por um lado, o art. 5º, II, da Constituição Federal de 1988 (“CF/88”) dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”; por outro, complementarmente, o art. 37 da CF/88 prevê a legalidade como garantia fundamental dos administrados perante o Estado5.
A decorrência lógica da legalidade administrativa é a determinação de que a atuação dos entes da Administração Pública deve estar estritamente vinculada à lei. A lei 10.848/04 e o decreto 5.163/04 regulam o setor elétrico e determinam a compensação financeira das geradoras em casos de cortes na geração de energia, sem prever restrições quanto à motivação do corte.
Caberia, portanto, verificar se a ANEEL, ao editar a resolução normativa 1.030/22 e as posteriores normativas que restringiram a compensação financeira de geradoras de energia afetadas por constrained-off, inovou no ordenamento jurídico, em potencial afronta ao princípio da legalidade, uma vez que impõe limitações não previstas na legislação vigente.
A princípio, nos termos do artigo 3º, inciso XIV, da lei 9.427/1996, e do art. 1º, § 6º, inciso IV, da lei 10.848/04, a ANEEL, como entidade reguladora do setor elétrico brasileiro, possui competência para aprovar as regras e os procedimentos de comercialização de energia.
Diante desta competência regulamentar, a ANEEL defende, dentre outros pontos, que o art. 1º, §10, IV, Lei 10.848/046, ao determinar que as regras de comercialização deveriam prever o pagamento de encargo para esquemas de corte de geração, não se excluiu a possibilidade de definir em quais situações tais cortes poderiam ser atribuídos a questões sistêmicas. Na visão da Agência, o encargo destinado à compensação desses eventos tem como finalidade o pagamento de serviços do sistema.
O argumento da ANEEL, contudo, revela-se altamente controverso. Isso porque a lei 10.848/04, em seu art. 1º, § 10º, inciso IV, além de prever o pagamento de “encargo para cobertura dos custos dos serviços de sistema”, também estabelece que os “cortes de geração” integram esses serviços. Dessa forma, a interpretação literal da norma conduz à conclusão lógica de que os cortes de geração devem ser compensados, sem qualquer tipo de restrição:
§10. As regras de comercialização deverão prever o pagamento de encargo para cobertura dos custos dos serviços do sistema, inclusive os serviços ancilares, prestados aos usuários do SIN, que compreenderão, entre outros: […]
IV – a operação dos geradores como compensadores síncronos, a regulação da tensão e os esquemas de corte de geração e de alívio de cargas”,
Por outro lado, é fato que a resolução normativa 1.030/22 restringiu apenas aos eventos de “razão de indisponibilidade externa” a possibilidade de compensação, excluindo outras categorias de restrição, como “razão de atendimento a requisitos de confiabilidade elétrica” e “razão energética”. Ou seja, apesar da disposição legal expressa do art. 1º, § 10º, inciso IV – em vigor há mais de 20 anos -, a ANEEL limitou a compensação das geradoras por restrições de operação por constrained-off, violando-se, assim, a legalidade administrativa.
No ponto, a jurisprudência do STJ reafirma a impossibilidade de a Administração Pública criar obrigações ou restrições sem previsão legal. A título de exemplo, no REsp 1.833.983/CE, a Primeira Turma esclareceu que “não cabe ao Poder Executivo inovar no ordenamento jurídico”.
Na mesma linha, a 3ª turma, ao julgar o REsp 1.969.812/MG, consignou que “o ato normativo não pode inovar no ordenamento jurídico. Isto é, não pode, por exemplo, impor obrigações ou penalidades não previstas em lei, sob pena de violação ao art. 5º, II e 37, caput, da CF”:
4. Um dos poderes atribuídos à Administração Pública consiste no Poder Regulamentar, o qual é exercido pelo Chefe do Poder Executivo.
Por meio dele, são editadas normas visando à fiel execução das leis (art. 84, IV, da CF). Mas essa não é a única forma de manifestação do poder normativo da Administração, que também compreende a edição de outros atos normativos, como é o caso, por exemplo, das resoluções. Em todas essas hipóteses, o ato normativo não pode inovar no ordenamento jurídico. Isto é, não pode, por exemplo, impor obrigações ou penalidades não previstas em lei, sob pena de violação ao art. 5º, II e 37, caput, da CF. […]
(REsp n. 1.969.812/MG, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15/3/2022, DJe de 21/3/2022.)
De forma ainda mais categórica, no REsp nº 1.323.295/DF, o STJ consolidou o entendimento de que “os atos normativos infralegais, como as instruções normativas, não podem inovar no ordenamento jurídico, impondo restrições que a Lei Federal não previu ou autorizou, devendo manter-se subordinados ao texto legal”. Confira-se:
1. O aresto regional está em sintonia com a orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, firme no sentido de que os atos normativos infralegais, como as instruções normativas, não podem inovar no ordenamento jurídico, impondo restrições que a Lei federal não previu ou autorizou, devendo manter-se subordinadas ao texto legal (AgRg no REsp 1230633/RN, Relator Ministro HAMILTON CARVALHIDO, DJe 29/03/2011).
2. Agravo interno a que se nega provimento.
(AgInt no REsp n. 1.323.295/DF, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 26/4/2016, DJe de 11/5/2016.)
No mais, a restrição imposta pela ANEEL também gera insegurança jurídica ao setor de energias renováveis. A instabilidade causada pelas sucessivas mudanças de entendimento sobre a compensação financeira afeta não apenas a previsibilidade dos investimentos, mas também compromete a confiabilidade do ambiente regulatório. A previsibilidade regulatória é um elemento essencial para a atratividade do setor elétrico, e a regulação deve, necessariamente, estar alinhada à segurança jurídica para garantir um ambiente favorável aos investimentos.
Outro aspecto relevante é a ofensa ao princípio da proteção da confiança legítima. Durante mais de 20 anos, as geradoras de energia tiveram garantido o direito à compensação financeira em caso de cortes na geração por constrained-off. A alteração abrupta desse direito, sem previsão legal prévia, fere a expectativa legítima dos agentes econômicos, comprometendo a estabilidade das relações jurídicas, conforme defendido por Di Pietro (2009), que enfatiza a necessidade de estabilidade nas regras regulatórias:
“O princípio da confiança (…) “ou proteção à confiança legítima” (…) leva em conta a boa-fé do cidadão, que acredita e espera os atos praticados pelo Poder Público sejam lícitos e, nessa qualidade, serão mantidos e respeitados pela própria Administração e por terceiros”.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 85-86.
Diante desse cenário, diversas geradoras e associações de geradoras do setor elétrico ingressaram com ações judiciais visando garantir a compensação integral pelos eventos de restrição de operação. A ação 1098384-92.2023.4.01.3400, atualmente em trâmite, demonstra a relevância da questão e a divergência quanto à legalidade das restrições impostas pela ANEEL. A decisão da 5ª turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que garantiu a compensação integral das geradoras, ainda que posteriormente revogada por decisão monocrática do STJ, reforça a existência de uma discussão jurídica sólida sobre a ilegalidade da norma da ANEEL.
Em conclusão, a solução normativa proposta pela ANEEL afronta o princípio da legalidade administrativa ao criar restrições não previstas na legislação setorial. A limitação das hipóteses de compensação sem previsão legal expressa configura uma atuação regulatória abusiva e gera prejuízos significativos ao setor de energia. A discussão judicial em curso evidencia a necessidade de revisão da normativa, sob pena de comprometimento da segurança jurídica e da confiabilidade do setor elétrico brasileiro.
3. Conclusão
A controvérsia em torno da limitação das compensações financeiras para geradoras de energia em eventos de restrição de operação por constrained-off tem passado por recorrentes reviravoltas. A mais recente decisão do STJ, que revogou a liminar que determinava à ANEEL a promoção da compensação integral das geradoras, representa um novo capítulo nessa disputa. Essa decisão reitera a falta de consenso sobre a interpretação da legislação aplicável e reforça a necessidade de uma solução definitiva para a questão.
A solução regulatória proposta pela ANEEL apresenta sérios questionamentos quanto à sua legalidade. O princípio da legalidade administrativa exige que a atuação dos órgãos reguladores esteja estritamente vinculada à legislação vigente, e a resolução normativa 1.030/22 inova ao restringir as hipóteses de compensação de forma não prevista pela Lei nº 10.848/04 e pelo decreto 5.163/04. Ao excluir determinadas categorias de restrição de operação da compensação financeira, a ANEEL ultrapassa sua competência regulamentar e interfere indevidamente nos direitos das geradoras de energia.
Além disso, a insegurança jurídica gerada pela atuação da ANEEL afeta negativamente o setor de energias renováveis, comprometendo a previsibilidade regulatória essencial para atração de investimentos. A restrição imposta pela Agência impacta diretamente a viabilidade econômica de projetos e prejudica a confiança dos agentes do mercado no arcabouço regulatório. A mudança abrupta nas regras que vigoraram por mais de duas décadas contraria o princípio da proteção da confiança legítima e coloca em risco a estabilidade das relações jurídicas do setor.
Ao fim e ao cabo, a discussão está longe de se encerrar. A complexidade da matéria e os interesses envolvidos indicam que novas disputas judiciais e regulatórias devem surgir, com potencial de impactar significativamente o setor elétrico brasileiro. Uma solução definitiva dependerá da harmonização entre regulação, segurança jurídica e previsibilidade de mercado, garantindo que os direitos das geradoras sejam respeitados e que a legislação vigente seja aplicada de maneira coerente e transparente.
______
1 O constrained-off é definido pela Agência Nacional de Energia Elétrica (“ANEEL”) como “redução da produção de energia em usinas eólicas despachadas centralizadamente ou consideradas na programação, por motivos originados externamente às instalações das usinas”. Acesso em: https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/noticias/2024/regras-para-constrained-off-de-usinas-eolioeletricas-sao-aprimoradas#:~:text=A%20restri%C3%A7%C3%A3o%20de%20opera%C3%A7%C3%A3o%20por,externamente%20%C3%A0s%20instala%C3%A7%C3%B5es%20das%20usinas.
2 SLS n. 3.546, Ministro Herman Benjamin, DJEN de 24/01/2025.
3 Conforme relatam as associações ABEEOLICA e ABSOLAR, nos autos do Procedimento Comum Cível nº 1098384-92.2023.4.01.3400.
4 Até 31/10/2024, segundo levantamento divulgado pela MegaWhat, ao menos 13 ações ordinárias foram ajuizadas. Acesso em: https://megawhat.energy/geracao/aneel-ja-e-alvo-de-12-acoes-judiciais-por-curtailment/
5 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Princípio da legalidade administrativa e competência regulatória no regime jurídico-administrativo brasileiro. Revista de informação legislativa, v. 51, n. 202, p. 7-29, abr./jun. 2014
6 Art. 1º A comercialização de energia elétrica entre concessionários, permissionários e autorizados de serviços e instalações de energia elétrica, bem como destes com seus consumidores, no Sistema Interligado Nacional – SIN, dar-se-á mediante contratação regulada ou livre, nos termos desta Lei e do seu regulamento, o qual, observadas as diretrizes estabelecidas nos parágrafos deste artigo, deverá dispor sobre: […] § 10. As regras de comercialização deverão prever o pagamento de encargo para cobertura dos custos dos serviços do sistema, inclusive os serviços ancilares, prestados aos usuários do SIN, que compreenderão, entre outros: […] IV – a operação dos geradores como compensadores síncronos, a regulação da tensão e os esquemas de corte de geração e de alívio de cargas
Igor Marques Caldas Machado
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Autor de artigos e capítulos de livros em Direito Constitucional, Concorrencial e Regulatório.
Gustavo Toniol Raguzzoni
Advogado e arbitralista. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Especialista em Compliance a Integridade Corporativa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e em Direito Processual Civil pela Universidade Candido Mendes. Foi Presidente da Comissão de Arbitragem da OAB/DF (2024) e membro consultor da Comissão Especial de Arbitragem do Conselho Federal da OAB (2019 – 2021).