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Em julho de 2021, a lei do superendividamento (lei 14.181/21) surgiu como uma revolução nas relações de consumo no Brasil. Pela primeira vez, o ordenamento jurídico reconheceu a necessidade de um tratamento específico para milhões de consumidores afundados em dívidas, presos em um ciclo de exclusão financeira e sofrimento social.
Passados três anos e meio, a aplicação da lei ainda enfrenta desafios. Embora tenha trazido avanços importantes, muitos aspectos do seu funcionamento na prática não atingiram o potencial esperado, principalmente por conta de interpretações divergentes e da necessidade de maior estruturação dos órgãos responsáveis pelo seu cumprimento.
O Judiciário tem cumprido um papel fundamental na implementação da lei, mas nem sempre suas decisões têm refletido de maneira uniforme os princípios que nortearam a criação dessa norma. Em alguns casos, consumidores encontram dificuldades para ter suas ações processadas de forma célere e efetiva, seja pela exigência de documentos que muitas vezes não possuem, seja por interpretações que restringem o alcance da renegociação das dívidas.
No entanto, a responsabilidade pelo tratamento do superendividamento não pode recair apenas sobre o Judiciário. Quando propus a inclusão do art. 104-C na redação da lei, foi porque acreditava que esse seria o momento de os Procons se libertarem da falta de estrutura de pessoal e de estrutura física para se tornarem o principal órgão administrativo do país, responsável por cuidar de um dos maiores problemas já enfrentados.
Nenhum outro órgão tem a capacidade de impactar tanto na vida da sociedade quanto os Procons. A lei 14.181/2021 trouxe uma grande inovação ao prever que o tratamento do superendividamento pode ser feito tanto pela via judicial (art. 104-A do CDC) quanto pela via extrajudicial (art. 104-C).
A ideia era que os Procons assumissem um papel central, permitindo que o consumidor pudesse buscar a renegociação das suas dívidas sem a necessidade de entrar com uma ação judicial. Isso tornaria o processo mais ágil, acessível e menos burocrático, funcionando de maneira semelhante ao modelo francês, no qual comissões especializadas atuam no âmbito administrativo para mediar a renegociação das dívidas. A experiência da França, inclusive, serviu de inspiração para a criação da nossa lei do superendividamento, demonstrando que um tratamento extrajudicial estruturado e eficaz pode oferecer soluções mais rápidas e humanizadas para consumidores em situação de vulnerabilidade financeira.
Além disso, os Procons, por serem órgãos especializados na defesa do consumidor, possuem uma vocação natural para aplicar a lei do superendividamento de maneira mais sensível e alinhada aos seus princípios fundamentais. A principiologia dessa lei se baseia na dignidade da pessoa humana, na preservação do mínimo existencial e na reabilitação financeira do consumidor, princípios esses que já fazem parte do DNA dos Procons na condução de conflitos de consumo.
Enquanto o Judiciário tradicionalmente adota uma visão mais processualista e formalista, os Procons têm a capacidade de lidar com o superendividamento de forma mais humanizada, focando não apenas na legalidade dos contratos, mas na busca de soluções práticas e eficazes para restaurar o equilíbrio financeiro dos consumidores em situação de vulnerabilidade.
No entanto, como muitos Procons ainda não se estruturaram para essa nova função, a maior parte dos consumidores acabou recorrendo diretamente ao Judiciário, sobrecarregando-o e dificultando a implementação plena da lei.
Diante desse cenário, é fundamental que os Procons assumam de vez o protagonismo que lhes foi concedido. O Judiciário deve intervir apenas quando for necessário estabelecer um plano de pagamento compulsório (art. 104-B do CDC), mas todo o restante do tratamento do superendividamento pode e deve ser resolvido na esfera extrajudicial.
A atuação dos Procons nessa área não só desafogaria o Poder Judiciário, como também garantiria que a aplicação da lei do superendividamento ocorresse de maneira mais eficiente, pois são órgãos que já possuem experiência na conciliação de conflitos consumeristas e dispõem da estrutura adequada para promover a repactuação das dívidas de forma acessível e desburocratizada. Se devidamente estruturados e fortalecidos, os Procons podem se tornar a principal ferramenta do Brasil no enfrentamento desse problema social, cumprindo de maneira plena o papel que a lei 14.181/21 lhes confiou.
Desta forma, a sociedade precisa pressionar prefeitos e governadores a investirem nos Procons. Sem isso, continuaremos a assistir ao crescimento do superendividamento e seus impactos sociais devastadores, como o aumento da depressão, suicídios, desemprego, desagregação familiar e exclusão financeira.
Os Procons podem unir esforços para desenvolver uma solução inovadora baseada em tecnologia. Um sistema digital unificado para o tratamento do superendividamento tem o potencial de transformar a realidade de milhões de brasileiros.
Imagine um portal nacional onde o consumidor preenche seus dados e anexa suas dívidas, um algoritmo calcula automaticamente um plano de pagamento realista, as empresas credoras recebem notificações e podem aprovar ou propor ajustes, audiências conciliatórias são realizadas de forma online, sem burocracia, e psicólogos e assistentes sociais oferecem apoio remoto aos consumidores.
Essa abordagem reduziria custos, aceleraria negociações e devolveria dignidade ao consumidor sem que ele precisasse ingressar com uma ação judicial. Para que isso se torne realidade, é essencial que os Procons, em parceria com o poder público e outras instituições, invistam na estruturação dessa plataforma, tornando-se, de fato, os principais agentes no combate ao superendividamento no Brasil.
Imagine um pai de família que, diante do desemprego e da alta dos preços, foi obrigado a contrair dívidas para alimentar seus filhos. Imagine uma idosa que, enganada por promessas de crédito fácil, viu sua aposentadoria ser sugada por descontos abusivos. Essas pessoas não são números. Elas têm histórias, sofrimentos e um desespero real para encontrar uma saída.
A sociedade não pode mais fechar os olhos. Milhões de brasileiros acordam todos os dias com o peso esmagador das dívidas, sem esperança, sem saber como alimentar seus filhos, sem enxergar uma saída. São pais e mães que não dormem, idosos que perderam sua aposentadoria, jovens que veem seus sonhos ruírem antes mesmo de começarem. O superendividamento não é um simples problema financeiro. É uma tragédia social que destrói famílias, adoece mentes e rouba o futuro de uma geração inteira.
Os Procons podem ser a salvação para essas pessoas, mas precisam de estrutura, precisam de apoio, precisam que prefeitos e governadores entendam a urgência dessa causa. Cada dia sem ação é um dia a mais de desespero para milhões de brasileiros. Não podemos mais esperar.
O Judiciário tem sido um pilar importante, mas não pode carregar sozinho esse fardo. Os Procons precisam assumir o papel que lhes foi dado por lei. E a sociedade precisa reagir. Cada um de nós tem um papel nessa luta. Precisamos cobrar, pressionar, exigir que o direito à renegociação de dívidas não seja um privilégio para poucos, mas um caminho acessível a todos aqueles que precisam recomeçar.
Essa não é uma luta só dos juristas, dos economistas ou dos governantes. Essa é uma luta de todos nós. Porque hoje pode ser um desconhecido que perdeu tudo para as dívidas, mas amanhã pode ser um amigo, um irmão, um pai. O superendividamento não escolhe vítimas. Ele sufoca, destrói, tira a dignidade. Mas nós podemos mudar essa realidade. Podemos devolver esperança a quem já não acredita mais. Podemos garantir que ninguém precise escolher entre comer e pagar um boleto.
Está na hora de darmos essa resposta. Está na hora de fazer justiça. Mas, acima de tudo, está na hora de devolver a esses milhões de brasileiros algo que eles perderam há muito tempo: O direito de sonhar novamente.
Leonardo Garcia
Procurador do Estado do Espírito Santo; Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, Autor dos livros e parecerista