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1. Breve introdução
A Suprema Corte brasileira recentemente reafirmou jurisprudência no sentido de aplicar a Convenção de Montreal também aos litígios envolvendo transportes aéreos internacionais de cargas: falo da decisão no RE 1.520.841/SP, que seguiu o procedimento para julgamento de recursos repetitivos.
Tenho lido e ouvido colegas sustentarem que não mais seria possível evidenciar qualquer conflito entre a limitação de responsabilidade da Convenção de Montreal e o princípio da reparação civil integral – princípio que é um dos mais importantes do ordenamento jurídico brasileiro, pois assentado na ordem moral.
Discordo desses colegas; e a levar em conta os exatos fundamentos da decisão, entendo que o assunto continua em disputa.
O que o STF reafirmou foi que a Convenção de Montreal é a fonte legal primaz para a solução de todos os litígios de transportes aéreos internacionais, nada além, nada aquém.
Desde o surgimento do Tema 210 de repercussão geral, muito se discutiu sobre um possível distinguishing para limitá-lo apenas aos casos diretamente ligados aos termos da decisão paradigma, isto é, ao transporte de passageiros com extravio de bagagem.
Pleiteou-se por bom tempo a necessária distinção entre litígios relacionados ao transporte de passageiros, nos casos de extravio de bagagem, e aqueles em que a seguradora, sub-rogada na pretensão de um dono de carga, busca o ressarcimento da indenização que pagou.
Eram sólidas as razões para essa distinção. Não cabe comentá-las aqui para não alongar o texto, mas é possível encontrá-las em outros artigos deste autor.
Tão fundadas eram as razões da distinção que a própria Corte a evidenciou muitas vezes, por decisões monocráticas ou colegiadas: ARE 1.331.340/SP, AG.REG. no AI 822.191, RE 1.047.443/SP, EDcl nos EREsp 1.289.629/SP, entre outros.
Embora eu continue convencido de que as situações são distintas e não devem ser tratadas de forma idêntica, a discussão perdeu sentido diante do entendimento, agora pacificado, de que o Tema 210 também se aplica ao transporte de cargas e aos casos demandados por seguradoras sub-rogadas.
Então, é certo que o Tema e a Convenção incidem. Ponto.
Há algum tempo eu já evitava questionar a primazia da Convenção de Montreal, ajustando o enfoque argumentativo para algo mais ou menos assim: de modo calibrado, saudável e de acordo com as circunstâncias, a Convenção de Montreal se aplica sempre; a limitação tarifada, nem sempre.
A limitação de responsabilidade depende das circunstâncias previstas na própria Convenção de Montreal e, caso não estejam presentes, o benefício não se aplica aos transportadores.
De fato, para muito além de se questionar o anacronismo da Convenção de Montreal e da sua grave enfermidade jurídica sobre a limitação de responsabilidade (algo manifestamente incompatível ao moderno pensamento acerca da responsabilidade civil e dos contratos e danos), entendo que a própria norma internacional apresenta meios hábeis para garantir, a partir das singularidades de cada caso, o princípio da reparação civil ampla e integral.
Quais são esses dois caminhos? O primeiro é considerar a fatura comercial (invoice) e outros documentos do processo de comércio exterior e do próprio transporte internacional como suficientemente hábeis para o preenchimento da norma sobre a declaração de valor, independentemente do pagamento do frete ad valorem; o segundo, é identificar conduta temerária do transportador, a falha operacional significativa, que é mais do que hábil para inibir o benefício da limitação.
2. Sobre a declaração de valor
Sabidamente a Convenção de Montreal dispõe que, havendo formal declaração de valor da carga, o transportador aéreo está obrigado a indenizar integralmente o dono dela ou a seguradora deste em caso de dano (falta ou avaria).
Muitos entendem que essa declaração há de ser acompanhada do pagamento de um valor de frete substancialmente maior do que o normal.
Outros – e quando escrevo outros, penso especialmente nos órgãos jurisdicionais – entendem que o pagamento desse frete maior é irrelevante, bastando o pleno conhecimento, pelo transportador, do valor da carga confiada para transporte.
Endosso esse segundo time, até porque, além de haver um elemento condicional expresso no próprio art. 22.3 da Convenção de Montreal (“se for cabível”), considero uma espécie de chantagem comercial a exigência de valor maior de frete para cumprir aquilo que é básico, fundamental, assentado no melhor direito e na ordem moral; afinal, quem causa um dano tem de reparar o prejuízo na mesma proporção em que o causou.
Mas para que meu entendimento não fique apenas no campo da retórica e da indignação (justa) contra o chamado frete ad valorem, tenho por certo que documentos como a fatura comercial e o conhecimento aéreo de transporte internacional de carga, emitido pelo próprio transportador, são mais do que hábeis para o preenchimento da norma de declaração de valor.
Por meio deles o transportador sabe o que transporta e o valor daquilo que transporta; uma alegação de que o ignora é simplesmente inverossímil. Fere a lógica e agride a boa-fé.
E assim entendo amparado em substancial corrente jurisprudencial que diz:
AÇÃO REGRESSIVA DE RESSARCIMENTO DE DANOS – TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL DE CARGA. Alegação de extravio de carga durante transporte internacional. Sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos, condenando a ré ao pagamento de ressarcimento com base na Convenção de Montreal, levando em conta o peso da unidade perdida. Recursos de ambas as partes. RECURSO DA AUTORA: Pleito de reforma da sentença para condenação integral da ré. ADMISSIBILIDADE: Comprovação do conhecimento do valor da carga pelo transportador e referência expressa à fatura comercial (invoice), afastando a tarifação da Convenção de Montreal. Precedentes que corroboram a integralidade da restituição do valor. Sentença reformada. RECURSO DA RÉ: Alegação de inexistência de prova de nexo de causalidade entre o extravio e o transporte realizado, e de que sua responsabilidade cessou com a entrega da carga em Miami. Argumento de que foi contratada apenas para o trecho Hong Kong-Miami. INADMISSIBILIDADE: Evidências documentais comprovam a responsabilidade objetiva do transportador pelo extravio durante a cadeia de transporte até Manaus. Responsabilidade objetiva do transportador confirmada. Sentença mantida quanto ao dever de ressarcimento. RECURSO DA AUTORA PROVIDO E RECURSO DA RÉ DESPROVIDO. (TJSP; Apelação Cível 1125035-41.2023.8.26.0100; Relator (a): Israel Góes dos Anjos; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 29ª Vara Cível; Data do Julgamento: 15/10/2024; Data de Registro: 17/10/2024)
AÇÃO REGRESSIVA – Contrato de seguro – Transporte aéreo de carga – Mercadoria extraviada – Sentença de procedência – Inconformismo da ré. CONVENÇÃO DE MONTREAL – Pretensão de aplicação da Convenção de Montreal, com a consequente limitação do valor da indenização – Descabimento – Só é aplicável a indenização limitada nos casos de destruição, perda ou dano da carga quando não houver declaração especial de valor da carga fornecida ao transportador – A commercial invoice atende ao requisito, pois nela constam explicitamente as especificações do produto, bem como o valor exato da carga transportada. Sentença mantida – Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1026782-21.2023.8.26.0002; Relator (a): Rodolfo Pellizari; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II – Santo Amaro – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/02/2025; Data de Registro: 21/02/2025)
Em complemento tenho que, se o transportador, ao tomar conhecimento do valor da carga pelos referidos documentos, não exigir imediatamente o recebimento de mais frete, será lícito concluir que ele aceitou como justo e valioso o valor inicialmente cobrado, e também por aqui se preenche o requisito do frete ad valorem.
De um modo ou de outro, o transportador tomou conhecimento do valor e executou a operação de transporte satisfeito com o montante que recebeu. Assim, não é aceitável o argumento de que ainda assim não houve a declaração e de que, portanto, não foi satisfeita a contraprestação por parte da vítima original do dano.
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Paulo Henrique Cremoneze
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado e Cremoneze – Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.