Tribunal do Júri: Evolução e impacto da decisão do STF na ADPF 779   Migalhas
Categories:

Tribunal do Júri: Evolução e impacto da decisão do STF na ADPF 779 – Migalhas

CompartilharComentarSiga-nos noGoogle News A A

O Tribunal do Júri é uma instituição milenar, presente em diversos sistemas jurídicos ao longo da história, que confere a cidadãos comuns o poder de julgar crimes considerados mais graves, especificamente os delitos dolosos contra a vida. Um dos aspectos mais polêmicos do Tribunal do Júri é a desnecessidade de motivação da decisão dos jurados. Diferentemente das sentenças proferidas por juízes togados, que devem ser fundamentadas, as decisões não precisam ser justificadas. Essa característica tem sido alvo de debates, tanto no âmbito acadêmico quanto na sociedade, pois levanta questões sobre transparência e segurança jurídica. Outro ponto de discussão é a tese da legítima defesa da honra, que foi amplamente utilizada em julgamentos de crimes passionais, especialmente contra mulheres. Essa tese, embora hoje rejeitada pelo STF, marcou a história do Júri e levantou reflexões sobre a influência de valores sociais e morais nas decisões judiciais. O STF se posicionou sobre o tema na ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 779, afastando a possibilidade de sua aplicação na absolvição de acusados de feminicídio.

O Tribunal do Júri é composto por duas fases principais: a pronúncia e o julgamento propriamente dito. Na primeira, o juiz togado decide se há indícios suficientes para levar o réu a julgamento no plenário. Na segunda, os jurados, após análise das provas, decidem sobre a responsabilidade do acusado e, se for o caso, aplicam a condenação. Essa estrutura busca equilibrar o papel do Estado, representado pelo juiz, com a participação direta da sociedade. A desnecessidade de motivação da decisão dos jurados é uma das características mais distintivas do Júri. Enquanto os juízes precisam fundamentar suas decisões com base em leis e provas, os jurados têm liberdade para decidir de acordo com sua íntima convicção. Isso significa que eles não precisam explicar os motivos que os levaram a absolver ou condenar o réu. Essa regra está prevista no art. 593 do CPP.

A justificativa para essa ausência de motivação é a confiança na sabedoria popular e no senso de justiça dos cidadãos. Acredita-se que os jurados, por serem leigos, podem trazer uma perspectiva mais humana e menos técnica para o julgamento. No entanto, essa prática também gera críticas. Alguns argumentam que a falta de fundamentação pode levar a decisões arbitrárias ou influenciadas por preconceitos, comprometendo a justiça e a imparcialidade.

Um exemplo emblemático dessa controvérsia é a tese da legítima defesa da honra. Essa tese foi utilizada por décadas em julgamentos de homens acusados de matar suas esposas ou companheiras em supostos crimes passionais. A defesa argumentava que o réu havia agido para proteger sua honra, que teria sido maculada pela vítima. Essa justificativa, embora sem respaldo legal, era frequentemente aceita pelos jurados, resultando em absolvições.

A tese da legítima defesa da honra reflete valores sociais e culturais profundamente enraizados, especialmente em relação ao papel da mulher na sociedade. Ao justificar o homicídio como uma reação à infidelidade ou à independência feminina, essa tese perpetuava estereótipos de gênero e violências simbólicas. Em muitos casos, as vítimas eram praticamente consideradas culpadas, enquanto os agressores eram absolvidos sob o argumento de que estavam apenas “protegendo sua honra”.

Esse cenário começou a mudar com o avanço dos movimentos feministas e a maior conscientização sobre os direitos das mulheres. A tese da legítima defesa da honra passou a ser contestada no Judiciário, com juristas e ativistas argumentando que ela violava os princípios constitucionais de igualdade e dignidade humana. Ainda assim, sua aplicação persistiu em alguns casos, evidenciando a resistência à mudança cultural e legal.

O ponto de virada ocorreu em 2023, quando o STF julgou a ADPF 779 e decidiu, por unanimidade, que a tese da legítima defesa da honra é incompatível com a CF/88 e não pode ser utilizada em julgamentos. O STF afirmou que a tese reforça estereótipos de gênero e viola o princípio da igualdade, além de legitimar a violência contra as mulheres.

A decisão na ADPF 779 representa um marco na luta pelos direitos das mulheres e na evolução do Direito brasileiro. Ao rejeitar a tese da legítima defesa da honra, a corte reafirmou o compromisso com a igualdade de gênero e a proteção da dignidade humana. A decisão também reforçou a necessidade de que os julgamentos no Tribunal do Júri sejam pautados por critérios mais objetivos e não por valores sociais ultrapassados.

É importante destacar que o STF não se pronunciou sobre a desnecessidade de motivação das decisões dos jurados na ADPF 779. A corte focou especificamente na tese da legítima defesa da honra, sem questionar a estrutura do Júri como um todo. Ainda assim, a decisão tem implicações para o funcionamento do Júri, pois reforça a necessidade de que os jurados tomem decisões com base em evidências e não em preconceitos ou estereótipos.

A desnecessidade de motivação da decisão dos jurados continua a ser um tema polêmico. Para alguns, é uma forma de fortalecer a democracia e a participação popular na Justiça. Para outros, é uma brecha que pode levar a decisões inconsistentes ou injustas. A discussão sobre a possibilidade de exigir uma motivação mínima das decisões dos jurados permanece em aberto, sendo objeto de debate entre juristas e estudiosos do Direito.

A tese da legítima defesa da honra, embora rejeitada pelo STF, ainda é um tema relevante para a compreensão da história do Tribunal do Júri e da evolução dos direitos das mulheres no Brasil. Sua rejeição pela corte simboliza um avanço na luta pela igualdade de gênero e pela proteção dos direitos humanos. No entanto, também evidencia a necessidade de continuar combatendo estereótipos e preconceitos que ainda persistem na sociedade.

O Tribunal do Júri, como instituição, está em constante evolução. As decisões do STF, como a ADPF 779, e os debates em torno da desnecessidade de motivação das decisões dos jurados mostram que o Júri não é imune às mudanças sociais e culturais. A busca por maior justiça, transparência e igualdade continua a moldar o funcionamento dessa instituição, que desempenha um papel central no sistema jurídico brasileiro.

O Tribunal do Júri é uma instituição complexa e cheia de nuances, que reflete tanto os avanços quanto os desafios do sistema jurídico brasileiro. Sua estrutura, que combina a participação popular com a expertise do juiz togado, busca equilibrar democracia e justiça. No entanto, características como a desnecessidade de motivação das decisões dos jurados e a influência de valores sociais em julgamentos, como na tese da legítima defesa da honra, levantam debates importantes sobre transparência e igualdade.

João Paulo Orsini Martinelli

João Paulo Orsini Martinelli

Advogado Criminalista, Consultor Jurídico e Parecerista; Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra; Autor de livros e artigos jurídicos; Professor.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *