Capacidade civil e atividade mercantil: Análise do CC e do PL 04/25   Migalhas
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Capacidade civil e atividade mercantil: Análise do CC e do PL 04/25 – Migalhas

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Apresentação

O presente texto é o segundo de uma série de autoria dos membros do GIDE – Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial e convidados, na avaliação do PL 04/25, que pretende introduzir mudanças significativas no atual CC, observando-se que cada um dos autores tem toda a liberdade para a manifestação da sua visão a respeito, desfavorável ou favorável, no todo ou em parte.

Observe-se que o autor das linhas abaixo demonstra uma preocupação – que se mostrado generalizada no sentido da presença no projeto – com de diversas novidades cujo tratamento normativo se mostra de forma extremamente aberta e novidadeira, com o resultado da geração de ampla margem de insegurança e incerteza do novo direito, se a proposta vier a vingar tal como apresentada. 

Enfim, o que se pretende é mostrar o que há de aceitável, de inaceitável ou daquilo que precisa ser remodelado. Sigamos em frente.

I – Introdução

A evolução social, tecnológica e econômica tem exigido uma constante modernização dos ordenamentos jurídicos para que estes acompanhem as transformações da realidade. Nesse contexto, o PL 04/25 surge como uma proposta de revisão abrangente do CC, mas que neste artigo serão analisados os dispositivos que tratam da personalidade, da capacidade civil e dos direitos fundamentais, temas que historicamente estruturam as relações civis e empresariais. Tradicionalmente, o CC tem servido de base para a organização das relações jurídicas, mas as inovações propostas pelo novo projeto legislativo desafiam a interpretação tradicional ao introduzir conceitos ampliados e novos critérios para a atribuição e limitação da capacidade.

Este artigo tem como objetivo oferecer uma análise crítica e comparativa entre o texto atual dos arts. 1º a 20 do CC e as modificações introduzidas pelo PL 04/25. Além disso, dedica especial atenção à capacidade para os atos da vida empresarial, abordando temas como emancipação, impedimentos e a necessidade de uma adequada separação patrimonial. Dessa forma, pretende-se evidenciar não somente os avanços que as inovações podem representar, mas também os desafios que elas impõem, tanto na esfera interpretativa quanto na prática jurídica, sobretudo no que diz respeito à segurança dos negócios e à proteção dos direitos individuais e coletivos.

II – Revisão e análise crítica dos dispositivos

1. Personalidade e capacidade civil

No âmbito dos dispositivos iniciais do CC, o art. 1º consagra o princípio basilar de que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. O PL 04/25, entretanto, propõe uma ampliação desse conceito ao incluir o reconhecimento da “personalidade internacional”, fundamentada em tratados internacionais. Essa inovação visa alinhar o ordenamento jurídico brasileiro às demandas globais contemporâneas, ampliando o alcance dos direitos, deveres e liberdades fundamentais dos indivíduos. Contudo, a ausência de definições precisas para o termo “personalidade internacional” pode gerar insegurança interpretativa e conflitos com dispositivos constitucionais que enfatizam a soberania nacional, criando um cenário de incerteza quanto à aplicação prática do novo conceito.

2. Incapacidade e ampliação dos critérios de vulnerabilidade

A proteção dos indivíduos vulneráveis é um dos pilares do ordenamento jurídico, e o CC, em seu art. 3º, define os menores de 16 anos como absolutamente incapazes. O PL 04/25 amplia essa previsão ao incluir “aqueles que por nenhum meio possam expressar sua vontade, em caráter temporário ou permanente”. Essa medida busca oferecer proteção a grupos potencialmente vulneráveis, mas carece de critérios objetivos que permitam mensurar a real impossibilidade de manifestação da vontade. A subjetividade inerente a essa avaliação pode restringir indevidamente a autonomia de sujeitos que, com o apoio adequado, poderiam exercer seus direitos, ampliando, assim, o risco de decisões judiciais arbitrárias.

Adicionalmente, a discussão sobre a incapacidade relativa é intensificada com a reformulação do art. 4º e a criação do art. 4º- A. Enquanto o ordenamento atual abrange indivíduos entre 16 e 18 anos e outras situações específicas – como ébrios habituais ou viciados – o novo projeto amplia o escopo ao incluir aqueles “cuja autonomia estiver prejudicada por redução de discernimento”. Essa inclusão, embora tenha um claro intuito de proteger, também evidencia a necessidade de parâmetros quantificáveis que evitem interpretações excessivamente amplas e a consequente restrição injustificada da capacidade civil.

3. Emancipação e capacidade para atos empresariais

Os arts. 5º e 5º – A tratam dos mecanismos de emancipação e da cessação da incapacidade, tradicionalmente associados à maioridade aos 18 anos, com exceções previstas para situações como casamento, emprego público ou colação de grau. O PL 04/25 amplia essas hipóteses, permitindo a emancipação por união estável e, inclusive, a partir dos 16 anos para aqueles que demonstram economia própria. Essa inovação é particularmente relevante para o exercício de atividades empresariais, pois confere maior autonomia aos jovens empreendedores. Contudo, a emancipação precoce também suscita críticas, pois pode expor menores a riscos inerentes à atividade empresarial e gerar insegurança contratual, especialmente se houver a possibilidade de desconstituição da emancipação em condições controversas.

4. Registros, averbações e a formalização dos atos

Os arts. 9º e 10 do CC atualmente regulam o registro de eventos essenciais, como nascimentos, casamentos e óbitos, estabelecendo um sistema formal de averbações. O PL 04/25 propõe a ampliação desse rol para incluir uma série de documentos, sentenças e atos judiciais. Embora essa medida vise incrementar a transparência e a segurança jurídica, ela também pode resultar em formalismo excessivo, sobrecarregando o sistema registral e dificultando a celeridade dos atos civis e empresariais. A complexidade adicional decorrente do aumento de registros pode, em última análise, gerar conflitos interpretativos e operacionais que afetem a dinâmica das relações contratuais.

5. Direitos da personalidade e autonomia individual

O art. 11 do CC vigente assegura a intransmissibilidade e a irrenunciabilidade dos direitos da personalidade, protegendo aspectos essenciais da dignidade humana. O PL 04/25 amplia essa proteção ao permitir, em condições específicas, a limitação voluntária desses direitos, além de estender a proteção a nascituros, natimortos e até mesmo a pessoas falecidas. Essa ampliação representa um avanço no que tange à proteção dos direitos fundamentais, porém, a introdução de mecanismos de “ponderação de interesses” sem critérios objetivos pode levar a decisões judiciais imprevisíveis e a desafios práticos na aplicação dos direitos protegidos, exigindo uma interpretação equilibrada entre autonomia individual e interesse público.

6. Disposição do corpo, diretivas antecipadas e o ambiente digital

A regulamentação sobre a disposição do próprio corpo para fins científicos ou de transplante e as diretivas antecipadas, presentes nos arts. 13, 14, 15 e 15-A, também recebem inovações significativas. Enquanto o texto atual proíbe o constrangimento em tratamentos médicos e exige autorização familiar em determinados casos, o PL 04/25 dispensa, em algumas situações, essa autorização mediante manifestação escrita, enfatizando a autonomia do titular. Essa mudança busca facilitar o exercício do direito à autodeterminação, mas pode, simultaneamente, romper com tradições de proteção familiar e introduzir uma burocratização excessiva, que, sem a devida regulamentação infralegal, pode inviabilizar a prática espontânea de direitos relacionados à saúde e à integridade física.

7. Proteção da identidade, liberdade de expressão e o direito de conhecer as origens

Os dispositivos que tratam da proteção da identidade – especialmente nos arts. 16, 16-A, 17 e 17-A – passam a incluir a proteção de pseudônimos e elementos identificadores de pessoas jurídicas, em resposta aos desafios impostos pelo ambiente digital. Essa ampliação é fundamental para assegurar a privacidade e a integridade dos dados pessoais, mas pode, se mal definida, restringir a circulação de informações e o debate público. Por fim, os arts. 18 e 19, que versam sobre o direito de conhecer as origens e a afetividade, permanecem praticamente inalterados, enquanto o art. 20 é reformulado para abranger explicitamente o ambiente virtual e estabelecer mecanismos específicos para a proteção da imagem e da palavra. Essa nova redação busca encontrar um equilíbrio entre a proteção à privacidade e a liberdade de expressão, embora a ausência de parâmetros claros possa ocasionar insegurança jurídica e inibir a transparência nas relações interpessoais.

III – Discussão e implicações práticas

A análise integrada dos dispositivos revela que o PL 04/25 representa um esforço ambicioso de modernização do ordenamento jurídico, ao mesmo tempo em que propõe alterações significativas na estrutura dos direitos da personalidade e da capacidade civil. Entre os pontos positivos, destaca-se a tentativa de alinhar o direito interno com as exigências internacionais, a ampliação dos mecanismos de proteção aos grupos vulneráveis e a flexibilização dos institutos de emancipação e autonomia para fomentar a atividade empresarial.

Porém, essa modernização não vem sem desafios. A ampliação dos conceitos – como a “personalidade internacional” e a inclusão de critérios subjetivos para avaliar a capacidade de expressão da vontade – pode levar a uma maior litigiosidade e a uma insegurança jurídica que comprometa a estabilidade das relações contratuais e empresariais. Além disso, a expansão do rol de registros e averbações, embora beneficie a transparência, impõe o risco de formalismo excessivo e onera o sistema registral, prejudicando a agilidade dos processos.

A exigência de formalismo excessiva no sistema registral, prevista no PL 04/25, vai na contramão da evolução tecnológica e da crescente digitalização das relações jurídicas e sociais. Ao ampliar o rol de registros e averbações, o legislador pode inadvertidamente onerar o sistema registral, impondo burocracia desnecessária e retardando a celeridade dos atos civis e empresariais. Essa abordagem ignora o potencial revolucionário de tecnologias como o blockchain, que permite registros imutáveis, seguros e transparentes, dispensando intermediários e custos operacionais. Enquanto o mundo avança para soluções digitais ágeis e seguras, insistir em formalismos arcaicos não apenas subverte o princípio da eficiência administrativa, mas também desconsidera a necessidade de adaptar o ordenamento jurídico aos novos paradigmas tecnológicos, prejudicando, assim, a modernização normativa e a competitividade do ambiente de negócios brasileiro.

Outro aspecto relevante refere-se ao equilíbrio entre a autonomia dos indivíduos e a proteção dos vulneráveis. Enquanto a emancipação precoce e a flexibilização dos critérios para capacidade civil podem estimular a atividade empresarial e a independência dos jovens, há o risco de expô-los a riscos inerentes a esse ambiente, especialmente sem o respaldo de políticas de proteção e acompanhamento adequados. Do mesmo modo, a inclusão de novos mecanismos de limitação voluntária dos direitos da personalidade, sem critérios objetivos, pode gerar uma interpretação judicial fragmentada, comprometendo a uniformidade e a previsibilidade das decisões.

Por fim, a adaptação do ordenamento ao ambiente digital, através da proteção ampliada da identidade e da imagem, representa uma resposta necessária aos desafios contemporâneos. Contudo, a ausência de diretrizes claras pode inibir a circulação de informações e, consequentemente, restringir o debate público, elemento essencial para a evolução democrática e para o fortalecimento da transparência na sociedade.

IV. Conclusões e recomendações

Em síntese, o PL 04/25 configura um esforço significativo para a modernização dos dispositivos relativos à personalidade, à capacidade civil e aos direitos fundamentais, sobretudo no que tange à atividade empresarial. As inovações propostas trazem avanços relevantes, como o reconhecimento da personalidade internacional e a ampliação dos mecanismos de emancipação, mas também impõem desafios notáveis, entre os quais se destacam:

  • Definição de conceitos: A necessidade de delimitar de forma precisa os termos ampliados, como “personalidade internacional” e “redução de discernimento”, para evitar interpretações arbitrárias e garantir a segurança jurídica.
  • Equilíbrio entre autonomia e proteção: A importância de encontrar um equilíbrio delicado entre a promoção da autonomia dos indivíduos (especialmente dos jovens empreendedores) e a proteção dos grupos vulneráveis, como menores e pessoas com deficiência.
  • Simplificação dos procedimentos: A redução do formalismo excessivo decorrente da ampliação dos registros e averbações, com a adoção de medidas que permitam a agilidade dos atos civis e empresariais sem comprometer a transparência.
  • Regulamentação infralegal: A urgência de complementar a lei com regulamentações infralegais que definam os parâmetros para a aplicação prática dos novos dispositivos, evitando assim conflitos interpretativos e garantindo a uniformidade na sua execução.
  • Diante desses desafios, recomenda-se que o legislador promova um debate amplo e multidisciplinar envolvendo autoridades, doutrinadores, operadores do direito e representantes da sociedade civil. Tal discussão deve buscar não apenas a modernização normativa, mas também a preservação da estabilidade e da previsibilidade das relações jurídicas, elementos essenciais para o fortalecimento da segurança jurídica e para o desenvolvimento econômico sustentável.

    Em conclusão, enquanto o PL 04/25 aponta para um caminho de modernização e maior alinhamento com os desafios contemporâneos, sua implementação deve ser acompanhada de medidas complementares que assegurem a clareza conceitual, a proporcionalidade das inovações e o equilíbrio entre os interesses individuais e coletivos, especialmente no âmbito da atividade mercantil.

    V. Considerações finais

    A transformação do ordenamento jurídico é um processo dinâmico que reflete as mudanças sociais e tecnológicas de cada época. A análise crítica apresentada evidencia que, para que as inovações legislativas atinjam seus objetivos, é imperativo que o novo marco legal seja acompanhado de regulamentações precisas e de um diálogo constante entre os diversos atores do sistema jurídico. Assim, a modernização não deve se sobrepor à segurança e à estabilidade, mas sim caminhar de mãos dadas com a proteção dos direitos fundamentais e com a promoção de um ambiente propício para a atividade empresarial e para a realização plena da cidadania.

    Giovani Magalhães

    Giovani Magalhães

    Professor de Direito Comercial/Empresarial.

    Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

    Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

    Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE – Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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