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É preciso falar do absurdo jurídico da penhora do salário. Aliás, o óbvio tem que ser dito a toda hora.
Por que os tribunais não obedecem ao art. 833 do CPC, que diz que são impenhoráveis os salários?
Tudo isso, é, sim, um grande retrocesso nos direitos fundamentais!
Vale lembrar que não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis (art. 832, CPC).
Nota-se, que o legislador criou limitação à busca do crédito do exequente, a fim de não violar à dignidade humana do executado.
Mas, na prática, em pleno século 21, há uma ideia de vingança privada, resquício do Direito Romano, que na lei das XII tábuas, por exemplo, permitia dividir o corpo do devedor em pedaços e entregar aos credores.
A propósito, pode o tribunal descumprir uma lei sem fazer jurisdição constitucional?
Isso tem nome: É ativismo judicial que gera insegurança no sistema de justiça.
Pois então. O Direito não é o que o juiz, desembargador, ministro do STJ e STF acham.
É o que está na Constituição e na lei. Simples assim.
Jurisprudência assopra e morde do STJ
Até 2015, o STJ, entendia de forma correta, de que a impenhorabilidade da conta-salário tinha por objetivo à dignidade da pessoa humana e a proteção legal do salário, motivo pelo qual não era devida a penhora, mesmo em suposto percentual baixo, do salário do devedor.
Não obstante, em 19/4/23, à Corte Especial do STJ decidiu, que é possível a penhora de parte do salário para pagamento de dívida não alimentícia.
Reparem: Um dia, o STJ fala uma coisa. Já no outro dia, muda de jurisprudência. Difícil. Muito difícil.
Infelizmente, a Corte Especial do STJ, nos embargos de divergência, deliberou que pode mitigar a impenhorabilidade do salário por dívida não alimentar, desde que preservada a dignidade do devedor e observada a garantia de seu mínimo existencial.
Contexto legal
O direito do legislador, no art. 833, IV, parágrafo 2º, do NCPC prevê que são impenhoráveis:
“IV – ‘os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º’
§ 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º , e no art. 529, § 3º.”
Há alguma dúvida na lei?
Mais claro que isso, impossível. Simples assim. Não dá para fazer “malabarismo jurídico” que rima com ativismo.
A propósito, não é o STJ o guardião da legalidade infraconstitucional?!
Juiz legislador
O ministro relator disse que o mínimo existencial resguarda tanto o devedor como o credor. Será? É um argumento retórico. Observemos:
“Penso que a fiscalização desse limite de 50 salários-mínimos merece críticas na medida em que se mostra muito destoante da realidade brasileira tomando o dispositivo praticamente inócuo, além de não traduzir o verdadeiro escopo da impenhorabilidade que é a manutenção de uma reserva digna para o sustento do devedor de sua família.”
Incrível: À vista disso, o STJ ignora o Direito positivo e inventa um novo. Deve, sim, obedecer à lei. Pois bem, foi o juízo do legislador que fixou o limite em 50 salários-mínimos.
O Executivo não vetou. (art. 66 § 1º da CF/88).
Está, sim, o Tribunal da Cidadania, usurpando o papel do legislador. O STJ quer jogar nas 11: julgar, legislar.
Separação dos poderes
A propósito, a “separação dos Poderes”, apareceu pela primeira vez por Aristóteles, na obra Política, por Jonh Locke, no Segundo Tratado do Governo Civil e, finalmente, na obra de Montesquieu1, no Espírito das Leis, onde para ele:
“Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado dos Poderes Legislativo e Executivo. Se estivesse unido ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.”
O art. 2º da Constituição vem daí, onde diz que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Vale ressaltar de que o Poder é uno, mas é dividido em funções.
Pois então. STJ erra ao permitir penhora da conta-salário o que é vedado por lei. Seus argumentos são metajurídicos.
O que é mínimo existencial?
Afinal, vem a pergunta: O que é mínimo existencial? É um conceito jurídico indeterminado. Como valorar? E o mínimo existencial de um desembargador ou ministro? Seria R$ 5.000 ou R$ 50 mil?!
Como o STJ sabe, no caso concreto, de que penhora de 30% do salário não atinge o mínimo essencial? Qual o critério para fixar o percentual de penhora?
Repetimos: O mínimo existencial resguarda tanto o devedor como o credor, disse o ministro relator. Doutrinariamente, jamais li isso. Pois então. É uma retórica. Pior: está “pegando”. Muitos juízos estão penhorando 30% do salário.
Muito pelo contrário. O mínimo existencial é para proteger o devedor. Não é o credor, ministro! No modo de produção capitalista quem arca com bônus arca com ônus. É o risco do empreendimento.
Fantástico, não é? Usar a teoria do mínimo existencial em favor do patrimônio do credor para penhorar os baixos salários brasileiros.
Rendimento médio do trabalhador brasileiro
O rendimento médio real do trabalhador brasileiro fechou o ano de 2024, em R$ 3.225,002, ou seja, não chega a três salários-mínimos.
É obsceno o salário. É fato.
Muito bacana! A impenhorabilidade não se restringe à verba alimentar desde que a parcela penhorada não comprometa à dignidade ou subsistência do devedor e sua família.
Entendi: É o tudo pelo credor! Primeiro, pague a sua dívida. Fica tranquilo! Não vai comprometer o mínimo existencial?! Pois é: vai faltar arroz, feijão e pão.
Vamos rememorar: Contudo, foi o legislador definiu o mínimo existencial. Não é o STJ. Não, mesmo!
Impenhorabilidade de até 40 salários-mínimos não pode ser reconhecida de ofício.
A Corte Especial STJ, em 2/10/24, sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.235), estabeleceu a tese de que a impenhorabilidade de depósitos ou aplicações bancárias no valor de até 40 salários-mínimos não é matéria de ordem pública e não pode ser reconhecida de ofício pelo juiz.
Ou seja, o art. 833, X, do CPC não é matéria de ordem pública e não pode ser reconhecida de ofício pelo magistrado, devendo ser arguida pelo executado no primeiro momento em que lhe couber falar nos autos ou em sede de embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença, sob pena de preclusão.
Vejam a tese:
Tema 1.235: “A impenhorabilidade de quantia inferior a 40 salários-mínimos (art. 833, X, do CPC) não é matéria de ordem pública e não pode ser reconhecida de ofício pelo juiz, devendo ser arguida pelo executado no primeiro momento em que lhe couber falar nos autos ou em sede de embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença, sob pena de preclusão.”
Pois é. O STJ diz fica “calmo” você ainda tem à disposição o manejo da impugnação ao cumprimento de sentença ou os embargos à execução para alegar e comprovar a impenhorabilidade.
Enquanto isso, a panela está vazia… É tudo um faz-de-conta!
Pior: Não havendo a alegação tempestiva em nenhuma dessas hipóteses, estará configurada a preclusão temporal da questão referente à impenhorabilidade, não podendo nem mesmo ser apreciada em exceção de pré-executividade, por não se tratar de matéria de ordem pública, à luz da interpretação sistemática dos arts. 833; 854, parágrafos 1º, 3º, I, e 5º; 525, IV; e 917, II, do CPC/15, disse a ministra relatora.
Venceu a federação dos bancos que participou como como amici curiae. E o direito constitucional dos pobres com seus salários fragilizados?
Daí a reflexão de Eduardo Galeano: A justiça é como uma serpente, só morde os pés descalços…
Por outras palavras, a decisão retirou das mãos do juiz o poder de reconhecer de ofício a impenhorabilidade.
O Tavinho que é o consumidor fraquinho e vulnerável, é que vai ter que provar as despesas.
Dignidade da pessoa humana
Que coisa feia! O STJ vai na contramão e atropela o CPC. O Direito é a vítima.
Por sinal, lembrei de um caso, ocorrido na Comarca de Itaguaí-RJ, onde uma senhora de 90 anos, doente e sem parentes, tinha sido despejada do seu imóvel por falta de pagamento.
Os oficiais de justiça ao chegarem no local não cumpriram o mandado de despejo.
Deram uma certidão informando ao magistrado a situação triste. Foi determinado, por ora, o recolhimento do mandado de despejo pelo juiz.
Ou seja, entre o direito de propriedade x dignidade humana, o julgador optou pelo princípio fundamental da República, vale dizer, a dignidade da pessoa, dando efetividade à Constituição.
Certo dia, contei esse caso para um famoso e querido professor, que, hoje, é desembargador. A sua resposta foi assim: Eu faria o despejo…
Cá pra nós: Que falta faz a filosofia do Direito. O Direito Constitucional. Parece que ninguém estudou isso na faculdade…
Mas, eles são “mestres” e “doutores” em lançar mão de argumentos de economia, política e moral…
Porém, o direito passa bem longe…
Ora, ora, entre o direito do credor, que, em regra, são dos grandes bancos que lucram bilhões por ano e à dignidade humana, não há dúvidas de que esta tem maior densidade.
Conclusão
A flexibilização do art. 833 do CPC, pelo STJ, ao arrepio do CPC, deu uma escancarada discricionariedade aos juízes para julgarem como quiserem sobre a penhorabilidade dos salários; tornando os trabalhadores mais miseráveis.
Contudo, a Constituição diz: O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art.5º, XXXII, CF/88)
Não é a defesa do credor! Não é a defesa do banco!
Gostem ou não gostem, não há como relativizar: É impenhorável, sim, o salário!
A corda só arrebenta para o lado do pobre. É um absurdo penhorar a conta-salário de quem tem que pagar: Aluguel, plano de saúde, comprar remédios, alimentos, pagar água, luz, telefone…
É de uma obviedade tão óbvia que, qualquer penhora nos baixos salários, não vai proteger o núcleo essencial da Constituição, violando o direito fundamental à dignidade humana e ao mínimo existencial.
O STJ errou! A penhora do salário: Viola, sim, a dignidade humana!
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1 MONTESQUIEU, Espírito das Leis, 2ª ed, São Paulo: Martins Fontes, 2000
2 https://g1.globo.com/economia/noticia/2025/02/21/quanto-ganham-os-trabalhadores-no-brasil-media-de-sp-e-quase-o-dobro-do-que-no-maranhao-diz-ibge.ghtml
Renato Ferraz
Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras