Vale tudo (ou os fins justificam os meios)?   Migalhas
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Vale tudo (ou os fins justificam os meios)? – Migalhas

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“Nas ações de todos os homens, em especial dos príncipes, onde não existe tribunal a que recorrer, o que importa é o sucesso das mesmas. Procure, pois, um príncipe, vencer e manter o Estado: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos louvados, porque o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos resultados, e no mundo não existe senão o vulgo…”

(Nicolau Maquiavel)

A antiguidade grega, informa Pablo Lucas Verdú,[1] manteve o ideal da lei diante do capricho despótico, e de maneira que os gregos se ostentaram de ser governados por leis e não por homens (Heródoto); porque as leis são menos apaixonadas que os homens (Aristóteles). A democracia ateniense representou, de certo modo, o modelo do Estado de Direito frente ao Estado-poder.

De acordo com Verdú, embora os direitos individuais fossem desconhecidos dos gregos, os defensores do Estado Liberal de Direito buscavam traçar paralelos com a herança grega e, pelo menos, assinalar antecedentes clássicos ao primado da lei sobre o poder.[2]

Verifica-se assim, que o tão proclamado Estado de Direito tem sua origem em uma concepção liberal. Pensava-se, deste modo, em “Estado Liberal de Direito”.

No que pese as diversas concepções e a amplitude genérica sobre o “Estado de Direito” que como visto remonta a ideia, a Platão e Aristóteles, do “governo das leis” contraposto ao “governo dos homens”, aqui se adota a simples, mas relevante, concepção de Estado de Direito como Estado Constitucional.

No Mercador de Veneza, William Shakespeare alerta-nos que “o demônio pode citar as Escrituras para justificar seus fins”. Nada mais correto, assevera Pablo Bezerra Luciano, para quem: “Não há nenhuma norma mais elevada ou ideia democrática que não possa ser usada com alguma técnica mais ou menos sofisticada pelo autoritarismo”.

Em tempos em que muitos aplaudem a política de segurança pública adotada pelo presidente Nayib Bukele, em El Salvador, necessário indagar se em nome do suposto “combate ao crime” vale tudo e se os fins justificam os meios.

Segundo alguns analistas a política de Bukele, que está em seu segundo mandato, tem como estratégia principal o regime de exceção decretado em março de 2022. Esta decisão implicou na suspensão de direitos e garantias fundamentais, como por exemplo, o direito ao habeas corpus. Multiplicaram-se as denúncias de prisões arbitrárias sem ordem judicial e de mortes ocorridas sob a custódia do Estado.

Para Ana Maria Méndez-Dardón, diretora para a América Central do Escritório para Assuntos Latino-Americanos em Washington (WOLA, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, “a principal característica deste governo de Bukele foi uma séria deterioração democrática, acompanhada de políticas eficazes para reduzir a violência dos homicídios, mas à custa de atentar contra os pilares da democracia (…)”3

Segundo Juan Pappier, vice-diretor da HRW – Human Rights Watch para as Américas, documentos da organização revelam dezenas de prisões arbitrárias de crianças. Pappier assevera que “os salvadorenhos não devem ser forçados a escolher entre segurança e outros direitos fundamentais”.4

A política de segurança, se assim pode ser chamada, de Bukele, baseada exclusivamente na repressão já prendeu 2% da população de cerca de 6 milhões de pessoas em El Salvador, o que no Brasil equivaleria ao encarceramento de mais ou menos 4 milhões de pessoas.

Atualmente a população carcerária brasileira é de mais de 850 mil presos – terceira maior do planeta em números absolutos – que vivem em condições desumanas e em um “estado de coisas inconstitucional” conforme já decidiu o STF.

As medidas tomadas pelo atual presidente de El Salvador são próprias de um “Estado de exceção” que ultrapassam todos os limites – inclusive com a supressão de direitos e garantias fundamentais – impostos pelo Estado de Direito para aniquilamento daqueles considerados os “inimigos” de ocasião.

A expressão “Estado de exceção”, segundo Pedro Serrano, teve “origem no dispositivo da Constituição democrática de Weimar, cuja indeterminação conceitual foi utilizada por Hitler para buscar legitimidade, quando da instauração de uma ditadura após o incêndio do Reichestag”.5

Grosso modo, pode-se dizer que o Estado de exceção se opõe ao Estado de Direito, em que a ordem jurídica vigente é suspensa objetivando restabelecer uma suposta “normalidade”. No Estado de exceção, a democracia é substituída pelo autoritarismo ou pela “pós democracia”, pela restrição de direitos e garantias fundamentais.

Contudo, verifica-se que a exceção virou a regra, como bem observa Rubens R. R. Casara ao referir-se ao Estado pós-democrático.

Hoje, são as regras e, em especial, os direitos e garantias fundamentais, que aparecem como o principal conteúdo rejeitado pelos órgãos estatais de nossa época, por mais que o discurso oficial insista na existência de um Estado Democrático de Direito. Os direitos fundamentais não são mais percebidos como trunfos contra a maioria ou como garantias contra a opressão do Estado.6

Mais adiante, Rubens Casara salienta que não há mais Estado de exceção (ou em termos benjaminianos, na tradição dos oprimidos, o Estado de exceção é a regra). É justamente a normalização da violação aos limites democráticos, o fato de ter se tornado regra, que caracteriza o Estado pós-democrático (…) O que era exceção no Estado Democrático torna-se a regra da pós-democracia7.

No Estado de exceção, alimentado pelo autoritarismo e pela negação de direitos e garantias fundamentais, a figura do inimigo passa a ser construída para manutenção do próprio Estado. O Estado de exceção constitui campo fértil para aniquilamento daqueles que foram elegidos à condição de inimigo.

Ao inimigo, como já dito, é negada a condição de pessoa. A ele (inimigo) são negados os direitos e as garantias fundamentais. Assim, o conceito de inimigo jamais se compatibiliza com o Estado de Direito. O conceito de inimigo é próprio de um Estado de exceção ou de uma guerra.

Referindo-se ao inimigo no direito penal, Zaffaroni assevera que:

O poder punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que não correspondia à condição de pessoas, dado que os considerava apenas como entes perigosos ou daninhos. Esses seres humanos são assinalados como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles é negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites do Direito Penal liberal, isto é, das garantias que hoje o direito internacional dos direitos humanos estabelece universal e regionalmente.8

Por tudo, é necessário que a sociedade compreenda, definitivamente, que o Estado Democrático de Direito se fundamenta no governo das leis no qual os fins jamais podem justificar os meios e, portanto, não vale tudo para o imaginado “combate ao crime” e o aniquilamento do “inimigo”.

E, por fim, como já foi destaco por Benjamin Franklin, “qualquer sociedade que renuncie um pouco de sua liberdade para ter um pouco mais de segurança, não merece nem uma, nem outra, e acabará por perder ambas”.

____________

1 VERDÚ, Pablo Lucas. La lucha por el estado de derecho. Espanha: Publicaciones del Real Colegio de España Bolnia, 1975, p. 14-15.

2 VERDÚ, ob. cit. p. 15.

3 https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz5jnrk4yxdo.amp

4 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2024/12/11/el-salvador-o-dilema-de-escolher-entre-seguranca-e-outros-direitos.htm?cmpid

5 SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Alameda, 2016, p. 166.

6 CASARA, Rubens R. R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 69-70

7 Idem, p. 72.

8 ZAFFARONI, Eugenio Raùl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 11.

Leonardo Isaac Yarochewsky

Leonardo Isaac Yarochewsky

Advogado Criminalista, Mestre e Doutor em Ciências Penais pela UFMG. Professor de Direito Penal Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) Membro do IDDD

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