A alienação de bens no âmbito dos planos de recuperação extrajudicial   Migalhas
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A alienação de bens no âmbito dos planos de recuperação extrajudicial – Migalhas

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A recuperação extrajudicial, prevista na lei 11.101/05 (LREF – Lei de Recuperação de Empresas e Falências), é um instrumento essencial para empresas em crise que buscam reestruturar suas dívidas de forma ágil e menos custosa.

Diferente da recuperação judicial, que exige maior intervenção do Poder Judiciário, o processo extrajudicial ocorre principalmente na esfera privada, entre o devedor e seus credores, sendo levado ao Judiciário apenas para homologação. Dentro desse contexto, a alienação de bens – como filiais ou UPIs – Unidades Produtivas Isoladas – surge como uma ferramenta estratégica para gerar recursos e viabilizar a recuperação financeira. Mas uma questão importante permanece: o que acontece com as dívidas vinculadas a esses bens alienados?

A resposta a essa pergunta não é trivial. Na recuperação judicial, a lei é clara: o art. 60, parágrafo único, da LREF estabelece que a alienação de ativos não implica a sucessão de obrigações por parte do adquirente. Ou seja, o comprador de uma UPI ou filial não assume as dívidas trabalhistas, tributárias ou civis da empresa vendedora. No entanto, a recuperação extrajudicial não possui uma regra expressa nesse sentido. Essa lacuna normativa tem gerado debates entre especialistas, mas a tendência é que a mesma lógica seja aplicada, por analogia, à recuperação extrajudicial.

A razão para isso é simples: tanto a recuperação judicial quanto a extrajudicial têm o mesmo objetivo – preservar a empresa e viabilizar sua reestruturação financeira. Se a alienação de ativos na recuperação extrajudicial implicasse a sucessão de dívidas, o mecanismo perderia sua eficácia, desincentivando potenciais compradores e, consequentemente, inviabilizando a geração de recursos necessários para a recuperação da empresa.

Além disso, a reforma trazida pela lei 14.112/20 reforçou a importância da recuperação extrajudicial, aproximando-a da judicial em termos de eficácia e proteção aos credores. Isso indica que o legislador reconhece a necessidade de tratar os dois institutos de forma coerente e alinhada aos princípios do sistema de insolvência. Em harmonia com o entendimento trazido acima, cita-se o rico ensinamento de Daniel Carnio Costa1 sobre a celeuma em debate:

… É certo, no entanto, que a aplicação da possibilidade de alienação de ativos sem risco de sucessão de débitos na recuperação extrajudicial estimularia o uso desse mecanismo de reestruturação, que é mais simples e menos custoso, potencializando, assim, a eficiência do sistema de insolvência empresarial. A compreensão dada ao sistema de insolvência como um todo, notadamente diante das diversas melhorias efetuadas pela reforma legislativa em relação ao instituto da recuperação extrajudicial, tornando-o mais próximo do instituto da recuperação judicial, somadas à principiologia que rege o referido sistema, que se funda primordialmente no princípio da preservação da empresa, indicam que a interpretação pela aplicabilidade da regra já existe para a recuperação judicial – no sentido de ser possível a alienação de ativos sem risco de sucessão de débitos, que se encontra estampada no art. 60, parágrafo único, da Lei 11.101/2005 – é plenamente viável também para a recuperação extrajudicial, afinal ambas possuem o mesmo objetivo.

… Ao nosso ver, todavia, a legislação deve ser interpretada de forma sistemática, especialmente considerando o fato de que a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial buscam alcançar o mesmo objetivo, sob pena de inviabilizar o cumprimento do princípio da preservação da empresa, previsto no art. 47 da Lei 11.101/2005, e comprometer a próxima eficiência de todo o sistema de insolvência empresarial brasileiro, além de acarretar a subutilização de uma das formas de soerguimento legalmente disponíveis, que é a venda de ativos, a qual, registra-se, muitas vezes consiste no único meio de a recuperanda alcançar recursos e, com isso, obter o seu soerguimento econômico.

A alienação de bens no plano de recuperação extrajudicial, portanto, deve ser vista como uma oportunidade para a empresa reduzir seu passivo e reforçar seu fluxo de caixa. Os recursos obtidos com a venda de ativos podem ser utilizados para quitar dívidas prioritárias ou para investir na continuidade das operações. No entanto, é fundamental que a alienação seja realizada de forma transparente, respeitando o preço justo de mercado (fair market value) e os direitos dos credores. A empresa também deve avaliar cuidadosamente quais ativos serão alienados, priorizando aqueles que não comprometam sua atividade-fim.

A jurisprudência tem caminhado nessa direção. Em decisão proferida no bojo do agravo de instrumento 2247932-97.2022.8.26.00002, a 31ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP analisou a responsabilidade do adquirente de unidades produtivas isoladas por débitos da empresa em recuperação extrajudicial. O acórdão destacou que, embora haja debate sobre a aplicação do art. 60 da lei 11.101/05 às recuperações extrajudiciais, o próprio adquirente assumiu a quitação de certas dívidas, mas apenas aquelas existentes até a alienação, aplicando-se as regras gerais do trespasse em decorrência da escolha entre as partes prevista no plano de recuperação extrajudicial.

Não obstante, em acréscimo ao debate em tela, a Ilma. relatora, doutora Rosangela Maria Telles teceu os seguintes esclarecimentos sobre a matéria:

… Quanto aos efeitos da alienação, é certo que o parágrafo único da lei de regência reconhece que “o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta Lei”.O § 1º, do art. 141, referenciado no dispositivo, por sua vez, afasta o efeito exoneratório em hipóteses de fraude, mormente quando o arrematante for sociedade controlada pelo falido ou quando houver objetivo de fraudar a sucessão. Não se desconhece que o art. 60 da Lei nº 11.101/05 se refere às recuperações judiciais; não havendo menção explícita da legislação sobre a extensão de tais efeitos à recuperação extrajudicial. Há, a partir dessa omissão legislativa, intenso debate doutrinário e jurisprudencial sobre a possibilidade de aplicação extensiva do instituto.

 Essa interpretação está alinhada com o princípio da preservação da empresa, que é o pilar central do sistema de insolvência brasileiro. Afinal, o objetivo não é apenas salvar a empresa da falência, mas também proteger empregos, manter a cadeia produtiva e preservar o valor econômico da atividade empresarial.

Apesar dos avanços, ainda há desafios. A ausência de uma regra expressa na LREF sobre a não sucessão de obrigações na recuperação extrajudicial pode gerar insegurança jurídica, tanto para as empresas quanto para os credores. Por isso, é essencial que o Poder Judiciário e os operadores do direito adotem uma interpretação sistemática da lei, considerando seus princípios fundamentais e a finalidade do sistema de insolvência. A aplicação analógica do art. 60, parágrafo único, à recuperação extrajudicial é não apenas viável, mas necessária para garantir a eficiência do instituto.

Por fim, em resumo, observa-se que a alienação de bens no plano de recuperação extrajudicial é uma ferramenta útil para a reestruturação financeira de empresas em crise. Quando realizada de forma planejada e alinhada aos objetivos do plano de recuperação, ela pode gerar os recursos necessários para quitar dívidas, reforçar o fluxo de caixa e garantir a continuidade das operações. No entanto, é fundamental que a legislação e a jurisprudência continuem evoluindo para eliminar lacunas e garantir segurança jurídica a todos os envolvidos. Afinal, a preservação da empresa não é apenas um interesse privado – é um benefício para toda a economia.

A regra geral – CC, CLT e CTN – de alienação de estabelecimentos empresariais e a sua inaplicabilidade à sistemática da LREF

Existe traçado comum e o regime jurídico de alienação de ativos, dentro do Direito brasileiro, detém regra geral, como revela a análise composta dos códigos especializados. Neste caso, importam: o CC, a CLT e o CTN, que, a despeito da reforma tributária, ainda terá longa vida no ordenamento.

Na sistemática cível, o CC de pronto estabelece a sucessão de dívidas ao adquirente como regra, inda que mantenha a responsabilidade concomitante do alienante de forma temporária3.

Dentro da esfera trabalhista, onde a proteção da vulnerabilidade do empregado tem prevalência, a conclusão última não se distingue: estabelece-se a continuidade da relação de emprego e a responsabilidade do adquirente pelo passivo trabalhista, independentemente de sua contabilização pretérita ou não4.

Já o Fisco, igualmente bem guarnecido pelas garantias do CTN, também terá fundamento à persecução do adquirente por seus créditos, mesmo que anteriores à aquisição5.

Ao fim e ao cabo, o que se vê é que o Direito brasileiro entende como solução jurídica geral a imposição de obrigações ao adquirente em prol da garantia dos credores – sobretudo aqueles detentores de créditos especiais, juridicamente tido por sensíveis.

Essa regra geral, contudo, não atende a necessidade personalíssima dos créditos falimentares e de recuperação (extra)judicial. E isso se dá em virtude da mesma teleologia da regra geral, adaptada às circunstâncias especialíssimas que envolvem esses créditos excepcionais.

Basta refletir: se a pretensão legal é a proteção do crédito e o único meio material imediato que uma empresa recuperanda dispõe para negociar com seus credores são os bens restantes de seu patrimônio, como concretizar esse fim quando a insegurança jurídica criada pela imposição de uma sucessão de dívidas torna a venda/cessão desses bens impossível ou economicamente impraticável? Pior ainda: quando diminui dos bens seu justo valor, tornando ínfima a liquidez e obrigando a venda pelo popular dito “preço de banana”.

É notório que quem perde em último caso, assim como em primeiro, também são os credores. Esses reflexos, há tempos percebidos pelo legislador, é que tornaram mister a criação de uma lei dedicada à tutela dessas situações empresariais críticas, visando excepciona-las das generalidades típicas.

A regra especial à alienação de ativos da LREF, segundo a 14.112/20

Mesmo quando da criação da Lei de Recuperação Empresarial e Falência, destinada à época a tutelar a sucessão de dívidas dentro das recuperações (extra)judiciais e falências, não houve fim à discussão.

O problema da sucessão de obrigações em vendas de UPI’s e filiais só veio a ser solucionada definitivamente por intermédio da alteração do art. 60 da originária 11.101/05, através das modificações trazidas na lei 14.112/20. A redação modificada trouxe:

Lei 11.101/05 – Art. 60. … Parágrafo-único. O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta Lei.

Após anos de discussões sobre a finalidade perseguida pelo legislador da LREF, quanto a possibilidade de sucessão de obrigações, o que restou confirmado por essa clareza escrita da reforma legislativa de 2020 é exatamente aquilo que concluiu Paulo Furtado de Oliveira Filho, quando de sua dissertação de mestrado à Universidade de São Paulo:

“Ou seja, a escolha política oriunda do Congresso Nacional – quer pela redação originária da Lei, quer ainda pela Reforma -, é a de que, salvo as exceções previstas pela própria Lei (o que se observa no inciso II do art. 141), não há sucessão de nenhuma obrigação na alienação de ativos no formato previsto pelo art. 60 e demais dispositivos da LREF. 67.”6

Assim, a conclusão acerca de uma interpretação sistemática da LREF é que o regime jurídico preferido pelo ordenamento jurídico à alienação de ativos empresariais dentro dos institutos tutelados pela norma é a própria exceção aos outros códigos especializados; ou seja, em sistemática própria, a regra geral assumida pela 11.101/05 é a não-sucessão de dívidas, mediante, claro, seus requisitos pré-determinados.

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1 COSTA, Daniel Carnio; MICHELS, Liliane Midori Yshiba. A possibilidade de alienação de ativos sem o risco de sucessão de débitos na Recuperação Extrajudicial. In: A nova recuperação extrajudicial: análise e configurações da doutrina e prática nos tribunais / organização de Alexandre Correa Nasser de Melo, Juliana Biolchi / Curitiba: Juruá, 2024.

2 TJ-SP – Agravo de Instrumento: 2247932-97.2022.8.26.0000 São Paulo, Relator: Rosangela Telles, Data de Julgamento: 17/02/2023, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/02/2023

3 Art. 1.146, do Código Civil.

4 Arts. 10, 448 e 448-A, da Consolidação das Leis do Trabalho.

5 Art. 133, do Código Tributário Nacional.

6 OLIVEIRA FILHO, Paulo Furtado de. Recuperação extrajudicial: alienação de estabelecimento e inocorrência de sucessão. 2024. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2024. doi:10.11606/D.2.2024.tde-04092024-184711. Acesso em: 2025-02-04.

Letícia Marina da S. Moura

Letícia Marina da S. Moura

Advogada e jornalista. Especialista em Direito Empresarial e Falência e Recuperação de Empresas. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Processo Recuperacional e Falimentar da Fundação Arcadas/USP.

Ivon Garcez

Ivon Garcez

Analista jurídico e acadêmico de Direito, membro do Grupo de Estudos em Direito e Economia da Universidade de Brasília.

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