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Me preocupam os pré-julgamentos. No dia 28 de março de 2025, Daniel Alves foi inocentado, por unanimidade, pelo Tribunal Superior da Catalunha, e dificilmente terá sua honra e reputação restauradas.
Quando o jogador foi preso, a mídia e diversas pessoas influentes se levantaram, praticando um linchamento público sem precedentes. Após a declaração de inocência, revisitei as páginas de algumas dessas pessoas. Muitas já haviam removido suas postagens, sem sequer demonstrar a decência de se retratar pelos comentários maldosos e preconceituosos que fizeram. Pelo contrário: preferiram permanecer em silêncio, como se nada tivesse acontecido.
O caso Daniel Alves é um triste episódio que nos obriga a repensar o modelo de justiça que ajudamos, direta ou indiretamente, a (des)construir.
Espero, sinceramente, que esse lamentável episódio nos sirva de alerta e nos leve a refletir sobre os critérios e a responsabilidade com os quais estamos julgando acusações tão graves como essa.
É inevitável se perguntar: quantos “Alves” foram condenados injustamente com base em um modelo de julgamento sustentado exclusivamente na versão unilateral de uma pessoa que se declara vítima? No caso de Daniel Alves, a inocência foi decretada porque a narrativa da suposta vítima não encontrou respaldo nas provas produzidas.
Por outro lado, é fundamental sabermos aceitar os resultados. Bem-vindos à democracia. Quando Daniel Alves foi preso, houve aplausos e comemorações pela atuação da justiça. Agora, com a absolvição que reconheceu sua inocência, muitos passaram a criticar o Judiciário, inclusive acusando-o de corrupção, demonstrando claro inconformismo com o resultado jurisdicional.
Não importa o que eu, você ou qualquer outra pessoa pense sobre o caso. Se o Tribunal declarou Daniel Alves inocente, o dever democrático é respeitar e aceitar a decisão – ainda que provisória. Na democracia, a jurisdição é o único caminho legítimo para a resolução de conflitos.
Meu time já perdeu do maior rival e, nem por isso, aleguei ter sido assaltado. Saber perder também é um ato de cidadania. Se Daniel foi inocentado, por unanimidade, por um colegiado composto majoritariamente por mulheres, devemos acatar a decisão e celebrar o fato de uma injustiça ter sido reparada – ainda que os danos à vida do jogador sejam, em grande parte, irreparáveis.
Alguns retrucaram: “Mas ele traiu a esposa.” Isso é uma questão de moral, não de direito. Esse aspecto diz respeito à esfera pessoal e deve ser resolvido entre o jogador e sua companheira. Nada, absolutamente nada, equipara-se a uma condenação injusta por um crime sexual. Fato é que o Tribunal declarou Daniel Alves inocente – gostem ou não.
É importante destacar que o sistema de justiça espanhol é reconhecidamente garantista e um dos mais avançados do mundo civilizado. A decisão que absolveu o jogador foi proferida por um órgão colegiado, majoritariamente feminino, com observância da perspectiva de gênero.
Aproveito o momento para tecer uma crítica pontual à adoção automática e acrítica do protocolo de julgamento com perspectiva de gênero como fundamento exclusivo para a condenação. Esse protocolo, instituído pelo CNJ, é uma ferramenta relevante para enfrentar a histórica desigualdade de gênero, partindo da premissa de que a maioria dos crimes contra as mulheres ocorre em contextos de difícil comprovação. Por isso, atribui-se à palavra da mulher um peso especial.
Contudo, a narrativa da suposta vítima, isoladamente, não pode ser suficiente para embasar uma condenação criminal. É imprescindível que sua versão esteja em consonância com as demais provas produzidas no processo, sob o crivo do contraditório e do devido processo legal. No caso Daniel Alves, a versão da denunciante mostrou-se isolada, não sendo corroborada pelas provas técnicas e imagens apresentadas nos autos.
Não se trata aqui de defender a impunidade. Longe disso. O objetivo deste ensaio é alertar para as graves consequências de uma condenação injusta. É preciso refletir se estamos trilhando o caminho certo. Devemos olhar para os fatos e repensar o nosso modelo legal e judicial, em busca de mais justiça e menos precipitações. Da mesma forma, é urgente chamar atenção para os danos sociais e pessoais que o linchamento público causa à vida de qualquer acusado injustamente. Esse caso reforça a necessidade de criação de leis mais severas e eficazes para prevenir e reprimir o linchamento moral e virtual.
No contexto dos crimes contra a dignidade sexual – e, transportando essa discussão para o cenário brasileiro, especialmente no âmbito da Lei Maria da Penha -, a palavra da suposta vítima tem, sim, peso relevante. Pode justificar medidas protetivas e até mesmo fundamentar o oferecimento da denúncia. Contudo, para que haja uma condenação criminal, é necessário mais. A versão isolada não tem o condão de afastar o estado de inocência do acusado. No processo penal, o réu começa presumidamente inocente. É dever da acusação, com provas robustas, desconstruir esse estado até o ponto em que seja possível condenar. Não sendo possível, impõe-se a absolvição, sob o princípio do in dubio pro reo.
No caso Daniel Alves, o jogo processual mudou. O Tribunal Superior da Catalunha o declarou inocente. Ainda que sobrevenha recurso da acusação ou da parte denunciante, o jogador responderá em liberdade, já que os recursos não gozam de efeito suspensivo.
Por fim – e não menos importante -, o caso Alves chama a atenção para outro ponto sensível: os danos difusos causados pelos linchamentos social e virtual.
Daniel Alves ficou preso, foi condenado em primeira instância, teve sua carreira destruída, sua imagem manchada e foi alvo da mais brutal condenação pública. Com sua inocência agora reconhecida pelo Tribunal espanhol, surge a pergunta inevitável: é possível recuperar a dignidade perdida?
Sinceramente, acho improvável. Não há como esquecer ou reparar completamente os estragos reputacionais. Se ele conseguir conviver com esse estigma, será uma vitória pessoal e silenciosa.
A partir do caso Daniel Alves, devemos cultivar a sensibilidade e a prudência necessárias para repensar nossas leis, o funcionamento da justiça e, acima de tudo, nosso papel enquanto sociedade. Quantos “Alves” já cumpriram ou ainda cumprem pena por crimes que não cometeram?
Diante da gravidade das acusações, das penas elevadas e do estigma intransponível que tais casos carregam, o caso Daniel Alves deve ser um divisor de águas – um marco para o aprimoramento das leis, para a qualificação da sua aplicação e, principalmente, para a criação de mecanismos eficazes de prevenção e repressão ao linchamento público.
Júlio Cesar Konkowski da Silva
Advogado especializado na defesa na LEI MARIA DA PENHA e em MEDIDAS PROTETIVAS, com atuação em todo o Brasil.