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Mais um ano se encerra. Um ano difícil. Um ano instigante. Um ano “pós-pandêmico” que demandou de todos – cidadãos, sociedade civil organizada, entidades privadas e Poderes Constituídos – capacidades de resiliência, de reinvenção e de ressignificação. E mais um ano se avizinha. O ano de 2023 carrega, nesse sentido, problemáticas e desafios importantes a serem enfrentados. Mas o ano de 2023 ao mesmo tempo traz consigo esperanças. Esperanças de diálogo e de construção de um país mais justo, mais igual, mais sustentável, etc…
E um dos desafios que há algum tempo é objeto de debate e que o novo governo federal enfrentará – ao menos é o que se está noticiando – é a reforma tributária. O debate sobre a reforma tributária tem de ser feito com compromisso de observância à engenharia constitucional do Estado Brasileiro. É cogente o respeito e a preservação das autonomias dos entes municipais que integram o federalismo cooperativo como é o caso do Brasil.
Ora, é nas cidades onde a vida acontece. É nas municipalidades onde grande parte dos direitos fundamentais se concretizam. É nas cidades onde grande parte das políticas públicas se materializam. Daí porque nos permitimos falar que fora dos municípios não há “salvação”.
Não por acaso, Rui Barbosa dizia: “não há corpo sem células. Não há Estado sem Municipalidades. Não pode existir matéria vivente sem vida orgânica. Não se pode imaginar existência de Nação, existência de povo constituído, existência de Estado, sem vida municipal”1.
E se o assim o é, as receitas tributárias devem, a bem higidez da sistemática constitucional, ser repartidas de forma equânime entre a União, os estados e os municípios, de modo que cada ente federativo disponha de meios suficientes à concretização dos deveres a ele exigidos2.
Nesta perspectiva, direitos fundamentais, políticas públicas, municípios e reforma tributária guardam entre si vinculações diretas e umbilicais. Pensar em reforma tributária implica, portanto, observar o arranjo constitucional dos direitos fundamentais.
É inconcebível uma reforma tributária que viola autonomia e esvazia a capacidade financeira das municipalidades, porquanto compromete a efetivação de políticas públicas concretizadoras de direitos fundamentais.
Reforma tributária que racionalize o sistema, simplifique a arrecadação e diminua a burocracia anacrônica, reduza impactos na cadeia produtiva, estimule investimento e emprego, confira segurança jurídica, deve também, a um só tempo, garantir recursos financeiros aos entes federativos a fim de cumprir as suas missões constitucionais3.
Reforma tributária que transfira parte da centralização das receitas tributárias da União para os estados e suprima/reduza as autonomias dos municípios, deixando tais entes federativos com diminutos recursos e dependentes dos estados não é reforma. Em absoluto não. É, sim, deformação do sistema constitucional com gravíssimas consequências para a efetivação dos direitos fundamentais4.
Significa comprometer, em grande medida, políticas públicas de saúde, de educação, de moradia, de redução das desigualdades e de exclusões sociais, de mobilidade, de planejamento e de ordenamento urbanos, dentre outros, na medida em que tais são problemáticas concretas e de alçada municipal.
Nessa toda, a PEC 46/22 protocolada, no último dia 22 de dezembro, pelo Senador Oriovisto Guimarães, a partir da proposta do Simplifica Já, parece-nos que atende às premissas acima lançadas: simplifica a tributação do consumo; reduz impactos na cadeia produtiva; confere segurança jurídica; e respeita e preserva a autonomia constitucional dos municípios.
É imperioso, portanto, o que Governo Federal, ao tratar de qualquer projeto de reforma tributária, observe e respeite o arranjo constitucional do Estado Brasileiro, preservando as autonomias dos municípios como entes federativos que são, pois apenas, e tão-somente, assim serão atendidos e cumpridos os fundamentos expressos no art. 1º (cidadania e dignidade da pessoa humana), os objetivos fundamentais preconizados no art. 3º (construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação), os direitos e garantias fundamentais disciplinados nos art. 5º e 6º, dentre outros dispositivos da Constituição Federal. Até porque, e à título de conclusão, fora dos municípios não há “salvação”.
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1 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 27 ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2011, p. 193.
2 Reforma tributária precisa preservar a autonomia dos entes federativos
3 Reforma tributária precisa preservar a autonomia dos entes federativos
4 Reforma tributária precisa preservar a autonomia dos entes federativos
Gustavo Machado
Procurador do Município de Recife. Presidente da Associação Nacional dos Procuradores Municipais (2021-2023). Conselheiro do Instituto dos Advogados de Pernambuco – IAP (2020-2022 e 2022-2024).