Abuso sexual infantil (ASI), TEPT, memória e aspectos cognitivos   Migalhas
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Abuso sexual infantil (ASI), TEPT, memória e aspectos cognitivos – Migalhas

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Olá colegas Migalheiros!

Sempre um prazer estar aqui com vocês, discutindo temas relevantes para a Psicologia Jurídica, que também são aproveitados e acrescentados pelos operadores do Direito!

No artigo de hoje, quero mencionar alguns aspectos relevantes destacados pela literatura especializada, quanto aos principais sintomas e traumas do abuso sexual infantil, que devem ser observados por todos, para a devida condução da avaliação psicológica e do processo judicial cabíveis.

Abuso sexual infantil (ASI), TEPT, memória e aspectos cognitivos:

Segundo DEL BIANCO e TOSTA (2021), o abuso sexual infantil apresenta uma elevada incidência epidemiológica, provoca severos comprometimentos ligados ao desenvolvimento das vítimas e é considerado um problema de saúde pública (HABIGZANG, KOLLER, AZEVEDO, & MACHADO, 2005; OLIVEIRA et al., 2014). Dentre as sequelas, a depressão e o sentimento de culpa têm sido extensivamente referidos (CANTÓN-CORTÉS & CORTÉS, 2015; FLORENTINO, 2015; HABIGZANG et al., 2005; SANT’ANNA & BAIMA, 2008; SERAFIM et al., 2011; WHO, 2003).

Em WINNICOTT (1990), a chave para a compreensão das depressões e do sentimento de culpa é encontrada na fase do amadurecimento denominada de estágio do concernimento ou posição depressiva, um estágio normal do desenvolvimento emocional, que permite que o indivíduo seja capaz de ter sentimento de culpa, possibilitando-o se envolver nos relacionamentos e se preocupar com os outros. Na fase do concernimento, a criança passa a tolerar a preocupação e a culpa decorrentes do reconhecimento, com o tempo, de que algo que acredita ter machucado, subtraído ou destruído, pode ser reparado, reconstruído. São as experiências de reparação e de restituição que possibilitam o ser humano suportar a destrutividade que está na base do amor instintivo. Também no estágio do concernimento ocorre a diferenciação gradual entre fatos e fantasias, ou melhor, a base do “(…) reconhecimento de idéias, fantasias, elaboração imaginativa da função, a aceitação das idéias e da fantasia relacionada ao fato, mas que não deve ser confundido com ele” (WINNICOTT, 1954/1993, p.444). Especialmente sobre fatos e fantasias, WINNICOTT (1990, cit.) discorre que nos sonhos das garotas não podem ser evitadas, entre outras:

  • a ideia da morte da mãe1;
  • a ideia de estar roubando da mãe o seu marido, seu pênis2 e;
  • a ideia de ver-se à mercê da sexualidade do pai3.
  • Nos achados winnicottianos, a depressão pode ser compreendida enquanto (a) sinal de amadurecimento e de um desenvolvimento normal, relacionada a uma capacidade e indicativa de saúde, e (b) como uma patologia relacionada à interrupção do desenvolvimento emocional (DEL BIANCO e TOSTA, 2021, cit.). Conforme WINNICOTT (1958/1983), a melancolia é uma forma organizada de depressão onde o paciente é paralisado por um sentimento de culpa e se acusa de ter causado as inúmeras mazelas sociais. Ao reivindicar para si a culpa de todas as pessoas e malfeitos do mundo, o melancólico estaria, em última análise, evitando entrar em contato com a sua própria destrutividade.

    Por fim, em relação à noção de trauma, WINNICOTT (1965/1994) o conceitualiza como “um fracasso em relação à dependência” (p.113), o que envolve uma consideração de fatores externos. Para o autor, a ideia de trauma tem diferentes significados em função do estágio do desenvolvimento emocional da criança, que vai da dependência à independência.

    De acordo com FERENCZI (1933/1992), a criança, frente à situação de abuso sexual, reage ao brusco desprazer “pela identificação ansiosa e a introjeção daquele que a ameaça e a agride” (p. 103), e não pela defesa. A criança, se conseguir se recuperar de tal agressão, se sentirá intensamente confusa e dividida entre a sua inocência e culpa. De acordo com o autor,

    […] o sentimento de culpabilidade, no erotismo adulto, transforma o objeto de amor em objeto de ódio e de afeição, ou seja, um objeto ambivalente. Ainda que essa dualidade inexista na criança no estágio da ternura, é justamente esse ódio que surpreende, assusta e traumatiza uma criança amada por um adulto. Esse ódio transforma um ser que brinca espontaneamente, e com toda a inocência, num autômato, culpado do amor […]. É o sentimento de culpa e ódio contra o sedutor que conferem às relações amorosas dos adultos o aspecto de uma luta assustadora para a criança […]. (FERENCZI, 1933/1992, p. 106).

    Quando uma criança tem receio de contar para a mãe acerca do abuso, pode estar vivenciando o que KHAN (1963/1984) denominou de “trauma cumulativo”: “[…] resulta das fendas observadas no papel da mãe como escudo protetor” (p. 62), durante todo o período em que as funções do ego da criança ainda são imaturas e instáveis. Para ALMEIDA-PRADO e FERES-CARNEIRO (2005), o silêncio imposto à criança pelo abusador e/ou pelo meio circundante não se deve particularmente à culpa, mas sim à perseguição. Tratar-se-ia de uma culpa persecutória, perseguição que não permite uma atitude verdadeiramente reparatória, mas ao contrário, faz com que a situação abusiva tenda a perdurar.

    BORGES e DELL’AGLIO (2008 a) apresentam pesquisas que apontam que a avaliação das alterações emocionais e comportamentais se torna um elemento importante à identificação dos casos de abuso sexual infantil (ASI), uma vez que na maioria destes casos não são observadas marcas físicas. Comportamento sexual inapropriado, baixa autoestima, sentimentos de desamparo, ódio e medo, relações interpessoais disruptivas, tendências suicidas, isolamento, fugas de casa, dificuldade de confiar no outro e estabelecer relações interpessoais têm sido descritos como as principais consequências (AMAZARRAY & KOLLER, 1998; KENDALL-TACKETT et al., 1993; TYLER, 2002). Entre as psicopatologias mais associadas à ocorrência de ASI estão os transtornos de humor, transtornos de ansiedade, transtornos dissociativos, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtornos alimentares e o transtorno de abuso de substâncias. O Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) tem sido citado como o quadro mental mais frequente em vítimas de ASI. Conforme proposto por KENDALL-TACKETT et al. (1993 apud BORGES e DELL’AGLIO, 2008 a, cit.), observa-se a heterogeneidade dos sintomas emocionais e comportamentais em crianças vítimas de abuso sexual. Estes autores ainda mencionam que algumas crianças podem ser assintomáticas e que os sintomas podem variar de acordo com o período de desenvolvimento.

    Em outro artigo de BORGES e DELL’AGLIO (2008 b), o TEPT é ainda compreendido como um distúrbio da memória, devido às falhas no processamento da informação do evento traumático, que podem estar associadas:

  • ao processamento seletivo do conteúdo do evento traumático;
  • à generalização dos estímulos explícitos e implícitos da memória traumática;
  • a problemas para o esquecimento direto do conteúdo traumático da memória; e
  • a problemas na recuperação das memórias autobiográficas (MCNALLY, 1998).
  • Pesquisas neuropsicológicas mencionadas pelas autoras corroboram tais estudos, uma vez que indicam a presença de prejuízos na memória de curto-prazo, na memória declarativa, na atenção sustentada, na aprendizagem verbal, na construção visual e em funções executivas associadas ao TEPT. Conforme afirmam, à p.376:

    Os estudos aqui citados são consistentes ao afirmarem que a exposição ao estresse crônico, como é o caso do abuso sexual na infância, resulta num estado persistente de medo e, desta forma, pode causar efeitos negativos ao neurodesenvolvimento. Neste sentido, a exposição crônica ao abuso sexual na infância pode resultar no desenvolvimento do TEPT durante os períodos críticos do processo de maturação e organização cerebral, que, por sua vez, pode influenciar a natureza dos prejuízos cognitivos (BORGES; DELL’AGLIO, 2008 b, p.376).

    Por sua vez, os estudos  acerca da influência da memória na evocação de fatos, principalmente traumáticos, apontam que o efeito depende de fatores moderadores como: o tempo decorrido entre o episódio e sua lembrança, a frequência com que a lembrança é repetida (“ruminação”, ou repetição mental), fatores individuais com a idade e a importância do episódio para o indivíduo. A literatura especializada é inconclusiva porque, se de um lado, a emoção contribui para a durabilidade da memória, também pode ser um fator de esquecimento pelo trauma (e daí o indivíduo “preenche as lacunas” com informações alheias ao fato principal) (SARAIVA; CASTILHO, 2018).

    Depressão e abuso sexual infantil:

    Segundo BAPTISTA (In: BORSA, LINS e ROSA, 2022), mencionando o DSM-5 (APA, 2014), a depressão é uma patologia do humor, debilitante e altamente heterogênea, e de causas múltiplas e associadas: biológicos, genéticos, saúde, psicológicos, sociais, ambientais, culturais.

    No caso da depressão de crianças e adolescentes, foi ignorada e desconsiderada por muito tempo, alegando-se que “não existia”, sob a crença do mito da “infância feliz” e “inocência da criança”. Porém, com os estudos de SPITZ (1993) acerca da depressão em crianças institucionalizadas (“depressão anaclítica “), houve revisão deste conceito, e se admite que a depressão é bastante comum na adolescência e ocorre ao menos ocasionalmente em crianças pequenas. Quando o humor deprimido dura seis meses ou mais e é acompanhado por outros sintomas (ex.: transtornos do sono, alimentação e dificuldade de concentração), geralmente se trata de depressão clínica ou Transtorno Depressivo Maior (TDM), que pode ter graves consequências: interferir na aprendizagem por diminuir a velocidade na qual o cérebro processa informação, suscetibilidade de adicção de drogas entre adolescentes, e ideação suicida (BEE; BOYD, 2011).

    Segundo BAPTISTA (2018), crianças podem expressar sintomas depressivos de maneira um pouco diferente dos adultos: em vez da verbalização ou consumação do desejo de suicídio (ou ideação suicida), podem verbalizar uma vontade de dormir eternamente ou de sumir. Outros estudos apontam que crianças de 6 a 12 anos expressariam sintomas psicossomáticos (ex.: dores de cabeça, abdominais), enurese, problemas com sono e irritabilidade, choro e acessos de raiva, enquanto as mais velhas (de 12 a 16 anos expressariam sintomas comportamentais, como cansaço, intolerância à rotina e esquiva de situações sociais. No estudo de caso de DEL BIANCO e TOSTA (2021, cit.), os múltiplos e crônicos traumas intrafamiliares ocorridos na infância foram fatores importantes para o quadro de depressão da paciente, levando a crer que o trauma decorrente do abuso sexual pode ser decisivo para a futura eclosão dessa patologia.

    Como nos ensina DUARTE (2012):

    A criança que interessa ao psicanalista é antes de tudo, um sujeito de desejo, e seu sofrimento é uma busca da verdade. Nesse sentido, o trabalho empreendido em análise consiste em fazê-la passar de infans , para aquele que fala e que pode ser escutado como sujeito do discurso. Na família, a criança está inserida num laço social que necessariamente implica na inter-relação de vários sujeitos quando cada um a olha e a escuta a partir de sua realidade psíquica (DUARTE, 2012, p. 176).

    Observação importante: a avaliação psicológica deve ser a mais correta possível, para se identificar se sintomas como ansiedade ou depressão já estavam presentes no histórico da criança/adolescente, ou se apareceram ou se agravaram a partir da acusação de abuso. Porque é necessário que haja nexo causal entre o alegado abuso e o sintoma. Além disso, muitos sintomas como culpa, medo, ansiedade ou depressão podem ser decorrentes da situação forçada de ter que formular uma acusação inverídica contra o(a) outro(a) genitor(a), e daí a criança desenvolve reações psicossomáticas (que o(a) acusador(a) atribui sofismaticamente ao abuso!).

    STEIN e cols. (2009, p.158) afirmam que:

    […] o fato de ser constatada determinada sintomatologia na criança, ainda que possa sinalizar a associação a uma situação traumática (como nos casos dos transtornos de estresse pós-traumático), não é indício suficiente para nos informar acerca da contingência concreta sobre uma determinada situação de violência, tal qual é necessário para que um caso possa ser efetivamente encaminhado para a justiça […].

    O que acontece, porém, é que as acusações inverídicas de molestação sexual servem para interromper definitivamente as visitas do genitor afastado. Com isso, as dramatizações do genitor alienador e da criança envolvida na alienação (induzida pelo alienador) passam a convencer os profissionais chamados a prestar os serviços: conselheiros tutelares, delegados, psicólogos, assistentes sociais, médicos, promotores e juízes, especialmente se tais profissionais forem despreparados e desconhecerem a possibilidade de uma acusação ser falsa, ou se por motivos pessoais, estiverem ‘tentando encontrar culpados’ a qualquer custo, com recursos para ‘descobrir ou revelar a verdade’, quase nunca apropriados (perguntas diretivas, nível elevado de ansiedade, reações emocionais frente às respostas da criança que ‘sugerem’ inconscientemente como a criança deve responder para ‘agradar’ o entrevistador etc.). Muitos desses profissionais despreparados ‘caem na armadilha’ do(a) alienador(a) e na teatralização da criança, e endossam ingenuamente a história, cometendo o maior de todos os equívocos: interromper as visitas indefinidamente, acreditando que com isso estará ‘protegendo’ a criança.

    Conforme retrata DIAS (2013, p.16):

    Mas a ferramenta mais eficaz é a denúncia de práticas incestuosas. A narrativa de um episódio durante o período de visitas que possa configurar indícios de tentativa de aproximação de natureza sexual é o que basta. O filho é convencido da existência do acontecimento e levado a repetir o que lhe é afirmado como tendo realmente ocorrido. A criança nem sempre consegue discernir que está sendo manipulada e acredita naquilo que lhe é dito de forma insistente e repetida. Com o tempo, nem a mãe consegue distinguir a diferença entre a verdade e a mentira. A sua verdade passa a ser verdade para o filho, que vive com falsas personagens de uma falsa existência. Implantam-se, assim, falsas memórias.

    Considerações finais:

    Já mencionei em outro artigo que a avaliação psicológica para esses casos de abuso sexual, apurar se são verdadeiros ou falsos, se os sintomas são autênticos ou simulados, é fundamental para a saúde mental da criança/adolescente, para toda a família, bem como para a condução correta do processo, incluindo-se aí a punição do(a) agressor(a), se cabível (tanto se for verdadeira, em que a criança/adolescente esteja sob violência física e/ou sexual, quanto se for falsa, em que ela estará sendo vítima da violência psicológica do(a) alienador(a) interessado em implantar falsas memórias, obstruir a convivência da criança com o(a) outro(a) e induzi-la a simular emoções e reações psicossomáticas inverídicas. Para que se apure se essa criança está sofrendo algum tipo de violência, é necessário que os profissionais técnicos estejam devidamente qualificados, instrumentalizados, conscientes de sua responsabilidade em auxiliar essa família a dar um direcionamento e orientação corretas. Tendo ampla liberdade e autonomia para atuar conforme os parâmetros éticos e técnicos, porém sem restrições ideológicas de nenhuma natureza (pior ainda se forem decorrentes de fake news, como a infame Nota Técnica 04/22 do Conselho Federal de Psicologia!), os psicólogos serão capazes de discernir as acusações verdadeiras das falsas, assim como identificar a alienação parental verdadeira e a falsa acusação de alienação parental (que também é um ato de alienação parental e que também é crime!).

    As distorções da lei da alienação parental (12.318/10 + 14.340/22) são decorrentes das manobras inescrupulosas das bancadas parlamentares extremistas que se conluiam com os órgãos de classe desinformados que oprimem pelo poder para impor restrições à atuação dos profissionais, impedindo-os de efetivamente analisar e orientar as famílias da melhor forma que proteja a integridade física e psicológica das crianças e adolescentes. Quando todos esses obstáculos forem eliminados, teremos uma atuação psicológica soberana, autêntica e independente, que terá condições e instrumentos apropriados para avaliar os sintomas das crianças, apurar se são autênticos ou simulados, se estão influenciados por terceiros, se o trauma e manifestações secundárias são realmente correlacionados com o abuso, em que contexto surge a acusação de abuso (se veio de um litígio entre os pais por guarda, visitas, pensão ou partilha de bens).

    A Psicologia Jurídica é uma ciência em expansão (SILVA, 2021). Não pode ser cerceada por manobras inidôneas e inescrupulosas de pessoas e instituições egoístas que obstruem as providências de proteção às crianças e adolescentes (como a infundada e reprovável exigência de revogação das leis da alienação parental!) porque é justamente esse instituto da alienação parental que permitiria aos profissionais identificar os abusos reais e os falsos, e sugerir as políticas públicas mais adequadas de orientação parental e familiar.

    Conforme salienta DOLTO (2003, p.143):

    A criança precisa, principalmente, de um interlocutor que não a leve imediatamente a sério e que compreenda o clima afetivo do qual emanam suas afirmações e sua “ação”. […]. Cabe decodificar o desejo por trás de seus ditos […] Existe uma lógica dos discursos da criança na qual é preciso iniciar-se para compreender o que ela quer dizer no curso daquilo a que chamamos ‘perícias’.

    Bem, no momento é o que gostaria de expor neste artigo, cujo tema ainda pode se desenvolver muito mais!

    Espero que tenham apreciado a leitura, e fico à disposição para o debate saudável.

    Até o próximo!!!

    Denise Maria Perissini da Silva

    Denise Maria Perissini da Silva

    Psicóloga clínica e jurídica. Coord. PG Psic. Jur UNISA e UNIFOR. Prof. SEWELL/SECRIM. Colab. Comissões OAB/SP e “Leis & L.etras” Autora livros Psic. Jurídica. Perissini Cursos e Treinamentos S/C.

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