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A advocacia é uma profissão árdua e, em certa medida, instransponivelmente solitária. Dos advogados autônomos aos integrantes de grandes bancas ou estruturas, dos recém-formados aos mais experimentados veteranos, qualquer um deles se pegará, cotidianamente, tendo de tomar decisões fundamentais que poderão alterar os rumos de seus escritórios, de sua carreira, mas substancialmente, os rumos da vida de seus clientes e assistidos.
É, portanto, uma atividade que, se bem desempenhada, causa medo. Em certas circunstâncias muito medo. Tal qual um cirurgião, aquele que se debruça sobre um caso para definição estratégica sem algum nível de preocupação, aquele que enfrenta uma audiência sem qualquer vestígio de ansiedade, aquele que assume uma tribuna sem qualquer vestígio de receio, está assumindo riscos intoleráveis e estará sempre às vésperas de um evento trágico. Algumas vezes fatal.
Essa vigilância constante é figurativamente descrita na língua portuguesa como o “frio na barriga” e parece ser de difícil conciliação com a máxima de Heráclito Sobral Pinto, segundo a qual “a advocacia não é profissão para covardes”. Mas apenas parece. Pois a existência do medo de forma alguma inviabiliza a coragem. Pelo contrário, à fundamenta, eis que ela não se consagra pela ausência de medo, mas sim por sua superação. Como bem se sabe, a ausência de temor não é sinônimo de coragem, mas sim de ignorância, insanidade ou incúria. Coragem, portanto, é o não permitir que o frio na barriga se torne o gelo congelante.
Isso, inobstante, não torna ninguém corajoso. Tal adjetivo não se deve apenas aquele que vence seus medos, mas, substancialmente, àqueles que enxergam a necessidade de manifestar, de expressar e de agir, mesmo diante de situações e circunstâncias que não despertam tal denodo à maioria dos seus pares. Deve-se, isso sim, àqueles que sabem enxergar na normalidade, o absurdo. No usual, o inadmissível. Na praxe, a perversão.
Antonio Cláudio Mariz de Oliveira merece, portanto, o adjetivo. Sua trajetória já tão cantada, é permeada desses predicados. É marcada pelo diagnóstico de batalhas que deveriam ser travadas quando muito poucos percebiam a injustiça. E é delineada não apenas pela previsão, mas substancialmente, pela ação contra o império da força, da opressão e da submissão.
A adaptabilidade do ser-humano é uma das chaves de seu triunfo como espécie, mas também guarda em si, de outro gume, a essência do conformismo e da transigência. Aquele que nasce e cresce em um ambiente, dificilmente conseguirá entender outro mundo diferente daquele. É a obra e o engenho de alguns poucos que se erguem contra “as coisas como são” que permitem a evolução de uma sociedade em direção à igualdade e, sobretudo, à liberdade.
Mariz é em essência um defensor da liberdade e seu êxito não emerge apenas da defesa de seus clientes, mas também da classe que não apenas integra, como também representa arquetipicamente. E assim o é, fundamentalmente, pois jamais se deixou flanar pelas coisas como elas são. Há bons homens que sabem percorrer as veredas de um rio. Outros sabem pisar a margem, sulcar a terra e abrir novos canais que possam irrigar a terra. Mariz há 50 anos irriga o nosso sistema de justiça, a nossa advocacia e todos os tipos de liberdade.
Confesso que não sou a pessoa mais autorizada a falar da vida, da obra e do legado do nosso vozeiro, como os autores da excelente obra “A Defesa”, editada em sua homenagem. Tampouco me farei de desconhecido, pois tive o prazer de gozar de muitos momentos ao seu lado, sobretudo pela felicidade de poder privar da amizade de dois de seus filhos, Fábio e Renata, que se por um lado herdaram o carisma e a coragem do pai, por outro nos presenteiam com suas singulares luzes e encantamentos. No entanto, não poderia deixar de ousar essas palavras em sua homenagem e assim o faço, porque Mariz foi um lumiar e uma fonte de inspiração em momentos muito difíceis de minha carreira.
Ainda me lembro de lhe ouvir de perto no almoço dos jovens advogados criminalistas, organizado por um grupo de amigos – Fábio Mariz entre eles – há quase quinze anos . Éramos jovens e eu, particularmente, tinha medo. Tinha muito medo. Suas palavras, mesmo as de improviso, sempre pareceram um fluxo contínuo de erudição, de familiaridade, de clareza, que formam um tecido extremamente bem trabalhado, mas ainda assim, macio ao toque e acessível dos reis aos plebeus. Uma fala que ao mesmo tempo que desenha, esculpe e descobre a forma dentro da rocha, algo comum aos seus textos que ainda hoje leio com voracidade.
Naquele dia, ainda cheio de medo dos desafios de então e do porvir, pude perceber que nosso exemplo maior de coragem e bravura também havia congregado dos mesmos receios, mas os enfrentado sem sinais de hesitação. Na orquestra de suas palavras encontrava as razões pelas quais não deveríamos jamais nos abater e baixar a cabeça, ainda que todos os fizessem. Naquele dia, posso dizer que finalmente senti que não estava sozinho. Alguém nos dizia o que muito poucos tem audácia de dizer na advocacia. Que vamos lutar, que vamos perder e não devemos jamais desistir. E esse alguém era um dos maiores de todos.
Brecht nos ensinou que há homens que lutam por um dia e são bons. Outros que lutam por um ano e são melhores. Mas há aqueles que lutam a vida inteira e esses são imprescindíveis. Esse é Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, cujas lutas, nas quais jamais perdeu a afabilidade e o bom-humor, inspirou gerações e gerações, de perto e de longe, por suas coragens e por seus medos. A mim e ao nosso país, indispensável.
Bruno Salles Ribeiro
Sócio do escritório Salles Ribeiro Advogados.