Reforma do CPP: principais inovações referentes ao interrogatório do acusado
Antonio Milton de Barros*
A Lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003, introduziu alterações na Lei de Execução Penal (LEP) e no Código de Processo Penal. Quanto a este último, as mudanças ocorreram no capítulo referente ao interrogatório (arts. 185 a 196), na defesa técnica (art. 261) e na citação do réu preso (art. 360). Neste espaço, serão comentadas as principais inovações, que compreendem os princípios constitucionais da ampla defesa, direito ao silêncio e contraditório.
1. Ampla defesa
Em primeiro lugar, destaca-se a obrigatoriedade da presença do defensor, como se pode conferir na atual redação do caput do artigo 185: “O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado”. Nesse mesmo dispositivo, incluiu-se um parágrafo, com a seguinte redação: “O interrogatório do acusado preso será feito no estabelecimento prisional em que se encontrar, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Inexistindo a segurança, o interrogatório será feito nos termos do Código de Processo Penal”. Outra inovação trazida com a nova redação do artigo 185 decorre do disposto em seu parágrafo segundo, que assim determina: “Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista reservada do acusado com seu defensor”.Tornou-se, portanto, obrigatória a presença do defensor no interrogatório, o que, aliás, já deveria se extrair da Constituição Federal. Além disso, está prevista a possibilidade de entrevista reservada do defensor com o interrogando. A eficácia dessa última previsão dependerá, muito, da postura do advogado nomeado, pois, em geral, a nomeação será feita no momento do interrogatório, de forma que ele precisará exigir o tempo para sua realização. Já se tem notícia de que juízes estão impedindo a entrevista reservada, determinando sua realização em sua presença. Além da evidente arbitrariedade, a conduta poderá revelar a subserviência do advogado, que se submeter a ele. O advogado deve recusar-se a participar, mesmo que seja substituído na nomeação. Se todos agirem assim, não haverá o interrogatório. Na verdade, os maiores culpados por tais abusos são os próprios advogados, que se curvam a eles.Sobre o interrogatório em estabelecimento prisional, já começam a surgir as primeiras controvérsias. De um lado, sustenta-se que a regra fere a publicidade que deve nortear os atos processuais, salientando-se que eventual restrição, por ser permitida apenas quando indispensável para a preservação da intimidade ou do interesse público (CF, art., 5º LX), depende de decisão judicial tomada em face da especificidade de cada caso. Assim, conclui-se que “a restrição de maneira geral e indiscriminada da publicidade de ato que, em sua essência deve ser aberto a acompanhamento pelo povo, além de suprimir do exame judicial a verificação de sua pertinência no caso concreto, torna inviável o controle difuso do exercício da atividade jurisdicional”. Por isso, tais atos seriam nulos.1A despeito da escorreita argumentação, penso que a lei permite uma análise de cada caso, obviando a nulidade que se alega, pois efetivamente tem trazido transtornos graves à administração a necessidade de se transportar os réus presos para serem interrogados, sendo compreensível a exceção, mesmo porque nem sempre a publicidade será restrita. Contudo, não vai ser tão comum que os juízes saiam de seus gabinetes, onde possuem melhor estrutura e mais conforto, para realizar interrogatórios em presídios. Haverá dificuldade, também, para os deslocamentos dos advogados. De qualquer modo, creio que essa forma obviaria o risco de fuga, sem a necessidade de adoção de outras medidas mais gravosas, como o interrogatório à distância, de que se falará a seguir. Restaria ainda para resolver a respeito da participação desses mesmos réus nas audiências de instrução do processo, em que devem, igualmente, estar presentes.Em sentido completamente inverso, reaparece no cenário a discussão sobre o interrogatório à distância (ou on line), que constava do projeto de lei, mas que não integrou o texto recentemente aprovado. No Estado de São Paulo, conforme noticiado pela imprensa, o Governador reuniu-se com o presidente do Tribunal de Justiça, para discutir a implantação do sistema, após a notícia de mais uma fuga de preso que estava em trânsito para ser interrogado em juízo. Observe-se que a fuga não ocorreu na via pública, mas do interior de presídio onde ele aguardava a transferência para o forum. Um dos argumentos utilizados, para sustentar o cabimento de interrogatório à distância, consiste em afirmar-se que a lei não o veda. A imprensa noticia, também, que a OAB entrará com medida judicial, visando coibir tal prática. Aliás, como visto, um segmento dos advogados não concorda sequer com o interrogatório no presídio.Penso que a razão esteja com aqueles que não admitem essa forma de interrogatório à distância, uma vez que o acusado tem direito a entrevistar-se diretamente com o juiz. Aqui, parece-me que a Administração, inclusive a do Tribunal, pois é nessa condição (de administrador) que seu presidente fala, já esteja vislumbrando as objeções que muitos juízes farão, quanto ao deslocamento, e estão preferindo a tomada de decisões que evitem esse enfrentamento. Mas não deixa de ser curioso que se tenha aguardado a mudança do Código de Processo para assegurar garantias que a Constituição já previa (contraditório e ampla defesa), mas agora se fuja do mesmo Código, para se apegar a princípios gerais (permissão tácita do interrogatório on line).Sobre o asseguramento do direito de entrevista, embora configure inegável avanço, parece-me que ainda não seja suficiente, nos casos em que o advogado seja nomeado no momento do interrogatório, como deverá ser a regra. O ideal será a nomeação do advogado com antecedência, para que tenha tempo de estudar o caso e fornecer a orientação adequada.Esse tópico comporta, ainda, a análise dos artigos 193, 196, 198, 261 e 360, que tratam de aspectos relacionados com a amplitude de defesa. A saber:1.1. A intervenção de intérprete (art. 193)O artigo 193 trata do interrogatório daquele que não fala a língua nacional. Enquanto pela redação anterior constava que o interrogatório era feito por intérprete, agora ele passa a ser feito por meio de intérprete. Assim, cumprirá ao juiz competente proceder ao interrogatório, por meio de intérprete. Conforme salientado, mesmo que o juiz tenha o domínio da língua estrangeira falada pelo réu, a presença de intérprete será imprescindível caso a defesa não disponha de igual conhecimento e formação, sob pena de violação do princípio constitucional da ampla defesa.2 E acrescentaríamos que, em obediência ao princípio do contraditório, também se impõe que o promotor seja inteirado do teor do interrogatório, no idioma que entender. E a publicidade dos atos também exige a presença do intérprete, ainda que o advogado e o promotor dominem a língua estrangeira.1.2. Novo interrogatório (art. 196)Dispõe o novo artigo 196 que: “A todo tempo o juiz poderá proceder a novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes”. A redação anterior não facultava expressamente a possibilidade de pedido de novo interrogatório, pelas partes. A previsão apenas se restringia à decisão ex-offício, pelo juiz. Embora conste do texto legal que o juiz poderá proceder, ou seja, não está obrigado a atender a postulação da parte, é certo que eventual indeferimento deverá ser fundamentado, nos termos do artigo 93 IX, da Constituição Federal, uma vez que o próprio pedido exige fundamentação.Desse modo, constitui-se, efetivamente, em oportunidade de manifestação da autodefesa, cuja denegação injustificada, por se constituir em cerceamento ao direito de ação ou de defesa, conforme de quem tenha partido o requerimento, poderá ser argüida em preliminar de apelação.1.3. desarmonia sistemática (art. 198)O artigo 198, cuja redação não foi alterada, ao prever que “O silêncio do acusado não importa confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz” não se mostra coerente com os demais dispositivos que tratam do direito ao silêncio e por isso deve ser considerado tacitamente revogado.31.4. Defesa efetiva (art. 261)Recorde-se que o artigo 261 proclama que “Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”. A esse dispositivo, acrescentou-se um parágrafo, com o seguinte teor: “A defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada”.Bem, aqui se trata do que o projeto denomina de “defesa efetiva”, sendo que a respectiva exposição de motivos informa que se pretende que a defesa não seja meramente formal. Embora não seja totalmente injusta a insinuação de que os defensores nomeados não se empenhem com o mesmo denoto, penso que a generalização não se justifique. Na verdade, o que se vê é que os defensores dativos não dispõem de meios, nem mesmo de tempo, para uma atuação mais efetiva. Relembre-se que, anteriormente, a nomeação se dava após o interrogatório e não raro coincidindo com o início da instrução. Assim, teria sido melhor que o legislador fixasse a obrigação de que o defensor fosse nomeado logo após a citação do acusado (ou que assim se conduza na prática), para que tenha tempo de estudar o caso, o que não ocorrerá se a nomeação vier a ser feita no momento do interrogatório.Ademais, bem ao contrário do que a lei sugere, a defensoria pública, quando se tornar realidade em todo o país, será fator de maior garantia para o acusado, pois não ocorrerão mais essas nomeações precárias, em que o advogado nem sempre tem a liberdade plena de atuação, ante a ameaça de ser substituído ou de não ser indicado para outros casos, o que lamentavelmente por vezes ainda ocorre, conquanto hoje seja menos comum.1.5. Citação do réu presoPor último, a questão da citação do réu preso, que se pretendeu corrigir, continua a merecer reparos, senão vejamos. A redação anterior do artigo 360 não previa a citação do acusado. Ele era requisitado, para o interrogatório. Dizíamos que era “rebocado”, “guinchado”. Agora consta do dispositivo: “Se o réu estiver preso, será pessoalmente citado”. Antes, não se falava em citação, mas de requisição do acusado. Agora, fala-se em citação, mas não se refere à eventual necessidade de que o acusado seja requisitado. Não obstante, estando preso ele não poderá sair quando quiser, pelo menos não em regra. Poder-se-á dizer que continua equivocado o texto da lei, como já se ouve. Diz-se que a lei deveria determinar a citação e também a requisição, quando necessário, ou seja, quando o interrogatório não fosse realizado no presídio. Mas, como se trata de uma reforma parcial da lei, tem-se que aproveitar os mesmos espaços, seus artigos. Acaba havendo alguma improvisação. A citação do preso, a rigor, não precisaria ser tratada de forma excepcional, pois sua obrigação decorre dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, de forma que deverá ser feita nas mesmas hipóteses que em relação aos réus livres, por mandado. As providências para sua efetivação e, posteriormente, para a viabilização do comparecimento são questões afetas ao aspecto administrativo e de disciplina carcerária, que se resolve em cada caso, mediante ofício judicial. Afinal, como já deveria ser anteriormente, o ofício requisitório deve ser dirigido à autoridade administrativa, para que possibilite o transporte do acusado ou as condições necessárias para que o juiz o interrogue. Não é correto falar-se em requisição do réu preso, pois se está suprimindo o direito que ele tem decidir se deseja comparecer para o interrogatório ou se pretende quedar-se revel. Repita-se, pois, a requisição deve ser endereçada ao funcionário que tem a chave da cadeia.2. Sobre o direito ao silêncioO artigo 186, sob nova redação, ficou assim: “Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas”. A ele foi acrescido um parágrafo único, com a seguinte redação: “O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”.O novo regramento nada mais fez do que “transportar” para o Código aquilo que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inc. LXIII, já preconizada, desde 1988: o acusado tem direito a permanecer calado e ponto final. Desde a promulgação da Carta Magna, não poderia ser interpretado literalmente o artigo 186, na segunda parte, quando valorava de forma negativa o silêncio do acusado. No entanto, a Constituição poderia ser ignorada, como o é em outros aspectos não regulados em diplomas infraconstitucionais.3. Sobre o contraditórioAnteriormente, o artigo 187 do Código dispunha: “O defensor do acusado não poderá intervir ou influir, de qualquer modo, nas perguntas e nas respostas”. A matéria passou a ser tratada no artigo 188 e vice-versa.Essa questão já repercutiu em muita polêmica, pensando-se que a vedação era apenas para o defensor, na medida em que não se referia à acusação e também porque, no artigo 394, o Código determinava a intimação do acusador para o interrogatório. No entanto, como já analisamos em outro trabalho4, o princípio da isonomia reconduz a outro entendimento, ou seja, a participação ou a não participação no interrogatório deve ser de ambas partes. Antes de 1988, era mais aceitável que ambos os representantes das partes não participassem. Após a promulgação da Constituição, o melhor entendimento recomendava a participação de ambos. Mas, em regra, vedava-se que tivessem participação ativa. Ignorava-se o texto constitucional. Doravante, tal não será mais possível, pois o artigo 188 reza: “Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se resta algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante”.Em conseqüência, embora não expresso no texto, a presença do acusador (MP ou querelante) no interrogatório também deve ser, também, obrigatória, uma vez que a simples possibilidade de haver perguntas da defesa pressupõe a indispensável presença da parte contrária, visando assegurar o contraditório. Embora se possa ter, ainda, o interrogatório como meio de defesa, pela faculdade que o acusado tem de se calar, à acusação deve caber a primazia de perguntar primeiro. Talvez pudesse ser outro o entendimento se o interrogatório fosse realizado após a instrução, como previsto no projeto de reforma relativo ao procedimento. O texto mantém o formato presidencial de inquirição, submetendo ao crivo do juiz a pertinência e o cabimento da intervenção, o que está de acordo com nossa tradição procedimental (art. 212)5. De qualquer forma, a exemplo do que ocorre com o depoimento, em caso de indeferimento de pergunta, a parte pode requerer sua consignação para futura apreciação em eventual recurso.Por sua vez, pela redação do artigo 187, ao disciplinar que o interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do acusado e sobre os fatos, denota-se a intenção de profligar aquelas discussões sobre se o acusado teria que responder às perguntas que não se referissem ao fato, tais como os dados de sua qualificação, os antecedentes criminais e sociais etc., inclusive justificando-se eventual condução coercitiva, nos termos do artigo 261, do Código de Processo Penal. Essa questão merece análise mais detalhada, mas desde logo se pode antever a inutilidade de perguntas do tipo “quais foram suas oportunidades sociais?”, da mesma forma que ocorre com o preenchimento de boletim de vida pregressa a partir de interrogatório ao próprio acusado. Esses dados deveriam ser objeto de estudo sociológico e psicossocial, inclusive para correta individualização da pena.______1 Cf. Cleunice Valentim Bastos Pitombo e outros, Publicidade, ampla defesa e contraditório no novo interrogatório judicial, In: Boletim do IBCCRIM, ano 11, n. 135, p. 2, fev. 2004.2 MARCÃO, Renato Flávio. Interrogatório: primeiras impressões sobre as novas regras ditadas pela Lei n.º 10.792, de 1º de dezembro de 2003. Disponível In: .3 Esse, também, o entendimento exarado pelos autores do texto referido na nota n. 1, supra.4 BARROS, Antonio Milton de. A defesa do acusado e sua intervenção no interrogatório do acusado, in: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 4, vol. 14, p. 131, abr. jun.1996.
5 Se bem que no projeto referente aos procedimentos este esteja prevista a inquirição da testemunha diretamente pelas partes.____________* Promotor de Justiça aposentado
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Atualizado em: 28/4/2004 16:08