O uso do nome de pessoa pública como homenagem póstuma   Migalhas
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O uso do nome de pessoa pública como homenagem póstuma – Migalhas

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No dia 29 de janeiro de 2022 o Brasil dormiu triste. Uma inestimável perda ao nosso patrimônio histórico e cultural foi comunicada diretamente de São Paulo, quando anunciada a morte do saudoso Rei do Futebol, após longa luta contra um câncer. De imediato, inúmeras homenagens surgiram no Brasil e em todo mundo, demonstrando a profunda admiração de toda a sociedade àquele que levou alegria às pessoas e, literalmente, parou uma guerra em outro continente. Gestores públicos passaram a anunciar homenagens póstumas a Pelé, dentre as quais citamos o decreto 51.916/231, do Prefeito do Rio de Janeiro, que renomeou uma das principais vias de acesso ao Maracanã como “Avenida Rei Pelé”.

Fato é que Pelé, além de Edson, se tornou uma relevante marca em todo o mundo, registrada no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) e em outros países. Daí surgem naturais as indagações acerca do alcance e dos limites jurídicos da utilização da expressão de seu nome. Afinal, não raras se tornaram as consultas visando homenagens àquele que, muito mais do que a sua cidade natal, Três Corações/MG, e seu eterno clube, Santos Futebol Clube, representou o Brasil em todo o mundo, seja pelo encanto de seus 1283 gols e três títulos mundiais com a camisa Canarinho, ou por sua enorme representatividade em pautas sensíveis voltadas a educação e saúde das crianças.

O presente estudo, apresentado como homenagem um ano após o falecimento de Pelé, para além de relembrar os seus notórios feitos, em campo e fora dele, propõe-se a expressar nossa opinião sobre o alcance da utilização de seu nome. 

O primeiro ponto a ser abordado remete a eventual conflito das homenagens com a proteção da propriedade intelectual concedida ao nome artístico – Pelé – registrado perante o INPI como marca nominativa e mista em diversas classes de serviços e produtos.

A lei 9.279/96 (Lei da Propriedade Industrial) estabelece em seu art. 124, XVI, que não são registráveis como marca “pseudônimo ou apelido notoriamente conhecidos, nome artístico singular ou coletivo, salvo com consentimento do titular, herdeiros ou sucessores“. Assim, a partir da interpretação a contrario sensu, a legislação estabelece que, havendo iniciativa ou autorização do titular ou sucessores, os nomes artísticos e apelidos são plenamente registráveis, o que, no caso de Pelé, ocorreu ainda em vida, eis que os registros junto ao INPI remetem ao início da década de 1990.

E para efeitos práticos, o que isso implica? Conforme os artigos 129 e 131, ambos da lei 9.279/96 o titular possui o direito de uso exclusivo da marca em todo o território nacional, podendo (I) ceder seu registro ou pedido de registro; (II) licenciar seu uso; (III) zelar pela sua integridade material ou reputação. Por consequência, a utilização indevida de marca registrada gera dever de indenização material e moral, e é inclusive imputado crime às condutas de reprodução, imitação ou comercialização de produtos utilizando a marca de terceiro de má-fé.

Evidente, pois, que é vedada a utilização da marca registrada sem autorização do titular, inclusive de nome artístico, para quaisquer fins de circulação de bens e serviços, especialmente nas classes em que o nome artístico se encontra registrado. Porém, nem toda forma de utilização da expressão configura-se como uso indevido da marca. O artigo 132, IV, da lei 9.279/96, estatui que o titular da marca não poderá impedir a citação da marca em discurso, obra científica ou literária ou qualquer outra publicação, desde que sem conotação comercial e sem prejuízo para seu caráter distintivo.

Assim, fontes não comerciais, especialmente publicações, e atos que não constituam comércio de bens e serviços podem utilizar sem autorização do titular o nome registrado, desde que respeitados os direitos da personalidade. Neste teor, cita-se como exemplo a nomeação de logradouros públicos.

Ao incentivar a valorização da memória e do patrimônio cultural brasileiro, estabeleceu a Constituição Federal, em seu artigo 216, que “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem”, dentre outros, […] “IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais” e “V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.

Em relação à nomenclatura destes espaços, a despeito da ausência de previsão específica da Carta Magna, na legislação infraconstitucional, em âmbito federal, lembramos a lei 6.454/77, com as alterações dadas pela lei 12.781/13, onde figura a proibição em atribuir “nome de pessoa viva ou que tenha se notabilizado pela defesa ou exploração de mão de obra escrava, em qualquer modalidade, a bem público, de qualquer natureza, pertencente à União ou às pessoas jurídicas da administração indireta”.

É de se notar que a mencionada legislação se limita aos bens públicos pertencentes à União ou às pessoas jurídicas da administração indireta, nada dispondo acerca dos demais, razão pela qual coube aos legisladores locais – estaduais e municipais – dispor acerca do tema.

Em denominador comum, estipulou-se a proibição de nomeação de pessoas vivas, podendo se extrair, de forma exemplificativa, o disposto pela Lei Municipal de Curitiba 6.053/79 no seu artigo 5° e respectivos incisos:

“Art. 5º A proposição que vise denominar logradouros públicos com nome de pessoa deverá obrigatoriamente ser instruída com justificativa escrita, firmada pelo autor, dela devendo constar: I – Biografia do homenageado, com dados suficientes para evidenciar o seu mérito, nos campos da educação e cultura, ciências, letras e artes, política, atividade empresarial, profissional ou filantrópica, ou em outras formas da atividade humana;

II – Datas de Nascimento e Falecimento do homenageado, comprovadas, uma e outra, com certidões dos registros públicos competentes, dispensadas estas nos seguintes casos:

a) quando se tratar de figura de indiscutível projeção no passado histórico nacional, regional ou local;

b) quando se tratar de personagem de irretorquível fama e reputação nacional ou internacional”.

Como se vê, a nomeação dos logradouros públicos converge em uma homenagem póstuma, a exemplo do que fez a Prefeitura do Rio de Janeiro no início do ano com Pelé, possibilitando-se a utilização do nome, “próprio” ou artístico, do falecido independentemente de autorização de seus herdeiros ou, no caso específico, de quem possua os direitos sobre a marca.

Aludido uso tampouco implicará em contraprestação financeira, conforme orienta Ana Lucia Ikenaga, em sua dissertação de Mestrado intitulada “A atribuição de nome como modo de exploração de bens públicos” (P. 61, 2012)2:

“A nomeação é, como visto, um reconhecimento. E nesse sentido, poder-se-ia dizer que a nomeação é caracterizada por consistir em um ato unilateral, espontâneo e gratuito.

Não se cogita de nenhum tipo de aceitação por parte dos sucessores do homenageado. É um ato que não depende da vontade dos sucessores do homenageado, basta a vontade “do povo” para que se realize uma homenagem honorífica.

E como um ato do povo, não seria uma conduta eticamente adequada que a nomeação fosse resultado de uma moção ou iniciativa realizada pelos descendentes de uma determinada figura ou personalidade. Trata-se de um reconhecimento público e como tal deve ser por ele realizado e não como uma espécie de promoção familiar. Proposta a nomeação por um representante do povo e aceita pelos seus pares, aperfeiçoa-se o instituto”.

Conclui-se, pelo exposto, que apesar dos melhores interesses, é importante avaliar cuidadosamente a utilização de nomes e apelidos de alto renome, especialmente nos casos em que estes encontram-se registrados como marca.

No caso de Pelé, a despeito dos diversos registros vinculados ao INPI, por razão de sua notória excelência nos gramados mundo afora, que lhe renderam a alcunha de Rei do Futebol e posterior atuação como Ministro dos Esportes, a nomeação de logradouros públicos se revela viável, a exemplo do que já ocorreu no Rio de Janeiro.

Entretanto, para demais usos, como, por exemplo, a nomeação de um museu ou de uma escola de futebol que homenageie Pelé, por envolverem atividades que possuem classe própria junto ao INPI, deverão passar por prévia autorização do titular destes direitos patrimoniais. Quanto ao Edson, entende-se que o seu nome poderá ser utilizado enquanto forma de homenagem, atentando-se às proteções ao direito de personalidade, a fim de que sua memória seja tão gloriosa quanto seus feitos em vida.

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1 Disponível em https://doweb.rio.rj.gov.br/apifront/portal/edicoes/imprimir_materia/911958/5583, acesso em 19 de dezembro de 2023.

2 Disponível em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-22042013-132426/publico/ANA_LUCIA_IKENAGA_INTEGRAL.pdf, acesso em 13 de dezembro de 2023.

Eduardo Szazi

Eduardo Szazi

Doutor em Direito Internacional, Vice-Presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB/PR e sócio de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados.

Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados Leonardo Cesar Tomeleri

Leonardo Cesar Tomeleri

Advogado (OAB/PR 92.675). Especialista em Direito Civil e Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Membro efetivo das Comissões de Direito Empresarial e Direito Desportivo da OABPR

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Murilo Teixeira Palma

Advogado de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

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