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A literatura nacional sobre a criminalidade econômica em geral ultrapassou um período de adolescência e alcançou a maturidade e como todo assunto que amadurece, ao seu encontro vem, também, legítimas preocupações, inclusive, sob a perspectiva da expansão do Direito Penal focado do direito penal econômico1 e impossibilidade de eliminação da lavagem de capitais, principalmente associadas ao segredo bancário e aos paraísos fiscais.
Mas essa maturidade não afasta a necessidade de se analisar, por exemplo, didaticamente o intuito dos praticantes da lavagem de capitais ou simplesmente, lavagem de dinheiro: dar aparência de licitude aquilo proveniente de atividades ilícitas (produto ou proveito de outros crimes).
Na prática, existem inúmeras formas de se usar o proveito da infração penal praticada anteriormente, como, por exemplo, com a aquisição de bens móveis ou imóveis com o dinheiro obtido com a prática de estelionato ou, até mesmo, com a sua ocultação daquilo obtido com o crime de estelionato em uma conta bancária, cofre, armário etc.2
Daí se afirmar, com segurança doutrinária ofertada por André Luís Callegari que: “historicamente, os criminosos sempre tentaram ocultar os frutos de suas atividades delitivas, supondo logicamente que o descobrimento de tais fundos por parte das autoridades conduziria, obviamente, aos delitos que os geraram”.3
No plano paralelo, é possível beneficiar-se da infração penal antecedente de forma mais segura do ponto de vista de dificultar a percepção e respectiva persecução criminal, reciclando os benefícios obtidos com atividades ilícitas. Atitude claramente mais complexa do que a simples aquisição de algo diretamente com o dinheiro oriundo do delito sem a preocupação de manobras de ocultação ou dissimulação.
Um ponto importante: é na complexidade das operações dos três estágios que serão apresentados neste artigo que se encontra a prática da lavagem de capitais realizada por players mais habilidosos. É dizer, ainda que o caput do artigo 1º da lei Federal 9.613/98, com a redação dada pela lei Federal 12.683/12, em sua figura básica, admita que o produto, direto ou indireto da infração penal antecedente, possa ser objeto do crime de lavagem de dinheiro, a ocultação ou utilização imediata de bens e valores decorrentes diretamente da prática de um crime não são suficientes para que pese sobre o agente a incidência da “lei de lavagem”, por não se amoldarem aos requisitos objetivos e subjetivos do tipo penal de lavagem de capitais.4
Daí o ponto de partida mais óbvio que este artigo pretende apresentar: os estágios necessários para que juridicamente exista a configuração do crime de lavagem de capitais.
Portanto, lavagem de capitais pode ser precisamente definida como: ativos (dinheiro ou qualquer outro tipo de bens ou valores) obtidos ilicitamente (crime antecedente) são colocados em ciclos de transações para que, ao final, pareçam ter sido obtidos legalmente.
Em analogia a uma máquina de lavar roupas, existem três estágios em qualquer lavadora: i. molho; ii. enxague e, iii. centrifugação. No crime de lavagem de dinheiro, por outro lado, esses três estágios são geralmente chamados de i. colocação (placement); ii. ocultação ou mascaramento (layering) e, iii. integração (integration).
O primeiro estágio, o estágio da colocação (placement), significa simplesmente introduzir o ativo obtido ilicitamente no sistema financeiro. É um estágio crucial porque o praticante da lavagem fica mais vulnerável diante da necessidade de atuação prática em introduzir, artesanalmente, o capital ilícito dentro de uma instituição financeira5. Um problema grande até para os players mais habilidosos.
De modo ilustrativo, o traficante e narcoterrorista colombiano Pablo Escobar ganhava o equivalente a algo como US$ 420 milhões (cerca de R$ 1,62 bilhão) por semana e não conseguia aportar todo o dinheiro obtido no ciclo da lavagem rápido o suficiente, isto é, não conseguia cumprir os três estágios da lavagem de dinheiro antes de que o numerário ilícito, de algum modo, estragasse ou fosse esquecido em esconderijos. Assim, a impossibilidade de Pablo Escobar em lavar o dinheiro em tempo hábil ao ponto de introduzi-lo no sistema financeiro e portanto, utilizá-lo como se limpo fosse, rendeu-lhe, anualmente, um prejuízo de 2.1 bilhões de dólares em perdas6.
Dentro do chamado de washing cycle da lavagem de dinheiro, o estágio dois é o da ocultação (layering), isto é, os praticantes da lavagem de dinheiro mais habilidosos realizam inúmeras transações financeiras nacionais ou internacionais falsas ou verdadeiras para empresas reais ou de fachada justamente com o objetivo desses invoices (notas fiscais ou faturas)7 dissimularem e mascararem a origem ilícita do dinheiro, já introduzido no sistema financeiro (primeiro estágio), dificultando ou eliminando a possibilidade de sua rastreabilidade pelas autoridades financeiras, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, Coaf, por exemplo.8
Graças a Revolução Digital, seus impulsos na área da engenharia eletrônica e da informática e o aprofundamento da globalização do mercado mundial, há uma potencialização na dificuldade da rastreabilidade de capitais de origem ilícita (principalmente seguindo as operações eletrônicas) e que necessita, portanto, de cooperação internacional para certa efetividade no combate a este tipo de crime organizado.
Não custa lembrar que segundo o Banco Central dos EUA, o Federal Reserve – FED, são movimentados diariamente nos mercados oficiais 2.9 trilhões de dólares americanos todos os dias9. Uma vez que o ativo financeiro aparece numa tela de computador qualquer, ninguém pode dizer se esse mesmo ativo (que pode ter girado o mundo até ali) é “limpo” ou “sujo”, se provem de empresas de fachada ou não, ou ainda, se estes invoices provenientes do exterior são verdadeiros ou falsos. É dizer, o mesmo mercado global que movimenta trilhões de dólares lícitos também é utilizado para movimentações ilícitas provenientes de crimes antecedentes pelos players praticantes da lavagem de capitais.
No “laundering money business”, se feito corretamente, é virtualmente impossível seguir a origem do dinheiro e, consequentemente, detectar operações fraudulentas visando a dissimulação e o ocultamento do ativo o que, aliás, é facilitado pelo lucrativo negócio dos chamados paraísos fiscais (money laudering paradises)10. Cujo mote é o segredo bancário (bank secrecy), mediante o uso indiscriminado de empresas offshore, que, dentre outras consequências, ocultam atividades ilícitas praticadas pelo crime organizado internacional, como o tráfico de drogas, armas, pessoas e a evasão fiscal, que, sobretudo, prejudicam a concorrência leal e o desenvolvimento socioeconômico mundial11.
O terceiro e último estágio do crime de lavagem de capitais é o da integração (integration), significando dizer a possibilidade de utilização do ativo proveniente de origem criminosa, com a conversão desse ativo em outros (investimentos, por exemplo), carros, iates, imóveis etc. que podem ser amplamente renegociados (vendidos) para que finalmente o dinheiro reapareça com aparência legal em dissociação com sua origem ilícita.
No final das contas, lavar dinheiro sujo não é nem de longe tão complicado de fazer, se comparado a como parará-lo.
Claro o crime de lavagem de capitais não exige, necessariamente operações complexas e transnacionais, ou vultosas quantias para ser configurado, entretanto, deve-se concordar que quanto mais complexa for o deslocamento das operações realizadas dentro do segundo estágio (ocultamento ou mascaramento) mencionado (ocultamento ou mascaramento) maior será a chance de impunidade. Isso é obviamente decisivo.
Outro ponto que deve ser descatado em termos gerais é que há fértil campo investigativo em andamento sobre a problemática da cumplicidade bancária com a lavagem de dinheiro e o favorecimento direito ou indireto do crime organizado pelos paraísos fiscais e a criação de offshores com finalidades ilícitas, seja no campo do jornalismo investigativo, seja no campo do estudo jurídico e cooperativo internacional.
Não é por outra razão que acredito que muito pode ser escrito e debatido em torno das questões dos crimes que produzem bens, direitos ou valores como resultado, dentre eles, a lavagem de capitais.
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1 Sobre o tema ver: Lavagem de dinheiro: temas polêmicos no brasil, argentina, equador e EUA org. Filipe Maia Broeto e Diego Renoldi Quaresma de Oliveira. Curitiba, CRV, 2021.
2 Dentre outros: VERSIGNASSI, Alexandre. Crash: uma breve história da economia: da Grécia Antiga ao Século XXI. São Paulo. Leya, 2011, p. 286-287.
3 CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro, aspectos penais da lei nº 9.613/98. 2. Ed. ver. Atual. Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 35.
4 Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: STJ, RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 79.537/SP, rel. min. Nefi Cordeiro. Sexta Turma. Julgado em 12-12-2017.
5 ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen: Inside the World’s Third Largest Business 2, London. Ed. Pocket Books, 1998. p. 30. No mesmo sentido: CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro, ob. cit., p. 46: “o perigo constante de roubo ou furto, o que de forma ou de outra, obriga os criminosos a despachá-los para fora do lugar de obtenção com destino a outros lugares onde seja mais fácil encobrir ou ocultar sua origem delitiva”.
6 Consultar: https://epocanegocios.globo.com/Informacao/Acao/noticia/2015/09/pablo-escobar-perdia-r-8-bi-em-dinheiro-por-ano-para-ratos-e-vazamentos-e-nem-ligava.html; https://www.bbc.com/news/world-latin-america-54280467. Acesso em 26 dez. 2023.
7 Salários, suprimentos, equipamentos, propaganda, alugueis, compras em geral etc.
8 A doutrina especializada deixa claro que a palavra ocultação deve ser lida no sentido gramatical do termo, isto é, “encobrir”, “esconder” a origem ilícita dos valores provenientes de crime antecedente (CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro: aspectos penais da Lei 9.613/98. 2ª ed. rev. atual. Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 118) ou ainda, “impossibilitar o conhecimento de sua situação jurídica espacial” (PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico: ordem econômica, relações de consumo, sistema financeiro, ordem tributária, sistema previdenciário, lavagem de capitais, crime organizado. 3 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 355).
9 Ver: https://www.ig.com/en/trading-strategies/what-are-the-top-10-most-traded-currencies-in-the-world-200115 . Em libras, este valor chega aos 7.5 trilhões diários, in: JONES, Marc e JOHN Alun. Global FX trading hits record $7.5 trln a day – BIS survey. Disponível em: https://www.reuters.com/markets/us/global-fx-trading-hits-record-75-trln-day-bis-survey-2022-10-27/. Acesso 27 dez. 2023.
10 Sendo Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, apontada como um polo para lavagem de ativos. Sobre esse tema ver: DUDLEY, Dominic. Dubai has become a “money Laundering Paradise” Says Anti-corruption Group. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/dominicdudley/2019/01/29/dubai-has-become-a-money-laundering-paradise-says-anti-corruption-group/?sh=28d3b6ea315e. Acesso em: 26 dez. 2023.
11 Sobre o tema ver: Trajetória do Crime de Lavagem de Dinheiro: do escândalo Watergate ao Panama Papers in: Lavagem de dinheiro: temas polêmicos no brasil, argentina, equador e EUA org. Filipe Maia Broeto e Diego Renoldi Quaresma de Oliveira. Curitiba, CRV, 2021.
Diego Renoldi Quaresma de Oliveira
Advogado criminal, professor, palestrante e autor de livros e artigos sobre Direito Penal, Direito Processual Penal e liberdade de expressão.