CompartilharComentarSiga-nos no A A
Nos últimos meses, a Pena de Multa voltou ao debate com duas decisões dos tribunais superiores, que lançam alguns entendimentos sobre sua aplicação: de um lado, o STF julgou a possibilidade de sua extinção com a prova de hipossuficiência; de outro, mais recentemente, a 5ª turma do STJ garantiu que até 25% do pecúlio, valor recebido pelo trabalho realizado durante o cumprimento de pena, podem ser usados para quitar a dívida da pessoa apenada com o Estado.
Embora aparentemente amparadas por previsões legais, ambas as decisões afetam diretamente a situação do sistema carcerário. Nesse sentido, não podemos deixar de lado alguns dados. Segundo levantamento da SENAPPEN – Secretaria Nacional de Políticas Penais, em relação ao primeiro semestre de 2023, a população carcerária no Brasil era de cerca de 834 mil pessoas, sendo 644 mil destas com condenações definitivas. A maioria negra, de baixa renda e escolaridade, em situação de desemprego (ou informalidade), com idades entre 18 e 24 anos e presa por crimes contra o patrimônio ou previstos na lei de drogas (aproximadamente 70%). Em tais condenações, além da reclusão, incide também a pena de multa.
Ainda segundo o mesmo levantamento, das 644 mil pessoas privadas de liberdade com condenação definitiva, apenas 154.531 tinham trabalho. Além de ser um número tímido comparado à quantidade de pessoas cumprindo pena, a maior parte delas (123.237 mil) trabalha dentro do estabelecimento prisional. Em dados concretos, embora a LEP preveja que o trabalho do preso seja remunerado, mediante prévia tabela, não podendo ser inferior a 3/4 do salário mínimo, no período de janeiro a junho de 2023 (últimos dados compilados), 50,19% dos homens e 42,65% das mulheres nada recebiam pela atividade desempenhada, enquanto 19,6% dos homens e 18,04% das mulheres recebiam menos de 3/4 do salário-mínimo; 25,93% dos homens e 33,45% das mulheres recebem entre 3/4 e 1 salário mínimo; 5,62% dos homens e 6,23% das mulheres recebem entre 1 e 2 salários mínimos.
É à luz desses dados que as duas recentes decisões merecem um olhar cuidadoso, pois podem abrandar ou reforçar os efeitos mais evidentes das mudanças na legislação sobre pena de multa: o aprofundamento da vulnerabilidade e da marginalização de egressos e egressas do sistema prisional.
Em um breve retrospecto, até há poucos anos, a pena de multa, frequentemente prevista de forma cumulativa com a privação de liberdade, não fazia parte do dia a dia da execução penal brasileira. O Superior Tribunal de Justiça havia fixado duas orientações, que afastavam o tema do âmbito da execução criminal: a extinção do processo de execução penal não dependia do pagamento da multa, bastando o resgate da pena privativa de liberdade; a execução da pena de multa era um assunto de natureza fiscal, e não criminal.
Por conta disso, muitas execuções de penas de multa deixavam de ser ajuizadas na Fazenda Pública – onde são cobradas as dívidas de natureza fiscal -, pois era aplicada a regra que prevê valor mínimo para o ajuizamento de ação de Execução Fiscal. Em São Paulo, por exemplo, esse valor corresponde a 1.200 UFESPs – Unidade Fiscal do Estado de São Paulo, que hoje equivale a R$42.432,00.
O cenário começou a mudar em 2020, com entrada em vigor do chamado Pacote Anticrime (lei 13.964/19), de autoria do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que trouxe alterações legislativas no tema da multa, pautadas pelas discussões havidas em casos midiáticos, como o “Mensalão” e a “Lava-Jato”.
A partir de então, o cenário foi alterado: a lei passou a prever expressamente que a pena de multa deve ser executada perante o juiz da execução penal, passando ao Ministério Público, portanto, a incumbência do ajuizamento desta execução. Na prática, isso fez o número de execuções de penas de multa crescer exponencialmente, e enquanto o valor não é pago, a pena imposta na sentença não é considerada cumprida e os direitos políticos da pessoa condenada permaneçam suspensos, gerando um efeito cascata sobre uma série de direitos básicos de cidadania.
Os valores dessas multas são determinados pelo juiz no momento da sentença, de acordo com cálculos previstos em lei. Para uma pessoa condenada hoje por tráfico de drogas, por exemplo, independentemente da quantidade de substância apreendida, o valor da multa imposta é de no mínimo de R$ 22 mil reais.
Apesar de a alteração legislativa ter sido impulsionada por fatos relacionados a crimes de corrupção, os efeitos deletérios recaíram principalmente sobre pessoas condenadas pelos crimes patrimoniais e previstos na lei de drogas, que, como já mencionado anteriormente, representam a maior parte dos crimes que levam pessoas às cadeias. Como efeito direto, são também afetadas milhares de famílias pobres, negras e periféricas. No estado de São Paulo, por exemplo, segundo dados publicados pela Agência Pública, em março de 2023, cerca de 208 mil execuções de pena de multa estavam em andamento, não importando o valor ou o patrimônio das pessoas condenadas (há relatos de penhora de aparelhos de televisão familiares ou até carroças). O mesmo levantamento apontava que em janeiro de 2020, eram apenas seis processos.
Como já vem sendo apontado pelo IDDD e outras instituições, a “criminalidade econômica” não é a “clientela” que, usualmente, frequenta o sistema de justiça criminal. Pelo contrário, quem se senta nos bancos dos réus é o hipossuficiente, que precisa reconstruir a vida após sobreviver ao cárcere.
Nesse sentido, no dia 22 de março, o STF formou maioria no julgamento da ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.032, que pedia a extinção do processo de um condenado após o cumprimento da pena de prisão, independentemente do pagamento da pena de multa. Seguindo o voto do relator Flávio Dino, a Corte avançou em questões importantes para corrigir injustiças causadas por essa sanção financeira, que gera ainda mais exclusão e estigmas para os/as sobreviventes do cárcere.
Na decisão, os ministros seguem entendendo que o não pagamento da pena de multa ainda impede a extinção da punibilidade do condenado, exceto se for comprovada a impossibilidade da quitação – ainda que de forma parcelada. No entanto, é importante registrar que a necessidade de comprovação pode configurar mais um obstáculo, especialmente pelos réus atendidos pelas Defensorias Públicas, cujo contato com os assistidos nem sempre é possível. Ademais, exigir a produção de uma prova negativa – ou seja, da impossibilidade de pagar a multa -, é impor à pessoa condenada mais um empecilho à retomada de sua vida e ao exercício pleno de sua cidadania, já que provar que não pode fazer algo é impossível – quando não vexatória: há casos em que a pessoa egressa apresenta fotos do local em que reside, a precariedade de tudo que lhe cerca, para tentar provar sua vulnerabilidade e impossibilidade de pagamento de qualquer quantia que seja. Por isso a importância dos votos dos ministros Dino e Cristiano Zanin, que inovaram ao permitir que o juiz, por si só, reconheça a hipossuficiência do apenado, caso os elementos dos autos lhe permitam presumir a falta de condições de pagar a multa. Embora a decisão não afaste o pagamento, é um passo importante para a retomada da vida das pessoas sobreviventes do cárcere.
No fim de abril, um mês depois da decisão do STF, a 5ª turma do STJ considerou possível penhorar até um quarto do pecúlio obtido pelo condenado para quitar a pena de multa determinada na sentença condenatória. A decisão foi amparada pelos arts. 168, incisos I a III, e no art. 170 da LEP – Lei de Execução Penal. Não se aplicam, nesse caso, as previsões do art. 833 do CPC – Código de Processo Civil, o qual estabelece que remunerações e pecúlios são impenhoráveis, a não ser que ultrapassem o valor de 50 salários mínimos por mês ou que a penhora se destine a garantir o pagamento de verba alimentícia1,
A LEP prevê que o preso pode exercer algum trabalho durante o período de execução da pena e receber por isso. A remuneração pode ser usada para alguns fins como assistência à família e pequenas despesas pessoais. O valor remanescente, chamado de “pecúlio”, serve como uma reserva quando a pessoa presa deixar o sistema carcerário, para garantir minimamente uma vida digna até se restabelecer socialmente.
Nesse sentido, há de se levar em conta que muitos dos egressos do sistema penitenciário são libertados e não têm para onde ir ou a quem recorrer. São soltos e deixados com os documentos e o que tiver de pertence pessoal na rodoviária ou estação mais próxima à unidade prisional. Nesses casos, estão entre ter o pecúlio ou nada.
A Quinta Turma, contudo, determinou, ao negar recurso especial de um condenado, que era possível fazer o bloqueio e a penhora de 25% de eventual pecúlio recebido pelo sentenciado em razão do trabalho exercido no presídio, em processo no qual havia tentativas, frustradas, de localização de valores para o pagamento da pena da multa, já indicando, portanto, a impossibilidade de fazê-lo sem um prejuízo de sua subsistência.
Ainda que a defesa tenha indicado que o art. 833, inciso IV, do CPC estabelece que remunerações e pecúlios são impenhoráveis, a não ser que ultrapassem o valor de 50 salários mínimos por mês ou se destinem a garantir o pagamento de verba alimentícia, o ministro relator Ribeiro Dantas apontou que a pena de multa constitui uma modalidade específica de sanção penal e impõe ao condenado a obrigação de contribuir com determinado valor para o fundo penitenciário.
Embora tecnicamente defensável – mas, de certo, questionável, pois há princípios que se sobrepõem ao da especialidade, como o da dignidade da pessoa humana, proporcionalidade e responsabilidade pessoal – a decisão escancara a miserabilidade do sistema penal. Como já dito, no âmbito cível e tributário, o judiciário entende que o valor mínimo para justificar a cobrança, pelo Estado, é o de R$ 42.432,00 (1.200 UFESPs) para o ajuizamento de uma ação de execução ou de R$ 70.600 (50 salários mínimos) para a autorização da penhora – valores impensáveis para a grande massa carcerária. Agora, quando se fala em cobrança de pessoas que já foram presas, alcançaram a liberdade e têm pendente apenas a pena de multa, qualquer centavo é válido para justificar a ação de execução, mesmo quando o valor a ser despendido com o processo ultrapassa aquele a ser cobrado.
Igualmente, a decisão do STJ percorre caminho diverso do apontado pelo STF, pois ignora o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional, o perfil e o contexto social da pessoa apenada ao deixar o cárcere, que atinge também seus familiares, quando tem a sorte de tê-los. Em outras palavras, escancara a desumanidade, refletida, frequentemente, na justiça brasileira.
————————-
1 Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/23042024-E-possivel-penhorar-parte-do-peculio-recebido-pelo-preso-para-pagar-multa-fixada-na-sentenca.aspx#:~:text=%E2%80%8BA%20Quinta%20Turma%20do,multa%20determinada%20na%20senten%C3%A7a%20condenat%C3%B3ria.
Ingrid Ortega
Associada do IDDD e Coordenadora do Projeto Alê Szafir no escritório Toron Advogados.
IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa
Marina Dias Werneck de Souza
Diretora-executiva do IDDD e do conselho político do IDPN.
IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa
Vivian Peres
Coordenadora de programas do IDDD.
IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa
Guilherme Carnelós
Presidente do IDDD