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“Como pode a lei comandar quando os textos jurídicos emudecem, são obscuros ou ambíguos?”1 (Ronald Dworkin)
Sumário: I – Finalidades deste ensaio. II – Doutrina, jurisprudência e legislação sobre os direitos e interesses dos acionistas da empresa em recuperação judicial. III – A completude do direito. IV – A incompletude do direito. V – A heterointegração para preencher a lacuna da LFRE. VI – O Direito Comparado como método para suprir a lacuna da LFRE. A – A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. B – A doutrina pátria. VII – A participação dos acionistas no processo de recuperação da empresa no Direito Comparado. A – Lei de Falência dos Estados Unidos. (a) – Atuação individual dos acionistas. (i) Noção de equity security e equity security holder. (ii) Reunião de credores e acionistas. (iii) Direito de serem ouvidos. (iv) Direito de apresentarem um plano de reorganização (plano). (v) O plano deve ser justo e equitativo. (vi) Direito de os acionistas de modificarem ou rejeitarem o plano. (b) Comitê de credores e acionistas. (i) Comitê de credores quirografários. (ii) Comitê adicional de credores e acionistas. (iii) Comitê oficial de credores e acionistas. (iv) Comitê não oficial de credores e acionistas. (v) Constituição, poderes e deveres dos comitês. B – Leis do Reino Unido. a) Lei das Companhias de 2006 – Parte 26A (Part 26A Companies Act 2006). b) Lei de Insolvência e Governança Corporativa de 2020 (CIGA) (Corporate Insolvency and Governance Act 2020 (CIGA)). C – Código da Crise da Empresa e da Insolvência da Itália. D – Código de Comércio da França. VIII – Recuperação judicial da Americanas: um escandaloso exemplo de desprezo pelos direitos e interesses dos acionistas minoritários. IX – A empresa, mola propulsora do desenvolvimento econômico e social de qualquer país. X – O Direito Comparado como fonte de inspiração para o aperfeiçoamento da LFRE.
I – Finalidades deste ensaio
Este ensaio visa demonstrar que:
1º. os acionistas não têm nem direito de voz nem direito de voto no processo de recuperação judicial da sociedade anônima, pois, na Lei nº 11.101, de 2005 (Lei de Falências e Recuperação de Empresas (LFRE)), Capítulos I a III, arts. 1º a 72, não há norma que regule os seus direitos e proteja os seus interesses;
2º. a omissão do legislador, consciente e voluntária, ou por falta de informação ou imprevidência, ou por uma questão de política legislativa, e a lacuna real da LFRE não podem ser supridas pelos meios previstos no art. 4º. da Lei nº 4.657, de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB));
3º. a lacuna prima facie da LFRE deve ser preenchida pelo Direito Comparado e
4º. o Poder Executivo, ou o Congresso Nacional, deve, com urgência, elaborar um anteprojeto de lei para disciplinar a matéria com inspiração nas legislações dos Estados Unidos, Reino Unido e Itália.
II – Doutrina, jurisprudência e legislação sobre os direitos e interesses dos acionistas da empresa em recuperação judicial
Os comercialistas brasileiros não estudaram a matéria, ainda.
Os tribunais de Justiça do país não foram instados a julgá-la, por enquanto.
Há uma lacuna técnica, normativa, na LFRE.
Sem a prestimosa contribuição dos doutos e a orientação dos tribunais, o que incumbe a magistrado fazer se a analogia,2 os costumes, os princípios gerais do direito (LINDB, art. 4º) e a equidade (CPC, art. 140, par. único) não o auxiliam no cumprimento do indelegável dever de decidir os pedidos, formulados, nos processos sob sua jurisdição, no vácuo da lei?
O positivismo3 legalista estreito deplora a força criadora dos juízes, a law in action (Esser), o “direito dos juristas”,4 e sustenta que as regras jurídicas, embora abstratas e gerais, são precisas, claras, redigidas com esmero e primor, o que o impede o juiz – “escravo” da lei” – de agir com base em suas convicções mesmo no “silêncio” da lei, “silêncio” provocado pela pluralidade, heterogeneidade e imprevisibilidade de fatos jamais imaginados pelo legislador.
Exemplo de recente vazio da LFRE foi divulgado pelo advogado Amauri de Oliveira Melo Junior, do escritório Lollato Lopes Rangel Ribeiro Advogados, no Valor de 31/01/2024, p. E2, referente ao stalking horse.
O Autor esclarece: “(…) o stalking horse ou “cavalo de perseguição”, em tradução livre para o português, não possui previsão legal no Brasil”; contudo, ressalta, foi adotado “em recente decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo”, conforme Ag. Inst. 2230472-34.2021.8.26.000, j. 30/02/2022, e “no mesmo sentido, decidiu o Tribunal de Justiça de Pernambuco”, conforme Ag. Inst. 00122277120228179000, j. 24/02/2023.
Antiga e emblemática hipótese de vácuo no campo da insolvência da empresa foi a atualização dos créditos quirografários na concorda preventiva, objeto de minha tese para a Docência Livre de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, submetida, em 1989, à Banca Examinadora, composta pelos professores doutores Caio Mario da Silva Pereira, Fran Martins, Osmar Brina Correa Lima, Dora Martins Carvalho e Theófilo de Azeredo Santos (presidente).
De 1945, quando baixado o Decreto-Lei. nº 7.661 (Lei de Falências e de Concordatas), até 1984, quanto da promulgação da Lei nº 7.274, que criou um regime especial para a correção monetária das quantias correspondentes às prestações não pagas pelas concordatárias, na falta de norma legal sobre a matéria, “juízes e tribunais”, escrevi na Introdução da minha “tese de concurso”, “ora inspirados nos princípios da isonomia, da autonomia da vontade, da restitutio in integrum, da perfeita equivalência das prestações das partes e do enriquecimento sem causa, têm procurado evitar, na imensidão dos casos submetidos a seu esclarecido julgamento nos últimos cinco lustros, que os nefastos efeitos da inflação tragam prejuízos para os jurisdicionados.”5
O conhecimento de que existem lacunas na lei e lacunas no direito6 é intuitivo, prescinde de reflexão, porquanto a mente é incapaz de conceber o que há por vir, mormente na contemporaneidade devido às revoluções tecnocientíficas, biotecnológicas e digitais; à IA; às inovações prometidas pelos centros de pesquisa conhecidas pela sigla NBIC – convergência das nanociências, das biotecnologias, das ciências da informática e das ciências cognitivas -; às técnicas ditas de uploading; à robótica; à engenharia genética; às ciências computacionais e cibernéticas; às mudanças climáticas etc., em que pesem os argumentos de notáveis jusfilósofos e juristas, de ontem e de hoje, aqui e alhures, que defendem a completude do direito com fundamento no “princípio da liberdade”, ou “princípio da plenitude hermenêutica”, ou “regra geral exclusiva”.
III – A completude do direito
O direito não apresenta lacunas, pois “todo lo que não está proibido está permitido”,7sentencia Zitelman, prócer da Escola do Empirismo Científico.
García Máynez, adepto da Escola do Ecletismo Jurídico, assevera: “No hay lagunas en el derecho; pero sí en ley. Esta diferenciación leva a sostener dos diferentes plenitudes en el ordenamento jurídico: la formal – lagunas en el derecho – y la material – lagunas en la ley. La inexistência de las primeras la fundam en el principio de clausura de que ‘todo lo que no está prohibido está permitido.”8
De igual sentir, Donati: “(…) el principio de que ‘todo lo que no está proibido está permitido” es una norma positiva que integra el ordenamiento jurídico en pie de igualdad con las otras normas; implica la obligación de ‘no hacer’.(…) la plenitude jurídica es posible gracias a la integración de una pluralidade de normas; más la inferência inductiva de esa otra norma implícita (el principio de la plenitud hermenêutica); que considera periférica, general y correlativa de todas las otras normas.”9
Para não me alongar em demasia, eis um excerto da doutrina do magnífico autor da Teoria Pura do Direito.10
Com o título “As chamadas ‘lacunas’ do Direito”, após acentuar que, se determinada conduta não é “juridicamente proibida”, ela é permitida, Hans Kelsen explica: “O que importa na apreciação da teoria das lacunas é determinar as circunstâncias nas quais, segundo essa teoria, se apresenta uma ‘lacuna’ no Direito. Segundo essa teoria, o Direito vigente não é aplicável num caso concreto quando nenhuma norma jurídica geral se refere a este caso. Por isso, o tribunal que tem de decidir o caso precisa colmatar esta lacuna pela criação de uma correspondente norma jurídica. (…) Esta teoria é errônea, pois funda-se na ignorância do fato de que, quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever de um indivíduo de realizar determinada conduta, permite essa conduta.”11
Em suma, para essa erudita corrente de pensamento, a inexistência de lacuna do direito e da lei decorre do “princípio ou norma de liberdade”, perpetuado pelos jurisconsultos romanos no axioma permittitur quod non prohibetur (“tudo o que não é proibido, presume-se (juridicamente) permitido”), e do “princípio do terceiro excluído”, isto é, ou há proibição, ou há absoluta liberdade (tertium non datur).
IV – A incompletude do direito
O direito é um conjunto sistemático e dinâmico de normas (princípios e regras); todavia nem sempre harmônico (devido às antinomias); incompleto (porque padece, inevitavelmente, de espaços jurídicos vazios12); imperfeito (amiúde injusto, contraditório); vezes sem conta escrito em linguagem demasiado genérica, construções ambíguas, frases obscuras, com elevado grau de abstração; repleta de “casos difíceis” (Dworkin), em virtude da “textura aberta do direito”, de “zonas de penumbra de incerteza” (Hart).13
Em um mundo em rápida e ininterrupta e irrefreável transformação, o ordenamento jurídico com frequência não tem norma geral e abstrata aplicável a fatos imprevisíveis e inusitadas situações do homem na sociedade, ou não os resolve satisfatoriamente.
Constatada o vácuo;14 ciente da incompletude da lei; consciente de que a analogia, os costumes, os princípios gerais do direito, a equidade, a jurisprudência, a interpretação extensiva, a interpretação evolutiva, o argumento aa contrário, o método analítico-lógico-dedutivo e o processo de subsunção não o socorrem, o que resta ao juiz fazer se, por força do princípio da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), da proibição do non liquit e do comando do art. 140 do CPC, ele “(…) não se exime de decidir sob alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico”;[15] ou em virtude de convicções religiosas, filosóficas, morais, éticas; ou por considerar a lei iníqua, obsoleta, defeituosa, insuficiente, truncada, repleta de contradições e palavras ambíguas, imprecisas, indeterminadas; ou por entender que ela não corresponde à vontade do povo (Rudolf von Ihering), não atende às necessidades sociais?
Leia a íntegra do artigo.