CompartilharComentarSiga-nos no A A
O que se entende e se defende contemporaneamente é a ideia de que o processo judicial deve atender às expectativas daqueles que dele necessitam para solucionar conflito de interesses em que estejam envolvidos.
Processo que não atenda a tais expectativas é processo frustrado, que terá movimentado a máquina judiciária e, portanto, consumido recursos públicos, além dos custos a que o autor da demanda se sujeita para promover a busca da satisfação de sua afirmação de direito.
Se no processo dialógico, característica marcante da ação de conhecimento, em que o autor busca obter do sistema judicial o reconhecimento de direito que alega ter sobre determinada situação de fato, busca-se atender expectativas concretas, no mundo real, o que dizer, então, da ação de execução, em que a dialeticidade é mínima, na medida em que seu ponto de partida é a existência de direito já reconhecido, judicial ou extrajudicialmente.
A esse alcance de objetivos concretos, capazes de satisfazer as partes, tanto a que recebe quanto a que paga, dá-se o nome de efetividade do processo ou de processo de resultados.
Na ação de execução o Estado, a quem incumbe primariamente garantir o respeito ao ordenamento jurídico, pelo monopólio da força, aplica ao devedor a sanção institucionalizada, consistente em atos materiais que promovam resultados concretos, capazes de fazer com que se dê o alcance da efetividade da atividade processual.
No elenco de atos concretos capazes de fazer com que o direito reconhecido numa sentença ou num título extrajudicial efetivamente se realize, há, geralmente, a constrição judicial de bens do executado, seguida, quando for o caso, de sua avaliação e, depois de uma das formas de expropriação desses bens, previstas no art. 825 do CPC.
Este artigo tem como objetivo tratar de algumas das questões decorrentes da adoção de uma das formas expropriação previstas no art. 879, do CPC, consistente em leilão judicial eletrônico ou, subsidiariamente, presencial.
O leilão possibilita ampla oferta, por diversos meios, notadamente pelos sítios eletrônicos dos leiloeiros. A amplitude da oferta beneficia o resultado do processo e as partes nele envolvidas, exequente e executado. Isso porque, quanto maior for a divulgação mais o leilão poderá contar com interessados que, no certame licitatório, travarão batalha de lances, vencendo, assim, o que tiver oferecido melhor preço.
Feitas essas observações introdutórias, chego ao ponto central que pretendo desenvolver como forma de estímulo à reflexão dos operadores do Direito, sempre tendo em conta a questão da efetividade do processo.
A atividade do leiloeiro público, isto é, aquele designado pelo Poder Judiciário para promover o leilão, é amplamente regulada pelo CPC, assim como, no plano da organização do sistema judicial e seu controle, pelo CNJ. Destaque deve ser dado à Resolução 236/16, do CNJ.
Conforme dispõe a lei processual civil, havendo a arrematação de bem em leilão, deve o arrematante efetuar o pagamento da comissão do leiloeiro. Trata-se de despesa acessória, prevista expressamente no parágrafo único do art. 884 do CPC1. O leiloeiro tem direito ao recebimento da comissão pela sua atuação e dos valores que tenha despendido com a guarda e conservação do bem leiloado.
Esse valor, segundo orientação presente no art. 7º, parágrafo 4º, da Resolução CNJ 236/16, poderá ser deduzido do valor da arrematação, na hipótese de ter havido lance em valor superior ao crédito do exequente. Embora não se trate de norma processual em sentido estrito, mas de orientação do CNJ, é de se observar que a interpretação e aplicação das normas deve-se dar de modo sistemático, não fazendo sentido, a meu ver, decisões judiciais que deixem de aplicar essa recomendação, sob o fundamento de que “não se trata de lei”, ou mesmo, em alguns casos, que “o Edital previa esse pagamento pelo arrematante” na medida em que a integração de normas processuais e recomendações do CNJ que promovam mais adequada organização do sistema, em benefício da efetividade, pode e deve acontecer. Ademais, tais fundamentos não se sustentam, na medida em que a regulamentação feita pelo CNJ integra expressamente o texto normativo. Confira-se o parágrafo 1º do art. 882 do CPC: “a alienação judicial por meio eletrônico será realizada, observando-se as garantias processuais das partes, de acordo com regulamentação específica do CNJ”.
Há, portanto fundamentos relevantes para essa conclusão, lastreados nesse dispositivo do CPC e, ainda, em princípios processuais como os da efetividade do processo (e da execução), o da causalidade e o da sucumbência.
Em poucas linhas, quem deu causa à necessidade de movimentação do aparelho judicial em razão de seu inadimplemento deve, sim, arcar com os custos gerados pelo descumprimento da obrigação assumida em título extrajudicial ou determinada em sentença.
Se ao arrematante deve-se impor o ônus da comissão do leiloeiro, rompe-se, a rigor, a ideia que está na gênese do princípio da sucumbência, segundo o qual, em síntese, aquele que deu causa à necessidade do processo e não teve qualquer direito reconhecido, deve arcar com todos os custos da atividade processual. Trata-se, a rigor, de ponderar entre os direitos e a contribuição dada ao alcance da efetividade do processo, por parte do executado e por parte do arrematante. Há de se refletir, ainda, que sentido faria o par. 4º do artigo 7º. da Resolução do CNJ, que não o de atender justamente ao princípio da sucumbência e a este coadunar-se?
A comissão do leiloeiro compõe esse elenco de custos2 e não faz sentido que o arrematante arque com tal despesa, se, na verdade, veio ao processo para contribuir, mediante o oferecimento de lance, com o alcance do objetivo do processo e, em última análise, “resolver” o processo com o aporte de recursos destinados ao pagamento do credor.
Em muitas situações concretas, que podem ser observadas no dia a dia forense, feita a arrematação e havendo sobra de valores após a quitação do crédito do exequente, indefere-se a atribuição ao executado do ônus de arcar com esse custo [que dar-se-ia com o ressarcimento de uma despesa já efetuada pelo arrematante], ao contrário do que dispõe o já referido parágrafo 4º do art. 7º da Resolução 236 do CNJ,
Em muitas outras decisões, todavia, há seguro e correto prestígio à integração de normas processuais com a regulamentação emanada do CNJ.
Veja-se, a propósito, acórdão do TJ/SP, com a seguinte ementa: “Agravo de instrumento. Condomínio. Cumprimento de sentença. Penhora de imóvel. Pedido do arrematante para que a comissão do leiloeiro seja deduzida do produto da arrematação. Possibilidade. Valor obtido que supera o crédito executado. Art. 882, §1º do CPC c.c. art. 7º, §4 da Resolução CNJ 236/16. Precedentes deste E. Tribunal. Recurso provido.”3
Do mesmo TJ/SP4, confira-se este acórdão, que faz referência a diversos julgados do mesmo Tribunal: “In casu, pelo que consta, o produto da arrematação foi suficiente para o pagamento das dívidas condominial e tributária, ou seja, o condomínio exequente e o fisco municipal já tiveram seus créditos satisfeitos, de modo que não há óbice para que o saldo restante seja utilizado para ressarcir o arrematante da comissão do leiloeiro, ainda que parcialmente, caso o resíduo depositado em juízo não baste para reembolso integral”.
Nesse acórdão há referência expressa ao afastamento de um dos fundamentos de que se serve corrente contrária, qual seja, a necessidade de menção expressa a respeito no edital de leilão: “A observação que se impõe é de que, como o fundamento exclusivo da decisão agravada é a ausência de previsão editalícia – que não constitui óbice à aplicação da norma -, caberá ao Juízo a quo se certificar de que realmente não há crédito do exequente ou do fisco a serem satisfeitos, nem de seus respectivos patronos, a título de eventuais honorários sucumbenciais. Sendo esta efetivamente a hipótese, o saldo da conta judicial deverão ser utilizado para reembolso da comissão do leiloeiro ao agravante, integralmente, se possível, ou parcialmente, nos termos acima”.
A ideia de propor debate a respeito desse tema tem lastro na divergência que há na jurisprudência, quanto à integração normativa entre os artigos do CPC e a Resolução 236 do CNJ. Ou melhor, numa detida pesquisa, pode-se constatar a inexistência de julgados similares ao do TJ/SP em outros Tribunais. A reflexão que se propõe é no sentido de que busquemos, operadores em geral, mas muito especialmente integrantes do Poder Judiciário, decidir de modo a prestigiar o princípio da efetividade do processo, muito especialmente do processo de execução, levando em consideração a atuação do arrematante, como sujeito capaz de garantir que o processo alcance seu resultado, em benefício do sistema, do exequente, do executado e da legitimidade dos meios de expropriação de bens.
Na verdade, nós, advogados que atuamos nesse segmento – assessoria especializada em arrematação – estamos sempre a nos surpreender com decisões díspares, desencontradas e desprovidas de fundamentos o que, muitas vezes, nos parece soar como um certo desprezo à figura do arrematante ou, na melhor hipótese, ausência de doutrina específica quanto a este tema.
Na linha do que se tem decidido reiteradas vezes no TJ/SP, é de se esperar que essa jurisprudência encontre eco nos demais Tribunais estaduais e, eventualmente, no STJ.
———————-
1 “O leiloeiro tem o direito de receber do arrematante a comissão estabelecida em lei ou arbitrada pelo juiz”.
2 “Esclareço, por oportuno, que não se está aqui a negar vigência ao disposto na lei federal ou desrespeitar o que foi previsto no edital, haja vista que incumbe ao devedor o pagamento das custas e despesas processuais, nestas incluídas a comissão do leiloeiro, ante o princípio da causalidade e nos termos do estatuto processual civil” (TJSP, 30ª. Câmara da Seção de Direito Privado, Agravo de Instrumento n.2151277-63.2022.8.26.0000, Relator Desembargador Andrade Neto, j. em 30/11/2022).
3 Agravo de instrumento nº 2184313-62.2023.8.26.0000, Relator Desembargador Walter Exner, j. em 31/08/2023.
4 Agravo de Instrumento nº 2258579-20.2023.8.26.0000, Relator Desembargador Gomes Varjão, j. em 23/11/2023.
Lucia Mugayar
Advogada atuante em assessoria de arrematação de imóveis em leilão, professora das disciplinas Processo Civil e Mediação em Cursos de Pós-graduação, Secretária Adjunta da Comissão Especial de Leilões da OAB/RJ e Coordenadora de Mediação da ESA NACIONAL.