O “caso vale” e o veredito esperado no STF   Migalhas
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O “caso vale” e o veredito esperado no STF – Migalhas

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Uma das discussões envolvendo Direito Tributário Internacional mais relevantes dos últimos tempos está prestes a receber um veredito no âmbito do STF por meio do julgamento do recurso extraordinário 870.214 – o chamado “Caso Vale”.

A questão é tão importante que, no final do ano passado, a Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional decidiram incluir a tese discutida pelos contribuintes em edital de transação1, apontando cerca de 200 processos em tramitação sobre o tema – 150 na esfera administrativa e 50 na judicial -, cujo montante, até então, girava em torno de R$ 69 bilhões2.

O “Caso Vale”, especificamente, teve seu início no mandado de segurança 0002937-09.2003.4.02.5101, que tinha como objetivo afastar a aplicação do art. 74, caput e parágrafo único, da medida provisória 2.158-35/013 e da instrução normativa SRF 213/02, afastando, consequentemente, a incidência de IRPJ e CSLL sobre os resultados positivos de equivalência patrimonial apurados por suas controladas no exterior nos anos de 2002 e seguintes, bem como sobre os lucros apurados até dezembro/01.

Na ocasião, a Vale – como controladora direta de sociedades domiciliadas na Bélgica, Dinamarca, Luxemburgo e nas Bermudas – estaria sujeita à tributação automática dos lucros apurados por controladas e coligadas no exterior por força da regulamentação fiscal instituída pelo art. 74 da MP 2.158-35/01 e IN SRF 213/02.

Embora tenha sido concedida a medida liminar ao mandamus, a segurança foi denegada posteriormente em sentença, que foi mantida pelo TRF da 2ª região no julgamento do recurso de apelação. Contra esta decisão, a Vale interpôs recursos especial e extraordinário aos Tribunais Superiores.

No STJ, foi dado parcial provimento ao recurso especial 1.325.709/RJ, entendendo a 1ª turma, por maioria de votos, que a Vale não é obrigada a pagar imposto sobre o lucro de suas controladas situadas na Bélgica (Rio Doce International S/A – RDI), Dinamarca (Rio Doce Comércio Internacional) e Luxemburgo (Brasilux e Rio Doce Europa S.A.R.L), que são países que mantêm acordo de bitributação com o Brasil. No entanto, estariam sujeitos à tributação os lucros auferidos pela controlada em Bermudas, nos termos do art. 74 da MP 2.158-35/01, pois, além destes já estarem disponibilizados para a Vale na data do balanço em que foram apurados, o Brasil não tem tratado internacional para evitar a dupla tributação com aquele país como tem com os demais.

O ministro Napoleão Nunes Maia Filho – relator do caso no STJ – destacou que, em respeito à jurisprudência da Corte Superior, os tratados tributários, ou acordos de bitributação, deveriam prevalecer sobre as normas domésticas ante a regra da especialidade – em consonância com o art. 7º da CM da OCDE4-, que delega a competência exclusiva para tributar os lucros não distribuídos ao Estado de residência da empresa, o que afastaria, portanto, a tributação destes lucros pelo Brasil.

A União interpôs recurso extraordinário em face desta decisão, defendendo que o entendimento adotado pelo STJ e a interpretação dada ao art. 7º da CM da OCDE revelam afronta direta ao texto constitucional, por dispensar as empresas brasileiras de pagamento de IRPJ e CSLL sobre os lucros auferidos por suas controladas e coligadas no exterior.

No STF, o reclamo da vale perdeu o objeto após a decisão do STJ, tendo, o ministro Marco Aurélio – relator do caso à época -, negado seguimento ao recurso do órgão fazendário5, que insistiu na discussão interpondo agravo regimental.

Voltando, portanto, à apreciação da Corte Suprema, o “Caso Vale” conta até o momento com um voto favorável à mineradora, proferido pelo atual relator (ministro André Mendonça), e um voto contrário, proferido pelo ministro Gilmar Mendes.

O ministro André Mendonça, em seu voto, afirma que a decisão no caso concreto depende da aplicação específica de normas infraconstitucionais; e, ainda que fosse admitida a discussão constitucional, não se admite o descumprimento dos acordos, ou tratados, firmados de maneira unilateral pelo Brasil, nem o seu uso abusivo pelas empresas.

Assim, o relator entendeu que, se os efeitos do art. 7º da CM-OCDE forem afastados, além de gerar um inadimplemento unilateral do acordo, a segurança jurídica dos contribuintes, que se apoiaram na legislação e jurisprudência no momento da estruturação de suas operações, cairá por terra.

Outro fundamento que embasou o voto do relator foi o fato de que o Brasil acaba atraindo investimentos quando celebra acordos de bitributação, de modo que eventual redução na arrecadação tributária nacional é compensada pelo influxo de multinacionais estrangeiras que acabam se instalando no país – nesta ocasião, cita o entendimento fixado pelo ministro Gilmar Mendes no julgamento do RE 460.320/PR6.

Além dos pontos já mencionados, é interessante notar que o voto do ministro André Mendonça também enfatiza que o Brasil possui uma legislação muito distinta do padrão de regras CFC, as quais visam o combate à competição fiscal internacional prejudicial – como ocorre na hipótese analisada (RE 870.214) -, relacionada ao lucro das empresas, e a eliminação de normas que permitem o diferimento da tributação doméstica sobre o rendimento da fonte estrangeira. Ainda assim, afirma que a tributação do lucro é hipótese expressamente obstada pelos acordos internacionais bilaterais firmados pelo Brasil com os Estados analisados no caso concreto.

Por outro lado, divergindo do relator, o ministro Gilmar Mendes deu provimento ao agravo regimental, dando provimento ao RE interposto pela União, para reconhecer a possibilidade de computar como acréscimo patrimonial positivo da Vale os lucros auferidos por suas empresas controladas com sede na Bélgica, Dinamarca e Luxemburgo.

Em resumo, o ministro entendeu que a discussão de fundo não lida com interpretação de dispositivos de tratados internacionais, sendo estes inaplicáveis ao caso. Afirma que a discussão é sobre a compatibilidade do art. 74 da MP 2.158-35 com o conceito de renda, dispositivo que já fora declarado constitucional pelo plenário da Corte na situação objeto de discussão (em que há controle da empresa estrangeira por parte da empresa brasileira) e afastado pelo STJ.

O pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes paralisou o julgamento – que se encontra suspenso, aguardando definição e voto dos demais ministros. Até lá, o veredito esperado é aquele que, de fato, tenha forças para apaziguar a divergência jurisprudencial e atender às necessidades legislativas nacionais e internacionais.

Mais do que isso, o veredito que se espera é aquele que esteja em completa consonância com os ditames constitucionais, sem deixar de considerar que, embora o Brasil não faça oficialmente parte da OCDE7, por ser um dos países integrantes do G-20, parece relevante que as regras de tributação internacional sejam consideradas8 – inclusive por força do art. 98 do Código Tributário Nacional9 -, sobretudo a recomendação da ação 6 do projeto BEPS10.

O teor do art. 7º da CM-OCDE é claro ao proteger o lucro, auferido por pessoa jurídica situada no exterior, de tributação incidente no território brasileiro.

Espera-se que essas circunstâncias no Brasil se tornem parte do passado em breve, permitindo que o país adote uma abordagem mais ágil para implementar em sua legislação as recomendações que visam alinhar suas práticas às normas internacionais.

Isso garantirá maior segurança jurídica para investidores estrangeiros e permitirá o cumprimento efetivo dos tratados, ou acordos, que visam evitar a bitributação, facilitando os negócios com outros Estados sem negligenciar a fiscalização adequada e a arrecadação justa.

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1 MINISTÉRIO DA FAZENDA. Edital 3/2023. Disponível em: https://www.gov.br/pgfn/pt-br/pgfn-e-rfb-abrem-novo-edital-de-transacao-no-contencioso-tributario.pdf

2 VALOR ECONÔMICO. STF definirá se lucro no exterior pode ser tributado no Brasil. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2024/06/16/stf-definira-se-lucro-no-exterior-pode-ser-tributado-no-brasil.ghtml.

3 Medida Provisória no 2.158-35, de 24 de agosto de 2001. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/2158-35.htm.

4 Artigo 7º – Lucros das empresas. 1. Os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro Estado Contratante por meio de um estabelecimento permanente aí situado. Se a empresa exercer sua atividade deste modo, os seus lucros podem ser tributados no outro Estado, mas unicamente na medida em que forem imputáveis a esse estabelecimento permanente.

OCDE. Convenção Modelo, 2000/2005. Disponível em: http://moodle.stoa.usp.br/file.php/1430/Convencao_Modelo_OCDE.pdf.

5 Recurso extraordinário 870.214. STF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346025377&ext=.pdf.

6 “No âmbito tributário, a cooperação internacional viabiliza a expansão das operações transnacionais que impulsionam o desenvolvimento econômico – como o fluxo recíproco de capitais, bens, pessoas, tecnologia e serviços -, combate a dupla tributação internacional e a evasão fiscal internacional, e contribui para o estreitamento das relações culturais, sociais e políticas entre as nações”.

Recurso extraordinário 460.320. STF. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754018698.

7 O pedido de adesão do Brasil à OCDE foi formalizado em 2017, de modo que em 2019 foi instituído o Conselho para a Preparação e o Acompanhamento do Processo de Acessão da República Federativa do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE através do Decreto 9.920. Em 2023, houve sua revogação pelo Decreto 11.671, que instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial.

8 GOMES, Marcus Lívio Gomes; SCHOUERI, Luís Eduardo. A tributação internacional na Era pós-BEPS. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 2.

9 Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha.

lei 5.172, de 25 de outubro de 1966. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm.

10 Ação 6 – Prevenção do Abuso do Acordo Tributário.

OECD (2013), Action Plan on Base Erosion and Profit Shifting, OECD Publishing, Paris, Disponível em: https://doi.org/10.1787/9789264202719-en.

Raphaela Conte

Raphaela Conte

É advogada na Oliveira e Olivi Advogados Associados. Pós-Graduada em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP-FDRP).

Oliveira e Olivi Advogados Associados Oliveira e Olivi Advogados Associados João Carlos de Almeida Neto

João Carlos de Almeida Neto

É advogado na Integrale Gestão Empresarial. Pós-Graduado em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP-FDRP).

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