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Introdução
Foi bastante divulgado na mídia jurídica o acórdão do STJ1 que dirimiu a contenda proposta pelo espólio de Tim Maia, em virtude do lançamento de coleções pela titular da grife “Reserva”, contendo as expressões “Guaraná & Suco de caju & Goiabada & Sobremesa” e “Você & Eu & Eu & Você”. A partir da decisão, três pontos fulcrais merecem destaque: (a) qual é a liberdade de terceiros na utilização de referências de obras alheias fora do contexto original?; (b) quais são as peculiaridades dos direitos sucessórios em uma ação compensatória pela utilização da obra do falecido?; e (c) como se realizar a devida quantificação de danos no caso de violação de direitos autorais? O presente texto visa uma célere análise do item (a), pois os itens (b) e (c) foram recentemente abordados por outros artigos.
Do acerto decisório
“Você E Eu, Eu E Você” e “Do Leme ao Pontal” são obras musicais caracterizadas por serem canções, ou seja, há a sobreposição entre tempo, ritmo, harmonia, melodia e letra. Uma vez acabadas e externalizadas ao público, são obras intelectuais caracterizadas pela complexidade de seus elementos, tal como uma universalidade imaterial.
Quando os destinatários da obra têm contato com a mesma, não é incomum algum tipo de reação do público. Desprezo, esquecimento, valorização, reconhecimento2 e até o diálogo diacrônico com o emissor são possíveis consequências3 para qualquer obra exposta. Aliás, a vida cultural denota como banal que uma obra de alguém inspire obras outras de terceiros – para o desenvolvimento de novos valores da personalidade que não são inatos4. Afinal, o ganho coletivo do contato com a criação intelectual supera qualquer benefício individual que o autor possa auferir da sua exploração5.
Quanto aos diálogos, a própria legislação exemplifica hipóteses em que a obra alheia será referenciada, a exemplo do direito de citação (art. 46, III, da lei 9.610/98), ou da paródia e da paráfrase (art. 47 da lei 9.610/98).
No caso concreto, um dos pontos afastados pela decisão colegiada do Tribunal da Cidadania foi a incidência do art. 8, VII, da lei 9.610/98, pois apesar de ter havido o aproveitamento comercial por parte do titular da grife “Reserva”, tal empenho não fora das ideias, mas da própria expressão das obras de titularidade do espólio. Empregou-se o título6 e parte da letra de uma das obras, e apenas excerto da letra em outra. Em ambos os casos, não se pode, realmente, disputar a originalidade dos trechos, de modo que são mesmo protegidos pelo Direito de Autor. Em contrapartida, nada há na legalidade constitucional que precate alguém de se inspirar em conceitos alheios, desde que se exprima com as próprias formas – novas e originais. No caso em tela, afastou-se como possível contributo criativo a estilização da letra e do título das obras reproduzidas com o uso do sinal gráfico “&” – o que, para os autores deste texto, se mostra uma decisão acertada.
O vestuário que gerou a discórdia entre as partes, todavia, não continha qualquer tom humorístico. A disposição de trechos das letras musicais estampada nas blusas sequer parecia ter uma proposta de evocação ao riso. Era nítida a referência feita nas roupas da “Reserva”, ou pela expressão utilizada no acórdão, era firme a “intertextualidade”.
O acerto neste ponto do acórdão tem a ver com o ambiente do direito que qualquer pessoa tem de citar a obra alheia. A citação, com ou sem a transcrição da obra citada, é uma forma muito usada na academia para discernir o estado da arte da proposta inovadora. Ao citar outras obras, um autor tem a oportunidade de demonstrar sua honestidade intelectual, contrastar seu pensamento com o de terceiro, ou, tantas vezes, reafirmar a autoridade de suas propostas pela concordância/coincidência com a expressão de alguém bem renomado.
O problema casuístico é que houve uma transcrição de parte das letras musicais sem a indicação da fonte, tanto do autor como da obra transcrita. Ainda que fosse improvável que os consumidores dos itens de indumentária desconhecessem os bens imateriais que inspiraram a coleção da “Reserva”, não cabe a terceiros elegerem a omissão do autor-obra7 citado. Aliás, tal direito existencial entre criador-criatura (art. 24, II, da LDA) advém de regra cogente, consistindo em forma de promoção da personalidade do originador.
Crítica à decisão
No entendimento dos autores do presente texto, a decisão do STJ se revelou correta. O resultado hermenêutico da condenação àquele que transcreve sem apontar a fonte transcrita é a melhor norma para o caso. A pretensão do espólio, assim, foi bem atendida.
O reconhecimento do acerto decisório, entretanto, não é o endosso à totalidade da fundamentação. No capítulo do voto que tratou do reconhecimento do ato ilícito, parte do suporte argumentativo se deu acerca de um pseudo poder que o autor da obra teria de controlar a interpretação de terceiros sobre como o originador da obra pensa8.
Seria Dante Alighieri um hedonista? Machiavelli poderia ser visto como um comunista se estivesse vivo, em Moscou, no começo do século XX? Franz Kafka dançaria ouvindo Anitta? Nenhuma dessas especulações é relevante, vincula o autor ou é passível de sindicabilidade.
Exteriorizada ao mundo, é inocente a lógica de controle absoluto9 sobre como outrem irá compreender, ressignificar e até atribuir premissas implícitas ao autor. É natural que a expressão de determinado criador reverbere de formas distintas e gere interpretações dissonantes não só quanto à obra em si, mas também quanto às inclinações pessoais de quem a originou, à revelia de qualquer intenção ou aspiração do próprio autor – ou seu espólio – quanto à sua recepção pelo público10.
Isso posto, não se conseguiu extrair a coerência interna da fundamentação sobre como eventual transcrição de parcela das obras de Tim Maia em blusas importaria em atribuição de endosso a convicções pessoais pertinentes à grife “Reserva”. Tampouco a mistura entre o direito à imagem do autor, e a correlação musical com o espírito carioca denotaria qualquer imputação negativa ou falsa sobre o falecido.
Não à toa, tal excerto do voto – sufragado pela unanimidade – é despido de qualquer embasamento jurídico, externalizando mais o entendimento pessoal11 do magistrado sobre as disparidades entre os conceitos de titularidade vs. controle.
Conclusão
É possível que a equipe empresarial da sociedade de vestuário tenha omitido os nomes das obras e do autor (referenciados) por alguma questão de disposição visual da indumentária. Ao fazê-lo, violou-se um dos requisitos do direito de citação que não se coaduna com a omissão das fontes. Em outras palavras, se nas mesmas camisas houvera a aposição do nome artístico do emissor da obra referenciada, é bem provável12 que as conclusões deste julgado fossem opostas à norma atingida pelo colegiado.
A liberdade de expressão, a autonomia no ato de pensar e até no fato de se interpretar figuras históricas falecidas não constitui ato ilícito13. Por isso, a decisão do feito Espólio de Tim Maia vs. Tiferet Comércio de Roupas traduz uma norma simultaneamente positiva e negativa para a comunidade jurídica. A rigidez quanto ao direito de citação concomitante à liberdade interpretativa parecem ser, mesmo, o melhor caminho para o convívio do direito de autor com a indústria da moda.
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1 Superior Tribunal de Justiça, 3ª Turma, Min Marco Aurélio Bellizze, REsp 2.121.497/RJ, J. 11.09.2024.
2 “E, se não há quem queira pagar, peço pelo menos uma recompensa que não custa nada e é sempre eficiente: seu aplauso” SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 189.
3 BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Originalidade em Crise. Revista Brasileira de Direito Civil, volume 15, jan-mar de 2018, disponível em https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/204/195 .
4 MORATO, Antonio Carlos. Direito de Autor em Obra Coletiva. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 49.
5 LEMLEY, Mark. Faith-Based Intellectual Property. 62 UCLA Law Review 1328, 2015.
6 Sobre como títulos originais também são objeto de tutela autoral, vide PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XVI. 4ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 17.
7 “A ideia de uma arte separada do seu criador não apenas está fora de moda, como é falsa.” CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. 22 ª Edição, Rio de Janeiro: Record, 2021, p. 114.
8 “houve uma nítida tentativa de correlação entre a música do compositor Tim Maia e o “clima irreverente” do Rio de Janeiro – na busca da grife em traduzir a visão do “espírito carioca” -, o que se mostra grave, pois, sem a devida autorização, vincula a imagem do artista à aludida ideia, representando, ainda que indiretamente, um endosso do autor ao pensamento, mesmo que diversa fosse sua convicção pessoal” Superior Tribunal de Justiça, 3ª Turma, Min Marco Aurélio Bellizze, REsp 2.121.497/RJ, J. 11.09.2024.
9 “Imagine o que acontece hoje em dia: quando um homem importante coloca uma ideia no mundo, ela é imediatamente submetida a um processo de distribuição que consta de simpatia e repulsa; primeiro, os admiradores arrancam grandes nacos que mais lhes agradam, e devoram o seu mestre como raposas devoram carniça; depois, os adversários eliminam os pontos fracos, e, em breve, de toda a façanha nada sobra senão uma provisão de aforismos, dos quais amigos e inimigos se servem. O resultado é uma ambiguidade generalizada” MUSIL, Robert. O homem sem qualidades. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021, p. 399.
10 “The poet may of course have some critical ability of his own, and so be able to talk about his own work. But the Dante who writes a commentary on the first canto of the Paradiso is merely one more of Dante’s critics.” (FRYE, Northrop. Anatomy of Criticism: Four Essays. Princeton University Press, 1971, p. 14). Em tradução livre, “o poeta pode, claro, ter alguma habilidade crítica própria, e, portanto, apto a comentar sobre sua própria obra. Mas o Dante que escreve um comentário sobre o primeiro canto de Paraíso é apenas mais um dos críticos de Dante.”
11 “por outro lado, o perigo ainda mais grave de que o intérprete, deixando-se apaixonar por uma tese, trabalhe de fantasia e julgue encontrar no direito positivo idéias e princípios que são antes o fruto das suas elocubrações teóricas ou das suas preferências sentimentais. A interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei” FERRARA, Francesco. Como Aplicar e Interpretar as Leis. Traduzido por Joaquim Campos de Miranda. Belo Horizonte: Editora Líder, 2003, p. 25.
12 “Ninguém enxerga o óbvio – e repetia: – Só os profetas enxergam o óbvio” RODRIGUES, Nelson Falcão. O Casamento. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira 2016, p. 10.
13 “A livre interpretação dos acontecimentos e dos personagens, as licenças artísticas, e mesmo a caricatura, não ofendem, por si mesmas, algum direito das pessoas a que se referem” FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial. Volume 7, São Paulo: Saraiva, 1962, p. 71.
Pedro Marcos Nunes Barbosa
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Cursou seu Estágio Pós-Doutoral junto ao Departamento de Direito Civil da USP. Doutor em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.
Denis Borges Barbosa Advogados
Eduardo Miceli Fanti Fajardo
Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio. LLM pela American University – Washington-DC