A velha súmula 18 do STF e sua aplicação injusta   Migalhas
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A velha súmula 18 do STF e sua aplicação injusta – Migalhas

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“Eu prefiro ser

Essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião

Formada sobre tudo”.

A súmula 18, do STF, é de 13/12/63. Faz tempo. Vai completar 62 anos.

Pois é. Lembrei-me da poesia Drummondiana: Há sempre uma pedra no meio do caminho, no PAD – Processo Administrativo Disciplinar.

A pedra no caminho é a velha opinião do STF, com a súmula 18. Vejamos:

“Pela falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público”.

Assim, é fundamental um redesenho da velha súmula 18 do STF. Não podemos ficar eternamente agarrados a dogmas jurídicos antigos e a ter aquela velha opinião sobre tudo.

Tudo está em transformação. É a metamorfose, como dizia com sua irreverência Raul Seixas. 

E a metamorfose ambulante no Direito?!

Ora, as esferas penal e administrativa, sim, devem dialogar. Não podem ficar herméticas e isoladas. Por conseguinte, é necessário a releitura das responsabilidades.

Porém, a doutrina fica indiferente e omissa!

Sem falta residual não é possível a punição do servidor

De uma obviedade óbvia: Sem falta residual não é possível a punição administrativa do servidor. Simples assim!

Porém, a Administração Pública, inventa uma suposta falta residual para justificar a instauração do PAD. Toma-lhe punição! 

Tudo isso, viola à dignidade humana, a culpabilidade, a individualização da sanção, a coisa julgada penal, os princípios da segurança jurídica e a proporcionalidade.

De outro modo, o resíduo administrativo é a “palavra mágica” usada arbitrariamente para punir o servidor, independente se o servidor foi absolvido na esfera criminal.

De fato, de resíduo, em regra, nada tem! A Administração Pública atravessa linhas do devido processo legal.

Mitigação da independência entre as instâncias

O mantra é: A absolvição criminal somente influenciará a aplicação da punição administrativa se ficar provado, na ação penal, a inexistência do fato ou negativa de autoria.

Essa frase é repetido mecanicamente!

É evidente de que a tese da independência absoluta entre instâncias, para a absolvição penal, por insuficiência de provas, leva, é claro, a uma imensa injustiça.

Explico: Pelos mesmos fatos, por óbvio, não se pode punir administrativamente o servidor se foi absolvido na esfera penal, mesmo que seja por insuficiência de provas.

Cabe ressaltar que, pela teoria da unidade do poder punitivo, há, mitigação da teoria da autonomia e independência das instâncias, vinculando à esfera administrativa.

Primazia da esfera penal sobre a administrativa

Além do mais, quando o servidor é absolvido por falta de provas, no processo criminal, impede novo julgamento sobre os mesmos fatos.

O professor Antônio Rodrigo Machado, em trabalho primoroso, em seu livro, de leitura obrigatória por todos, “Sanções e Penas”, ensina que1:

“Desde a constatação da supremacia da instância penal, o isolacionismo entre as instâncias materializa-se como incongruência dentro de um sistema cada vez mais abastecido por legislações com caráter punitivo.

Nesse contexto, a revisão do atual modelo de independência entre as instâncias pode representar não em um instrumento que resulte em absolvições automáticas, mas uma mola propulsora que garanta maior confiança do cidadão em relação aos pronunciamentos penalizadores da potestade pública”.

Caso concreto

Vejam um imbróglio, o qual trago à baila pelo simbolismo, pela aplicação equivocada do súmula 18, do STF. Diz a portaria de instauração do PAD:

“Processo administrativo disciplinar instaurado para apurar transgressões disciplinares decorrentes da conduta de dois policiais civis que integrariam quadrilha voltada à prática de furtos qualificados por abuso de confiança e; valendo-se de cargo público e em decorrência da divisão de tarefas da associação criminosa, seriam os responsáveis pela confecção dos registros de ocorrência fraudulentos”.

Ocorre que, a suposta conduta residual apurada no PAD, é igual ao mérito do processo criminal. Mesma causa de pedir. Contudo, o voto condutor na apelação, manteve a absolvição dos servidores:

“A prova com todas as vênias não se mostrou capaz de demonstrar que os policiais integravam a associação criminosa, devendo ser mantida a absolvição”.

Afinal, fica a pergunta: Qual a suposta conduta residual dos servidores considerando que foram inocentados, por falta de provas, de participarem, à época, da quadrilha e confecção de registros fraudulentos?

Não obstante, à delegada relatora da Comissão Permanente de Inquérito Administrativo trouxe à tona a velha súmula 18 do STF: 

“Portanto, plenamente possível a Administração culminar sanção por falta residual, em homenagem à independência entre as instâncias, ainda que, os policiais tenham sidos absolvidos, em seara criminal, com fulcro no art. 386 do CPP, decisão que não vincula a Administração”.

Fundamenta, sem pudor e de forma irresponsável, à delegada:

“Por outro lado, como já mencionado, embora não seja possível afirmar que os servidores processados eles próprios. lavraram tais ROS fraudulentos, restou provado, s.m.j que integravam a quadrilha, agindo de forma a obter vantagem econômica ao viabilizar a confecção dos referidos ROS (seja por eles próprios ou por intermédio de outro policial)”.

Restou provado que os servidores integravam a quadrilha?! Como assim? É a retórica moralista. Ora, os servidores foram absolvidos em duas instâncias.

Não integravam a quadrilha! Eram inocentes! Não se pode no PAD selecionar provas e presumir culpabilidade para aplicação da penalidade disciplinar. O que configura gravíssimo desvio de finalidade e ofende o devido processo legal.

Não há o vale-tudo probatório!

Incrível: A relatora começa com dúvida, ou seja, salvo melhor juízo. A seguir afirma: que integravam a quadrilha; apesar do Poder Judiciário dizer que não integravam a quadrilha.

Pois então. Na dúvida, sempre em favor do servidor processado, pois a presunção de inocência, também incide no processo administrativo, não é?

Mas pergunto: Pode-se no Estado democrático de Direito decidir um PAD por salvo melhor juízo? Pode-se decidir por convicção ou achismo?

Tudo isso demonstra o despreparo da delegada relatora para aplicação de uma sanção. Tinha que voltar às aulas.

O nome disso é: Maldade administrativa!

Conclusão

Sem falta residual não é possível a punição administrativa do servidor. Pela teoria da unidade do poder punitivo, deverá haver a mitigação da autonomia e independência das instâncias,

Quando o servidor é absolvido por falta de provas, no processo criminal, impede novo julgamento sobre os mesmos fatos. É a primazia da esfera penal sobre a administrativa!

O velho dogma da independência entre as instâncias gera injustiça: decisões desproporcionais e contraditórias.

A súmula 18 do STF deve, sim, ser interpretada à luz da segurança jurídica, proteção à confiança, proporcionalidade, vedação ao bis in idem e boa-fé objetiva em nome da coerência e, claro, evitar punições arbitrárias.

O arbítrio avança no Direito. Urge a revisão ou cancelamento da súmula 18 , pelo STF. Não temos tempo a perder. Que venha a metamorfose ambulante jurídica…

_______

1 MACHADO, Antonio Rodrigo, Sanções e Penas, p.201, 2020, Lumen Juris

Renato Otávio da Gama Ferraz

Renato Otávio da Gama Ferraz

Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras

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