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Um caso viralizou na internet, levantando a discussão a respeito da validade da sentença produzida com o apoio da IA – inteligência artificial.
O recorrente alegou a nulidade da sentença, argumentando que o julgado foi produzido com o auxílio da IA.
Para embasar seus argumentos, o recorrente submeteu a sentença à IA (ChatGPT), que teria apontado uma probabilidade – média a alta – do texto ser produzido – total ou parcialmente – por IA.
Porém, o TJ/SP negou provimento ao recurso.
Comentarei o caso a partir desses dados resumidos.
A IA pode aumentar significativamente a eficiência, a agilidade e a precisão na condução dos processos judiciais.
Ferramentas de IA vão muito além da tradicional busca por modelos ou por jurisprudência. Podem analisar, por exemplo, um grande volume de dados para formular conexões, padrões e tendências. Isso é extremamente relevante, especialmente no contexto dos microssistemas da tutela de causas repetitivas e de precedentes judiciais vinculantes.
A IA também pode ajudar a garantir maior consistência e unidade na produção de decisões judiciais, reduzindo os voluntarismos e os vieses cognitivos humanos.
Outro ponto interessante é que ferramentas de IA podem analisar petições e documentos para identificar pontos-chave, propor soluções ou aperfeiçoá-las.
Mas a sentença é nula quando proferida com o auxílio da IA?
Não me parece que uma sentença proferida por um juiz com o apoio da IA viole o princípio do juiz natural, a menos que o julgador seja substituído pela IA.
A decisão judicial não pode ser prolatada por IA, mas pode ser proferida com IA, da mesma forma que a decisão judicial não pode ser prolatada pelo assessor judicial, mas pode ser proferida com o auxílio do assessor.
Porém, a utilização da IA exige, sobretudo, transparência e responsabilidade.
Por diversas razões, a IA pode gerar resultados inconscientes, enviesados ou errados.
A IA pode apresentar, por exemplo, preconceitos algorítmicos.
Da mesma forma, decisões judiciais podem ser inconscientemente manipuladas por técnicas de influência, “que buscam influenciar o comportamento de uma pessoa sem que ela esteja ciente da tentativa de influência, de como essa influência opera, ou dos seus efeitos nas decisões e crenças da pessoa”, como diz Dierle Nunes.
A propósito, Dierle defende que a regulação da IA e de seus impactos em ambientes decisórios sejam disciplinados a partir de uma abordagem interdisciplinar e ampla, abrangendo, por exemplo, todas as formas potencialmente manipuladoras de influência.
Assim, sem que as partes sejam consultadas, com transparência e responsabilidade, a respeito do uso da IA na produção de atos decisórios, não se pode falar em contraditório substancial ou dinâmico (influência e não surpresa).
Vale lembrar que o juiz não pode decidir com base em fundamento sobre o qual não tenha dado às partes a oportunidade de se manifestar, conforme dispõe o art. 10 do CPC.
Quanto maior for uso da IA pelo Judiciário maior será o dever de consulta e de prestar explicações.
Sem accountability também não se pode falar em cooperação e em boa-fé, exigidas de todos os sujeitos do processo, inclusive dos imparciais, como prescrevem os arts. 5º e 6º do CPC.
Luiz Vale defende, inclusive, a possibilidade da instauração de um “incidente de explicabilidade”.
Até mesmo na aplicação dos precedentes judiciais vinculantes, deve o juiz consultar previamente as partes, segundo o § 1º do art. 927 do CPC. Essa consulta, obviamente, abrange o emprego da inteligência artificial.
A IA também não dispensa o magistrado de realizar uma fundamentação analítica ou adequada, como preceituam o inciso IX do art. 93 da CF e os arts. 9º e 489 do CPC, inclusive na aplicação de precedentes judiciais vinculantes, conforme o dispositivo mencionado no parágrafo anterior.
Deve o magistrado analisar, de forma pormenorizada, todos os argumentos de fato ou de direito, objetivamente capazes de infirmar a sua conclusão, conforme exige o inciso IV do § 1º do art. 489 do CPC, explicando também, de forma transparente e responsável, o uso da IA.
Como diz Luiz Vale, “não são os direitos e garantias fundamentais que devem se submeter ao crivo das novas tecnologias; são as novas tecnologias que devem necessariamente passar pelo filtro dos direitos e garantias fundamentais”.
O uso da IA pelo Judiciário é irreversível, mas essa utilização não faz desaparecer o bom e velho due process of law.
Por fim, esclareço que os parágrafos sexto ao nono deste texto foram produzidos parcialmente com o auxílio de IA (ChatGPT e DeepSeek).
Rodrigo da Cunha Lima Freire
Mestre e Doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP, Professor de Direito Processual Civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Advogado e Parecerista. youtube e Instagram @ProfRodrigoDaCunha