Comentários à publicação da lei 15.069/24: O direito ao cuidado   Migalhas
Categories:

Comentários à publicação da lei 15.069/24: O direito ao cuidado – Migalhas

CompartilharComentarSiga-nos noGoogle News A A

Introdução

A lei 15.069, publicada em 23/12/24, que instituiu a Política Nacional de Cuidados, representa um marco significativo na abordagem das necessidades de cuidado no Brasil. Em síntese, a lei, composta por oito capítulos e 14 artigos, traça um verdadeiro caminho, guiando os intérpretes por uma diretiva de princípios em meio à crise de cuidados vivenciada na América Latina como um todo. A temática foi dividida didaticamente em eixos, ou capítulos, abordando, por exemplo, a responsabilidade do Estado, a garantia do direito ao cuidado de forma gradual e progressiva, a necessidade de compatibilizar trabalho remunerado com as responsabilidades familiares e de garantir princípios como antirracismo, anticapacitismo e anti-idadismo, entre outros. Fica evidente que a Política Nacional de Cuidados busca nortear o entendimento e garantir o direito ao cuidado de forma abrangente e equitativa, envolvendo múltiplos atores e setores da sociedade.

A previsão legal de conceitos

Vale destacar que o legislador optou não apenas por incluir o tema no corpo normativo, mas também por pacificar conceitos. Em seu artigo primeiro, assegura que todos têm o direito ao cuidado (Art. 1º, § 1º), separado em três dimensões existenciais: o ato de ser cuidado, o ato de cuidar e o autocuidado (Art. 1º, § 2º). O legislador normatizou também a definição do próprio ato de cuidar, conforme disposto no art. 5º, inciso I:

“[…] cuidado: trabalho cotidiano de produção de bens e serviços necessários à sustentação e à reprodução diária da vida humana, da força de trabalho, da sociedade e da economia e à garantia do bem-estar de todas as pessoas”.

Outros conceitos estão previstos no art. 5º e seus incisos. Alguns merecem destaque, como o da corresponsabilidade social pelos cuidados. No inciso III, descreve-se esse conceito como o compartilhamento de responsabilidades entre os atores sociais que possuem o dever ou a capacidade de prover cuidado, incluindo o Estado, as famílias, o setor privado e a sociedade civil. Destaca-se também a inclusão do compartilhamento equitativo da responsabilidade entre homens e mulheres, evidenciando o desequilíbrio histórico e intergeracional na desigualdade de gênero na crise dos cuidados (Art. 5º, inciso IV). A nova lei trouxe ainda a conceituação de “múltiplas desigualdades”, assunto a ser observado de forma transversal. O art. 5º, inciso V, descreve:

“[…] desigualdades sociais estruturadas em diversas dimensões de exclusão e subordinação com base em critérios de classe, sexo, raça, etnia, idade, território e deficiência, que operam na estruturação e na reprodução das desigualdades sociais e da experiência de vida das pessoas e dos grupos sociais”.

Por fim, outro ponto relevante da lei em análise é a própria condição do trabalho em torno dos cuidados (Art. 5º, VII), aspecto que se mostra urgente, uma vez que o cuidado é realizado ao longo da vida e impacta diretamente a estrutura familiar e social. Isso reitera o debate acerca das desigualdades de gênero e das violências ocorridas no núcleo familiar. Importante destacar que as dimensões e definições adotadas pelo legislador não devem impor limitações semânticas ou simbólicas ao conceito de cuidado, sendo este, por sua natureza, uma tarefa que assume diferentes contornos a depender do caso concreto e de fatores culturais.

Quem tem direito ao cuidado, segundo a lei?

De acordo com a lei, no capítulo IV, art. 8º, incisos I a IV, definiu-se um público prioritário, que inclui: crianças e adolescentes, com atenção especial à primeira infância; pessoas idosas que necessitam de assistência, apoio ou auxílio para atividades diárias; pessoas com deficiência que necessitam de assistência, apoio ou auxílio para atividades diárias; trabalhadoras e trabalhadores remunerados do cuidado e trabalhadoras e trabalhadores não remunerados do cuidado.

As múltiplas desigualdades mencionadas anteriormente (art. 5º, inciso V) serão consideradas na definição do público prioritário, o que significa que a política priorizará aqueles que enfrentam maiores dificuldades no acesso ao cuidado. A lei também permite a ampliação progressiva desse público, à medida que novas necessidades e demandas relacionadas ao cuidado forem identificadas.

Merece destaque o rol de princípios elencados pela lei, que deverá nortear o futuro Plano Nacional de Cuidados, previsto nos arts. 9º e 10º. Esses princípios foram materializados no art. 6º e incluem: respeito à dignidade e aos direitos humanos de quem recebe cuidado e de quem cuida; universalismo progressivo e sensível às diferenças; equidade e não discriminação; promoção da autonomia e da independência das pessoas; corresponsabilidade social entre homens e mulheres; antirracismo; anticapacitismo; anti-idadismo; interdependência entre as pessoas e entre quem cuida e quem é cuidado; direito à convivência familiar e comunitária; parentalidade positiva; valorização e respeito à vida, à cidadania, às habilidades e aos interesses das pessoas; e promoção do cuidado responsivo.

Assim, a legislação estabelece um marco fundamental para a construção de uma política nacional de cuidados, garantindo proteção e amparo a grupos em situação de vulnerabilidade. Ao definir um público prioritário e princípios orientadores, a norma busca assegurar o acesso equitativo ao cuidado, promovendo dignidade, autonomia e inclusão social. A implementação do Plano Nacional de Cuidados será um passo essencial para concretizar esses direitos, reforçando o compromisso do Estado com a corresponsabilidade e a valorização do trabalho do cuidado, tanto remunerado quanto não remunerado.

Comentários finais

A lei 15.069/24 surge como um instrumento fundamental para enfrentar a chamada crise do cuidado, fenômeno que se agrava diante do envelhecimento populacional, das transformações no mercado de trabalho e da persistência das desigualdades de gênero. Historicamente, o trabalho de cuidar, seja no âmbito familiar ou profissional, tem sido invisibilizado e majoritariamente assumido por mulheres, sem a devida valorização econômica e social. A nova legislação busca romper com esse padrão ao estabelecer a corresponsabilidade entre Estado, famílias, setor privado e sociedade civil, além de propor medidas para redistribuir o cuidado de forma mais equitativa entre homens e mulheres.

Além disso, o cuidado não deve ser visto como uma necessidade pontual, mas sim como um processo contínuo ao longo da vida, manifestando-se desde a primeira infância até a velhice. A política pública instituída visa garantir esse suporte de forma progressiva e adaptável, reconhecendo que as demandas por cuidado variam conforme os ciclos da vida e as condições individuais.

A legislação também aborda um problema intergeracional, visto que a carga do cuidado recai desproporcionalmente sobre determinadas faixas etárias e grupos sociais. O trabalho não remunerado desempenhado por mulheres e pessoas idosas perpetua desigualdades e agrava os níveis de pobreza extrema, limitando o acesso dessas pessoas ao mercado de trabalho formal e às oportunidades de desenvolvimento. Assim, a implementação do Plano Nacional de Cuidados será essencial para consolidar um modelo que reconheça o cuidado como prática fundamental para o bem-estar social, promovendo justiça social e equidade para as presentes e futuras gerações.

__________

1 BRASIL. Lei nº 15.069 de 23 de dezembro de 2024. Disponível em:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L15069.htm. Acesso em: 03/02/2025.

João Iotti

João Iotti

João Iotti é Professor, M.Sc. pela Universidade São Paulo (USP), advogado e atual Presidente do Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa Idosa (IBDPI).

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *