A lógica dos exilados: O direito de pertencer e a arte de ser excluído   Migalhas
Categories:

A lógica dos exilados: O direito de pertencer e a arte de ser excluído – Migalhas

CompartilharComentarSiga-nos noGoogle News A A

A história da humanidade é, em grande parte, a história das migrações entre diversos povos. Desde os primeiros grupos humanos que cruzaram continentes em busca de sobrevivência até os milhões de deslocados da atualidade, o movimento é uma constante da existência e a busca pelo desenvolvimento humano. No entanto, a forma como essas migrações são percebidas varia conforme o contexto político e social. Se em alguns momentos a chegada de estrangeiros é vista como enriquecedora, em outros, o imigrante se torna um alvo fácil para a frustração coletiva. Nos Estados Unidos, vemos a política imigratória que revela essa lógica perversa da exclusão: ao mesmo tempo em que o país se construiu com base no esforço de imigrantes, ele também está se especializando na arte de rejeitá-los.

A exclusão dos exilados, sejam eles refugiados de guerra, migrantes econômicos ou simplesmente pessoas em busca de um recomeço, segue uma lógica que se repete na história. Se na Idade Média a ideia de pertencimento era definida por critérios religiosos e dinásticos, na era moderna e contemporânea, o conceito de nação e de fronteira física reforçou essa exclusão. O paradoxo se intensificou no século XX, quando, durante a Segunda Guerra Mundial, o mundo prometeu que nunca mais repetiria as perseguições e os deslocamentos forçados que marcaram o conflito. Ainda assim, os muros continuaram a ser erguidos, os campos de refugiados se multiplicaram e a retórica de que o imigrante é um invasor se fortaleceu.

Do passado ao presente: A herança da exclusão

A relação da humanidade com os exilados sempre foi marcada por um jogo de necessidade e rejeição. Na Idade Média, cidades muradas eram o símbolo do medo do “outro”. Judeus, muçulmanos e hereges eram frequentemente expulsos de reinos cristãos por serem vistos como uma ameaça à ordem estabelecida. A lógica era clara: a estabilidade dependia da exclusão do diferente. Porém, ironicamente, essas mesmas sociedades medievais dependiam de comerciantes estrangeiros para manter seus mercados funcionando e de estudiosos vindos de outras culturas para o desenvolvimento do conhecimento.

Esse mesmo mecanismo se repetiu no século XX, com consequências trágicas. Durante a Segunda Guerra Mundial, a busca por um inimigo interno levou à perseguição sistemática de milhões de pessoas. Judeus, ciganos, homossexuais, dissidentes políticos e inúmeros outros grupos foram expulsos, marginalizados ou exterminados. No pós-guerra, as Nações Unidas foram criadas com o objetivo de garantir que isso nunca mais acontecesse. No entanto, o que se viu ao longo das décadas seguintes foi a transformação da retórica da exclusão: não mais baseada apenas em raça ou religião, mas agora sustentada por discursos de ”segurança nacional, de defesa da economia e da identidade cultural”.

Hoje, nos Estados Unidos, essa mesma lógica se mantém. A nação que foi construída por imigrantes se fecha cada vez mais. O paradoxo é evidente: enquanto se celebra o “sonho americano”, ao mesmo tempo se dificulta o acesso a ele. O imigrante, essencial para a economia, é também tratado como um problema. Discursos políticos inflamam a população, sugerindo que a chegada de estrangeiros representa uma ameaça, quando, na realidade, a mão de obra imigrante sustenta setores inteiros da economia.

Essa hipocrisia é capturada com ironia nos versos:

“Quer me comprar com espelho tio? Já cai nessa!

Vamos brincar de colonização reversa

‘Cê faz fronteira (nós ‘atravessa”)” – Barroz, “Imigrante”

Aqui, o jogo de palavras expõe a contradição: a mesma cultura que um dia colonizou outros territórios e impôs suas fronteiras, agora tenta se proteger daqueles que buscam melhores condições de vida. A colonização, que deslocou povos inteiros, agora se vê diante de uma “colonização reversa”, onde os marginalizados insistem em atravessar as barreiras impostas.

O direito de pertencer

A exclusão dos imigrantes sempre foi justificada sob diferentes argumentos: religiosos, econômicos, culturais e, mais recentemente, securitários. O que poucos admitem é que esse processo não é uma resposta inevitável, mas sim uma escolha política. As fronteiras, antes de serem barreiras naturais, são criações humanas. Quem pertence e quem é estrangeiro não é uma questão objetiva, mas uma construção social que muda conforme a conveniência dos que estão no poder.

O direito de pertencer nunca foi distribuído de forma igual. Ao longo da história, certas nacionalidades sempre tiveram mais liberdade de movimento do que outras. Um europeu pode cruzar o mundo com relativa facilidade, enquanto um latino-americano ou um africano enfrenta uma série de obstáculos burocráticos e xenofóbicos. Essa desigualdade revela que a questão não é apenas sobre imigração, mas sobre quem tem o direito de existir plenamente em qualquer parte do mundo.

Os Estados Unidos continuam a se beneficiar da presença imigrante, mas fazem questão de dificultar a sua existência plena. A criminalização da imigração, os muros, os centros de detenção e as deportações não são apenas políticas de controle – são sinais de uma sociedade que ainda não aprendeu a lidar com a própria hipocrisia. Se a economia depende dos imigrantes, por que a política insiste em rejeitá-los? Se a cultura americana se orgulha da sua diversidade, por que ainda há tanta resistência a novas ondas migratórias?

A arte de ser excluído

A lógica dos exilados não se resume à dor da rejeição. Existe também a resistência. Aqueles que são empurrados para fora encontram maneiras de permanecer. Se há muros, eles são escalados. Se há leis, elas são burladas. A história mostra que nenhum império, por mais poderoso que tenha sido, conseguiu conter o fluxo humano por muito tempo. A migração não é uma ameaça, é uma realidade universal.

Nos versos citados anteriormente, a ideia de “atravessar fronteiras” não é apenas física, mas simbólica. Excluídos da cidadania plena, os imigrantes criam suas próprias redes de apoio, suas próprias culturas híbridas, suas próprias formas de existir. Eles se tornam uma parte invisível, mas essencial, das nações que os rejeitam.

O futuro da política migratória dos Estados Unidos, e do mundo, dependerá da capacidade de reconhecer que o direito de pertencer não pode ser privilégio de poucos. Enquanto a exclusão for uma arte praticada por governos e fortalecida por discursos de medo, o ciclo da marginalização continuará. Mas, enquanto houver aqueles que desafiam as barreiras e resistem à lógica da exclusão, haverá também a esperança de um mundo onde ninguém precise ser um exilado para sempre.

Matheus Lucca

Matheus Lucca

Advogado. Pós graduado em Direito Constitucional e em Direito Ambiental e Urbanístico pela Damásio. Membro da Comissão de Meio Ambiente – OAB de Sto Amaro e membro da LACLIMA.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *