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O racismo utiliza o perverso e nojento critério de raça para explorar economicamente as pessoas; violando a dignidade humana.
O racismo no Brasil se caracteriza pela covardia. Ele não se assume e, por isso, não tem culpa nem autocrítica, disse Abdias do Nascimento.
A propósito, o tema racismo reverso volta à pauta, com a recente decisão do STJ, em 4/2/25.
Consoante denúncia do Ministério Público, haveria injúria racial, pois o réu tinha chamado um italiano, através de aplicativo de mensagem de: “escravista cabeça branca europeia”, após o italiano não pagar uma dívida pelo serviço prestado.
A seguir vamos apresentar uma perspectiva crítica sobre o conceito de racismo reverso à luz da história e relações sociais.
Nunca houve escravidão reversa
Pois então. O desumano Estado brasileiro, com o modo de produção escravista, jamais promoveu uma perseguição e exploração sistêmica aos não-negros. É fato histórico.
Darcy Ribeiro, no ensaio: O Povo Brasileiro diz que “milhões de negros foram queimados como carvão”.
Pois é. Não foram os brancos.
Por outras palavras, a sociedade brasileira estruturalmente não tratava de forma excludente a população branca.
Pergunta: Os não-negros foram dominados? Eles foram colocados à força, e, acorrentados nos navios negreiros, para serem explorados?
Ou seja, nunca houve escravidão reversa!
Na reflexão de Hobbes: O homem é o lobo do homem. Há, sim, uma dialética entre “raça” e “classe”. “Casta” ou o “estamento”.
Só a cegueira social que não vê.
Por isso, precisamos reler a leitura conservadora da ideia do racismo reverso, que tenta forçar a barra, na guerra de narrativas, para ser uma variante do racismo estrutural.
Nem tudo que parece, é. Ainda mais, em tempos de obscurantismo, negacionismo e fundamentalismo religioso.
Nesse sentido, vejamos a lição do festejado sociólogo e professor Octavio Ianni1:
“É possível a racializar uma pessoa não-negra, podendo ofendê-la e discriminá-la, mas essa lógica sobre um olhar do racismo construído ao longo do tempo não apresenta precedentes históricos corroborando esse fato.
Essa racialização que indicamos não possui amparo social, por conseguinte sem uma simbologia no imaginário social, de todo modo o preconceito e a discriminação são imorais na sua essência, a construção do racismo reverso como fenômeno social não possui bases para sua sustentação, não há um histórico de construção social contra pessoas não-negras”.
Contexto histórico-cultural
O Direito é filho da história, da sociologia (fato social) e filosofia. Vamos, então, voltar ao passado para entender o tempo presente.
Mas, cuidado: às vezes, a história é repleta de mentiras bem contadas.
Uma coisa: não se trata de voltar ao passado a fim de destilar ódio entre negros e brancos. De ressentimentos históricos. De nós contra eles. De racismo de estimação.
Não é isso. Mas levar a uma reflexão da violência perversa contra os negros, que ajudaram a construir nossa Nação.
Vergonhosamente, o Brasil foi o último país ocidental a abolir a escravidão, em 13/5/88. Estima-se que 700 mil escravos foram libertos.
Porém, os escravos que não tinha residência ou trabalho acabavam perdendo a liberdade: seu destino era cadeia.
Incrível: É a face cruel da nossa formação social.
Darcy Ribeiro2 tem razão ao afirmar em seu magistral livro, o Povo Brasileiro:
“Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos”.
“Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria”.
“A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista”.
Na Obra-prima do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre3: Casa-Grande & Senzala, ele aponta que:
“Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio – e mais tarde de negro – na composição”
Em consequência, à luz das reflexões de Octavio Ianni, Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre cabe indagar: há uma base histórica de que os brancos eram espoliados e escravizados?
Afinal, será o Brasil uma democracia racial? Aliás, existe uma democracia econômica e cultural?
Por falar em democracia econômica: é tudo dentro de uma realidade virtual. É um faz-de-conta.
Lei 7.716/1989: Lei do crime racial
Vale rememorar de que a lei 7.716/1989 é resultante de um projeto do ex-deputado Federal Carlos Alberto Oliveira dos Santos, o Caó, que era negro. Advogado e jornalista.
Formado em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Participou da Assembleia Nacional Constituinte.
A propósito, é dele a ideia do art. 5º, inciso XLII, da CF, que torna a prática de racismo crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão.
Ou seja, a lei do crime racial nasceu da luta de um jurista negro. Caó sabia da dor, da escravização de homens, mulheres e crianças, aliás, arrancadas e sequestrados da África e colocadas em navios negreiros.
Sabia do massacre do povo negro. Sabia que era o negro que tomava chicotadas…
Os negros viram mercadorias e foram coisificados…
Importante: Por uma interpretação histórica, teleológica e sociológica, fica bem fácil ver que o espírito da lei era proteger os negros de crimes raciais, pois sempre foram uma população historicamente vulnerabilizada e, colocada em posição de desigualdade sistêmica.
A desigualdade, a nosso sentir, está contida no tipo penal, pois a raça historicamente discriminada sempre foi a negra.
Interpretar a norma fora disso é, com todo o respeito, retórica terraplanista.
Uma coisa: se for fazer apenas uma leitura semântica do texto, não precisava de faculdade de Direito. Bastaria perguntar ao professor de letras, não é?
Repito: No Brasil, brancos jamais tomaram chicotadas. Não, mesmo! Aliás, a sociedade brasileira foi construída pelo braço escravo.
Falo isso como branco. Professor e advogado. Descendência italiana (Fantoni). Minha mãe tinha olhos azuis da cor do mar…
Os negros viram mercadorias. Foram escravizados e coisificados.
Afinal, existe racismo reverso?
A nosso sentir, sempre com todo o respeito aos que pensam em contrário: a ideia de racismo reverso significa um negacionismo histórico.
Por quê? Porque é negar, escancaradamente, o contexto histórico da formação social brasileira.
Havendo, eventual, ofensa à honra, ela pode e deve, sim, ser tipificada como injúria comum.
Porém, não se pode admitir é que o tipo penal do racismo seja esvaziado ao tentar equiparar realidades historicamente totalmente desiguais.
Ora, desde o filósofo grego Aristóteles, que sabemos: “devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade”.
Nessa direção, o tratamento diferenciado às mulheres, idosos, crianças, ações afirmativas…
É imprescindível observar às dinâmicas históricas e sociais que permeiam as relações raciais no Brasil.
É que o racismo é uma estrutura de poder. Não é apenas um ato individual de ofensa ou xingamento.
Uma ofensa à honra contra uma pessoa branca é crime. Não há dúvidas. Está ligada às relações entre indivíduos.
Não obstante, jamais se equipara ao racismo histórico e estrutural que fundamenta a injúria racial, pois está ligada à estrutura de social de dominação.
Diretamente no ponto: é que o racismo e injúria racial estão ligados a manutenção de estruturas de poder e exploração do homem pelo homem.
Logo, não existe racismo reverso!
Na mesma direção o mestre e desembargador Guilherme de Souza Nucci4:
“Racismo reverso: como regra, a ideia de existir uma discriminação produzida por minorias contra pessoas integrantes da classe dominante é ilógica e materialmente irrelevante.
“Em nosso entendimento, não existe, para fins jurídicos, como regra, o denominado racismo reverso. Ilustrando, houve empresa que publicou anúncio para a contratação de trainees, voltado exclusivamente para pessoas pretas, gerando revolta em algumas pessoas, sob o pretexto de ocorrer discriminação racial.”
“No entanto, trata-se de uma ação afirmativa, no mesmo espírito das cotas raciais em universidades e concursos públicos”.
Entendimento do STJ sobre racismo reverso
No julgamento, sobre o tema, no habeas corpus 929002, a 6ª turma5, afastou a possibilidade de reconhecimento do chamado “racismo reverso”, ao considerar que “a injúria racial não se configura em ofensas dirigidas a pessoas brancas exclusivamente por esta condição”, pois “o racismo é um fenômeno estrutural que historicamente afeta grupos minoritários, não se aplicando a grupos majoritários em posições de poder.
Em seu voto, o ministro Og Fernandes ressalvou que é perfeitamente possível haver ofensas de negros contra brancos, porém, sendo a ofensa baseada exclusivamente na cor da pele, tais crimes contra a honra teriam outro enquadramento que não o de injúria racial.
Racismo estrutural à brasileira
O racismo estrutural é próprio da estrutura de uma sociedade em um momento histórico.
O racismo é velado, dissimulado, encoberto pelo mito da democracia racial e pela cordialidade do brasileiro.
Porém, na ação declaratória de constitucionalidade 41, em 8/6/17, o plenário do STF reconheceu o racismo estrutural na sociedade brasileira:
“Em primeiro lugar, a desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente”.
É necessário e urgente superar as desigualdades raciais.
Conclusão
A ideia de racismo reverso significa um negacionismo. É negar o contexto histórico da formação social brasileira.
O racismo está ligado a manutenção de estruturas de poder e exploração do homem pelo homem.
O racismo pode acontecer contra o branco. Porém, antes tem que passar por um processo de racialização, vale dizer, haver desigualdades históricas em função da raça.
Contudo, a construção do racismo reverso como fenômeno social não possui bases para sua sustentação. Não há um histórico de construção social contra pessoas não-negras.
Além do que, por óbvio, não se pode igualar: ofensas individuais e opressões sistêmicas.
Não obstante, é fato histórico: somente, os negros foram escravizados, roubados e humilhados, e, tomaram chicotadas…
Nunca houve escravidão reversa! Logo, não há racismo reverso!
Por fim, é necessário a mobilização de todos, para combater a praga do racismo estrutural na sociedade brasileira.
Infelizmente, ainda há os “escravos modernos”…
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1 IANNI, Octavio. A racialização do mundo. Tempo Social, Rev. Sociol. USP, S. Paulo, v. 8, nº 1, p. 1-23, maio/1996. Disponível em: https://cutt.ly/Vzp0QiT. Acesso em: 08 fevereiro 2025
2 RIBEIRO, DARCY. A Formação do Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil, 2010, p.120)
3 FREYRE, Gilberto: Casa-Grande & Senzala,
4 NUCCI, Guilherme de Souza: https://blog.grupogen.com.br/juridico/areas-de-interesse/existe-racismo-reverso/, acesso em 8 de fevereiro de 2025
5 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2025/04022025-Racismo-reverso-STJ-afasta-injuria-racial-contra-pessoa-branca-em-razao-da-cor-da-pele.aspx
Renato Ferraz
Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras