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O art. 1.029 do CC, inserido no capítulo que trata das sociedades simples, também se aplica às sociedades limitadas e regula o direito de retirada dos sócios. Esse dispositivo estabelece que qualquer sócio pode se desligar da sociedade. Se a sociedade for de prazo determinado, a retirada depende do reconhecimento judicial de uma justa causa. Por outro lado, se a sociedade for de prazo indeterminado, o sócio pode exercer esse direito por meio de notificação aos demais sócios, com antecedência mínima de 60 dias. Além disso, o parágrafo único do artigo prevê que, nos 30 dias subsequentes à notificação, os demais sócios podem optar pela dissolução total da sociedade.
O direito de retirada, portanto, possui regras distintas a depender do prazo de vigência da sociedade. Enquanto nas sociedades de prazo determinado é necessário ajuizar ação judicial para justificar a saída do sócio, nas sociedades de prazo indeterminado a retirada ocorre de forma unilateral, mediante simples notificação extrajudicial aos demais sócios, independentemente de motivação. O Manual de Registro de Sociedade Limitada do DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração detalha o procedimento para o exercício desse direito e impõe obrigações específicas às Juntas Comerciais, como o arquivamento da notificação enviada pelo sócio retirante.
Convém destacar que o direito de retirada tratado no art. 1.029 do CC difere daquele previsto no art. 1.077 do mesmo diploma legal. Enquanto o primeiro garante ao sócio a retirada independentemente de justificativa em sociedades de prazo indeterminado, o segundo permite a saída do sócio dissidente em determinadas situações específicas, como modificações substanciais no contrato social ou operações societárias, tais como fusão, incorporação e cisão.
Feitas essas distinções, cabe agora analisar a possibilidade de afastamento do direito de retirada no contrato social, à luz da decisão do STJ e da recente alteração no Manual de Registro de Sociedade Limitada do DREI.
O STJ, no REsp 1.839.078/SP (2017/0251800-6), decidiu que o direito de retirada imotivada em sociedades por prazo indeterminado constitui um direito potestativo e fundamental dos sócios, mesmo quando a sociedade adota a regência supletiva da lei das sociedades por ações (lei 6.404/1976). O relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, fundamentou sua decisão na garantia constitucional de liberdade de associação, destacando que “a própria Constituição Federal expressamente garante, em seu art. 5º, XX, tanto o direito fundamental de associação quanto o de não associação. Há, portanto, liberdade constitucionalmente garantida não apenas de se associar, mas também de não permanecer associado.” Dessa forma, a Corte conferiu ao direito de retirada imotivada uma proteção equivalente à de um direito fundamental.
No entanto, essa fundamentação pode ser questionada. Em uma análise sistemática do art. 5º da CF/88, percebe-se que os direitos previstos nesse dispositivo dizem respeito à liberdade de associação no contexto das relações civis e políticas, especialmente como resposta a abusos cometidos durante a ditadura militar. Ao observar os incisos anteriores e posteriores ao inciso XX, nota-se que o objetivo do constituinte foi garantir a liberdade dos indivíduos de se associarem sem a necessidade de autorização estatal prévia, não tratando propriamente de relações societárias. Com efeito, a crítica que se faz neste parágrafo não se refere à atribuição do caráter potestativo ao direito de retirada imotivada, mas sim à justificativa constitucional utilizada pelo STJ para sustentá-lo.
Independentemente dessa crítica, o entendimento firmado pelo STJ conduz à conclusão de que o direito de retirada imotivada é um direito fundamental, garantido constitucionalmente pelo art. 5º, XX, da CF/88. Isso implica que, a priori, esse direito não poderia ser afastado pelo contrato social ou por um acordo de sócios, pois equivaleria a uma renúncia a um direito assegurado pela própria Carta Magna. O fato de o direito ser potestativo reforça sua aplicabilidade independente da anuência da sociedade, mas a verdadeira razão de sua inafastabilidade reside no seu caráter fundamental.
Por outro lado, a IN DREI 01/24 introduziu no Manual de Registro de Sociedade Limitada uma disposição que contraria esse entendimento. Segundo o novo regramento, “é lícita a estipulação em contrato social que os sócios não poderão exercer o direito de retirada imotivada.” Em uma interpretação literal dessa norma, os sócios podem prever, no contrato social, a vedação ao exercício do direito de retirada imotivada previsto no art. 1.029 do CC, afastando, assim, o caráter potestativo atribuído pelo STJ.
Caso essa cláusula seja incluída no contrato social, o sócio somente poderá exercer o direito de retirada de forma motivada e com reconhecimento judicial da justa causa, independentemente do prazo de duração da sociedade. Essa vedação pode ser estabelecida tanto no momento da constituição da sociedade quanto posteriormente, mediante alteração do contrato social.
Dessa forma, verifica-se um conflito direto entre o entendimento do STJ e a orientação do DREI. Enquanto o primeiro considera o direito de retirada imotivada um direito potestativo e fundamental, o segundo permite que os sócios o afastem por meio de convenção contratual.
No âmbito prático, essa divergência gera insegurança jurídica e pode impactar diretamente a forma como as Juntas Comerciais tratarão os pedidos de retirada de sócios. Se seguirem o entendimento do STJ e considerarem o direito de retirada imotivada um direito indisponível, deverão aceitar a retirada do sócio independentemente da previsão contratual. No entanto, se adotarem a interpretação do DREI – o que é mais provável, dada a relação direta de hierarquia existente -, poderão recusar o arquivamento da retirada, obrigando o sócio a recorrer ao Poder Judiciário para garantir seu direito.
Além disso, surgem questões práticas relevantes: caso a Junta Comercial recuse a retirada do sócio devido à cláusula restritiva, a partir de quando se iniciará o prazo de 60 dias previsto no art. 1.029 do CC? A partir da notificação extrajudicial enviada aos demais sócios? Da data do ajuizamento da ação? Ou apenas da decisão judicial que reconhecer o direito de retirada? E seria necessário o trânsito em julgado dessa decisão?
Se a cláusula que veda o direito de retirada for considerada nula de pleno direito por violar sua natureza potestativa, entendo que o prazo de 60 dias deve ser contado a partir da notificação extrajudicial. Contudo, para evitar dúvidas e litígios, é essencial que a decisão judicial fixe expressamente a data de início do prazo, sendo cabível a interposição de embargos de declaração em caso de omissão.
Outro ponto que merece atenção refere-se à vedação disfarçada do direito de retirada imotivada por meio da fixação de um prazo de duração excessivamente longo para a sociedade, como 100 anos. Na prática, essa estratégia produz o mesmo efeito de uma cláusula que veda expressamente a retirada imotivada. Para evitar questionamentos judiciais futuros, os sócios devem fundamentar de maneira adequada a escolha de prazos extensos, assegurando que tal previsão não tenha o objetivo de restringir indevidamente o direito de retirada.
Diante desse cenário, é essencial que os sócios avaliem com cautela as implicações dessa controvérsia ao estruturar suas sociedades. A divergência entre o STJ e o DREI pode resultar em litígios, gerar entraves no registro de retiradas e comprometer a segurança jurídica das operações societárias. Para mitigar riscos, recomenda-se que os sócios busquem assessoria jurídica especializada e adotem estratégias contratuais que garantam maior previsibilidade e estabilidade às relações societárias.
No mais, ainda não há um posicionamento consolidado da jurisprudência sobre essa questão. Resta aguardar como os tribunais e, inclusive, o próprio STJ decidirão sobre a validade da cláusula de afastamento do direito de retirada imotivada nos contratos sociais.
Felipe Martinelli Barbosa
Advogado com foco em Direito Empresarial, especialmente em Direito Societário, atuando em planejamento sucessório e reestruturações corporativas. Pós-graduando em Direito Societário pelo ILMM