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O art. 20-B, §1º, da LREF dispõe sobre a possibilidade de suspensão das execuções em cenários de pré-insolvência. No entanto, interpretações divergentes suscitam dúvidas sobre a possibilidade de os efeitos da suspensão atingirem, também, as execuções de créditos extraconcursais. A divergência sobre a extensão dos efeitos do §1º atravessa não apenas a interpretação específica dos termos do art. 20-B, senão do próprio sistema recuperacional da LREF, como um sistema integrado de normas.
A LREF – Lei de Recuperação de Empresas e Falências, após a reforma promovida pela lei 14.112/20, introduziu uma série de alterações com o objetivo de modernizar os procedimentos relacionados à insolvência empresarial. Uma das alterações envolve o art. 20-B, inciso IV e §1º, que trata das negociações pré-insolvência. Esta norma tem gerado discussões sobre sua abrangência e seus impactos sobre os credores de empresas em dificuldades financeiras. O ponto central da discussão reside na aplicabilidade do §1º do art. 20-B da LREF, especialmente em relação a quais credores são afetados pelos efeitos das negociações antecedentes à recuperação judicial.
Em uma interpretação restritiva da norma referida, apenas os créditos sujeitos à recuperação judicial deveriam ser impactados pelas disposições do §1º do art. 20-B. Isto porque a legislação foi desenhada para operar dentro de uma estrutura que não necessariamente alcançaria todos os credores na fase antecedente à recuperação judicial. Como não existe, ainda, um concurso de credores nesta fase inicial, não seria adequado estender as suspensões de execuções e outras medidas cautelares aos credores não sujeitos. E não apenas, por esta interpretação “restritiva”, o próprio inciso IV parece delimitar os efeitos do §1º quando menciona “a empresa em dificuldade e seus credores, em caráter antecedente ao ajuizamento de pedido de recuperação judicial”.
Já em uma interpretação mais abrangente ou integrada da norma, todos os credores, concursais e extraconcursais, estariam afetados pelos efeitos do §1º do art. 20-B. A interpretação se justificaria no propósito da reforma que é o de estabilizar o ambiente econômico e permitir negociações mais flexíveis, antes mesmo de uma recuperação judicial. Trata-se, portanto, de um sistema de pré-insolvência cujo objetivo é facilitar acordos fora dos tribunais. Normativamente, a interpretação seria “lícita” porque no §1º não há qualquer menção que restrinja ou induza restrição no alcance sobre os créditos. Neste sentido, o inciso IV imporia apenas em uma restrição para o caput do art. 20-B, mas não para o §1º, que estaria muito mais afeito a uma cautelar satisfativa.
Ambas as interpretações refletem uma tensão entre uma abordagem legalista estrita, que se apega ao texto da lei e ao seu contexto imediato, e uma visão mais pragmática, que busca adaptar a legislação às realidades complexas das crises empresariais. Fato é que a interpretação do art. 20-B da LREF é crucial para definir o alcance e a eficácia das medidas de pré-insolvência nos Tribunais, que também divergem sobre o alcance de seus efeitos.
No acórdão proferido pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, quando do julgamento do agravo de instrumento 2140436-38.2024.8.26.0000, foi dada uma “interpretação restritiva” sobre a aplicação do art. 20-B, §1º, da LREF. Ali estabeleceu-se uma distinção clara entre os créditos que estão sujeitos à recuperação judicial e aqueles que não estão. O acórdão confirma que a suspensão das execuções judiciais e medidas administrativas, sob a égide do art. 20-B, §1º, aplica-se exclusivamente aos créditos que poderiam ser submetidos à recuperação judicial subsequente. Assim, as execuções relativas a créditos não abrangidos pelo processo recuperacional, especialmente os garantidos por alienação fiduciária, não se beneficiam das disposições do §1º, notadamente no que trata o período de suspensão.
Assim, a decisão do tribunal pretende evitar expansões que não estão expressamente previstas na LREF. No entendimento do relator, desembargador Natan Zelinschi de Arruda, a tutela cautelar antecedente, prevista no art. 20-B, deve ter sua aplicação limitada aos créditos explicitamente sujeitos à recuperação judicial, em conformidade com o que é determinado pelo art. 49, §3º, da LREF:
[…] É dizer, a medida sub judice não abrange a suspensão de garantias fiduciárias, tampouco restringe a propositura de medidas constritivas. […] a tutela acautelatória, prevista no dispositivo supracitado, tem interpretação restrita, que limita a suspensão às execuções relativas a créditos que poderiam estar sujeitos à recuperação judicial posterior. […] Os créditos garantidos por alienação fiduciária não estão sujeitos à recuperação judicial, que é a hipótese dos créditos que as agravantes pretendem sejam incluídos.
A “essência” da decisão da 2ª Câmara parece ser a de preservar a integridade do sistema de reestruturação disposto na LREF. Tem como fim, deste modo, garantir que apenas os créditos que podem ser submetidos a esse regime estejam protegidos pelas disposições do §1º. O acórdão reforça a interpretação de que a suspensão das execuções deve ser aplicada de maneira restrita, em convergência com a finalidade de dar ao devedor a oportunidade de negociar com seus credores em um ambiente controlado, mas sem estender essas proteções, indevidamente, para créditos que não são elegíveis para tal tratamento no contexto do processo recuperacional.
No entanto, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP desafia a “interpretação convencional” sobre a norma. No julgamento do agravo de instrumento 2020046-39.2024.8.26.0000 o Tribunal entendeu que também os créditos extraconcursais estariam afetados pela medida cautelar de suspensão. O relator Fortes Barbosa fez crítica à discussão sobre a concursalidade dos créditos em uma fase em que não há, ainda, um processo de recuperação judicial. No entendimento do relator, discutir se um crédito é concursal ou extraconcursal, antes mesmo da instauração do processo de recuperação, é prematuro e descontextualizado. Isto porque a solução do §1º ocorre em um tempo onde a distinção entre créditos concursais e extraconcursais é estéril, já que se presta como um facilitador das negociações, independentemente da natureza final dos créditos:
[…] Ao empregar o adjetivo “antecedente” no texto do artigo 20-B, inciso IV da Lei 11.101, o legislador transmite a equivocada impressão de ser a medida cautelar em apreço, apenas e tão somente, preparatória a um pedido de recuperação judicial, quando, na verdade, está voltada para o surgimento de um ambiente propício para a mediação. […] O posterior ajuizamento de um requerimento de recuperação judicial não é, portanto, “condição para a deflagração da mediação pré-processual”.
[…] E, por conseguinte, torna-se imprópria e inadequada qualquer discussão acerca da potencial concursalidade ou extraconcursalidade de um determinado crédito, pois não há um concurso instaurado e não é possível, nem mesmo, saber se sua instauração será realizada ou qual forma será
adotada, de maneira que, para dar efetividade à medida cautelar prevista no artigo 20-B, §3º da Lei 11.101, todos os credores convidados à mediação devem estar submetidos a seus efeitos. […] A análise da concursalidade de créditos esbarra, repita-se, no fato incontornável de inexistir um concurso, inviabilizando seja atingido o escopo primário da medida cautelar em apreço.
Ainda, o acórdão está alinhando ao enunciado 6 do FONAREF, que determina que a medida cautelar de suspensão deve vincular todos os credores convidados para a mediação (inclusive – é possível deduzir -, os extraconcursais). Portanto, a vinculação é crucial para garantir que a medida ocorra em termos justos e com potencial real de sucesso, sem que partes do passivo da empresa possam escapar aos efeitos da solução jurídica por serem classificadas de forma diversa. Ao incluir os créditos extraconcursais nas suspensões de execuções e medidas constritivas, o Tribunal amplia a eficácia das tentativas de mediação pré-insolvência, potencializando a chance para que empresas em crise econômico-financeira possam se reestruturar sem a pressão imediata de credores, que agem isoladamente.
A discussão sobre o alcance dos termos do art. 20-B, IV e §1º da LREF reflete um ponto crítico da jurisprudência nos processos de recuperação judicial, ao tempo que evidencia um complexo equilíbrio entre a proteção do devedor e a prerrogativa dos direitos dos credores. Fato é que a suspensão das execuções, no prazo do §1º do art. 20-B, serve como uma janela de oportunidade para uma solução consensual para a situação de crise, através de um modelo jurídico-econômico que pretende equilibrar as pressões e interesses no contexto da insolvência empresarial.
Daniel Fioreze
Sócio do escritório Silva e Silva Advogados Associados e diretor do núcleo de recuperação judicial de empresas e falências. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria – RS (UFSM). Possui pós-graduação em Direito Tributário e Aduaneiro pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e em Direito Processual Civil pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus (CEDJ). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria – RS (FADISMA). Contato: [email protected]