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Assunto muito comum em demandas envolvendo o Poder Público e que vem sendo enfrentado pelos Tribunais Superiores, refere-se às variáveis relacionadas ao pedido de desistência formulado no âmbito do mandado de segurança.
A lei 12.016/09 não trata especificamente desta temática. Algumas situações devem ser analisadas nos casos concretos, levando em conta o momento processual em que o requerimento de desistência é formulado, a saber: a) antes da notificação da autoridade e da citação da pessoa jurídica (art. 7º, I e II, a lei 12.016/09); b) antes da decisão de mérito; c) após o julgamento meritório, concedida ou não a segurança; d) durante a tramitação do recurso interposto contra a decisão final; e) com o objetivo de se afastar dos efeitos de precedente vinculante ou de repercussão geral já declarada pelo STF.
É importante partir de uma premissa ligada ao sistema processual como um todo: Ambas as partes possuem direito à resolução de mérito. Após este julgamento (especialmente quando o pedido é julgado improcedente), a desistência pode ser vista como ato atentatório a boa-fé processual.
O CPC/15 tenta controlar o direito a resolução de mérito e a boa-fé processual, ao indicar que o requerimento apresentado após a contestação deve ter concordância do réu, tendo como limite a prolatação da sentença (ou acórdão) – art. 485, §§4º e 5º.
Resta saber se estes dispositivos processuais são aplicáveis ao mandado de segurança. A indagação é esta: Deve existir um limite temporal para o pedido de desistência no MS, à semelhança do previsto no art. 485, §5º, do CPC/15?
Não se pode esquecer que foi provocado o sistema de justiça pelo que autorizar, indefinidamente, a substituição de decisão meritória por outra sem resolução de mérito em decorrência da homologação de desistência, poderá colocar em risco a própria credibilidade da atuação estatal, permitindo a escolha, pelo impetrante, do melhor de dois mundos (a concessão da segurança ou, se não ocorrer, a desistência da demanda e nova provocação judicial).
No STJ existem julgados, mais antigos, no sentido de que o limite máximo para a apresentação do pedido de desistência é a decisão de mérito (RESp 550.770 Rel. Min. João Otávio de Noronha – J. em 24/10/06 – Dje de 4/12/06; AgRg no REsp 291.059/PR, Rel. Min. Humberto Martins – 2ª Turma, J. em 21/6/07, DJ 24/9/07 p. 271; AgRg no REsp 543698/BA, Rel. Min. Denise Arruda – 1ª Turma, J. em 27/4/04, DJ 31.05.2004 p. 198).
Contudo, as variáveis deste assunto que foram indicadas no início deste ensaio passam, necessariamente, pelo entendimento do STF em Temas de Repercussão Geral. A tese fixada neste Tema 530/STF (RE 669.367- Rel. Min. Luiz Fux – Redatora do Acórdão Min. Rosa Weber – J. 2/5/13), ainda na vigência do CPC/73, foi a seguinte:
“É lícito ao impetrante desistir da ação de mandado de segurança, independentemente de aquiescência da autoridade apontada como coatora ou da entidade estatal interessada ou, ainda, quando for o caso, dos litisconsortes passivos necessários, a qualquer momento antes do término do julgamento, mesmo após eventual sentença concessiva do ‘writ’ constitucional, não se aplicando, em tal hipótese, a norma inscrita no art. 267, § 4º, do CPC/73”
O STJ também possui entendimento no mesmo sentido (v.g., RESp 1.405.532 – Rel. Min. Eliana Calmon – 2ª Turma – J. em 10/12/13 – DJe de 18/12/13). Há, inclusive, precedente consagrando a possibilidade de desistência parcial no MS (AgInt no RESP 1.475.948 – Rel. Min. Regina Helena Costa – 1ª T – J. em 2/8/16 – DJe de 17/8/16), com diminuição do objeto litigioso.
Em passagem de julgado da 1ª Turma do STJ (PET no REsp 2.077.026/SC, Rel. Min. Benedito Gonçalves – J. 11/11/24 – DJe 14/11/24) restou consagrado que:
“Após o reconhecimento da repercussão geral do tema 530, o Supremo Tribunal Federal, no RE 669.367/RJ, firmou tese vinculante segundo a qual a desistência do Mandado de Segurança é prerrogativa da parte impetrante; pode ser manifestada a qualquer tempo, mesmo após o julgamento de mérito, desde que antes do trânsito em julgado; e sua homologação não depende da anuência da parte contrária”.
Em outro julgado de 2024 (AgInt do AREsp 2.334.952 – Rel. Min. Sérgio Kukina – J. 21/10/24 – DJe 25/10/24), a 1ª Turma afirmou que:
“A desistência do mandado de segurança constitui prerrogativa da parte impetrante, a qual pode ser manifestada a qualquer tempo antes do trânsito em julgado da demanda e cuja homologação independe de anuência da parte contrária”.
A questão maior a ser enfrentada é saber se a tese fixada no Tema 530/STF (e replicada em julgados do STJ) está em consonância com o art. 485, §5º, do CPC/15, bem como se é aplicável nas hipóteses em que estiver comprovada a atuação de má-fé da parte visando, por exemplo, se esquivar do resultado firmado em precedente qualificado.
Aliás, o próprio STF está, em casos específicos, fazendo distinção em relação ao decidido no RERG 669.367, inclusive com certa aproximação ao disposto no art. 485, §5º, do CPC.
Destarte, existem julgados na Corte Suprema consagrando a impossibilidade de homologação da desistência, quando há razoável possibilidade de reajuizamento da demanda sob o procedimento comum. Vale citar passagem do voto do Min. Teori Zavascki no ED no AgReg no MS 29.253:
“Consideradas as circunstâncias do caso, o pedido de desistência do mandado de segurança não pode ser homologado. Não se desconhece, certamente, o precedente firmado no RE 669.367 RG (Rel. Min. Luiz Fux, redatora do acórdão a Min. Rosa Weber, Pleno, DJe de 30/10/14), segundo o qual pode a parte impetrante manifestar desistência da ação mandamental a qualquer tempo, mesmo após a sentença, independentemente da concordância da parte impetrada. Todavia, no caso, muito mais que o interesse das partes, está em questão a própria seriedade da função jurisdicional e a autoridade das decisões do STF. É que o ato aqui atacado, emanado do CNJ, foi objeto de questionamento perante esta Corte em inúmeros mandados de segurança semelhantes, tendo o Tribunal, invariavelmente, denegado a ordem, tanto no Plenário, quanto nas Turmas. O pedido de desistência, formulado após o julgamento do agravo regimental e da oposição dos embargos declaratórios, não traduz disposição da parte impetrante de se conformar com o entendimento pacificado pelo Tribunal. Pelo contrário, há indisfarçável intenção de propor nova demanda nas instâncias ordinárias (valendo-se do que decidiu o STF na AO 1706 AgR, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 18/12/13, DJe de 18/2/2014, conferindo ao juízo de primeiro grau a competência para processar e julgar ações ordinárias referentes à matéria). Esse propósito, como afirmado, faz pouco caso da seriedade e da autoridade das decisões desta Suprema Corte sobre a matéria questionada, sem falar que prolonga indevidamente em prejuízo da efetividade da função jurisdicional e em benefício de quem, segundo orientação do Tribunal, não tem razão o desfecho da controvérsia, tantas vezes já enfrentada e decidida” (EDAgReg no MS 29253. J. em 26/10/16)”.
Já no RE 693.456 (Rel. Min. Dias Toffoli – J. em 27/10/16 – Tribunal Pleno – Dje de 18/10/17), a Corte resolveu, por maioria, questão de ordem no sentido de não admitir a desistência do MS após o reconhecimento de repercussão geral da questão constitucional; o que, aliás, está em consonância com o art. 998, parágrafo único, do CPC/15. Neste julgamento, foi firmada a tese de “impossibilidade de desistência de qualquer recurso ou mesmo de ação após o reconhecimento de repercussão geral da questão constitucional”. Eis a Ementa:
“RE. Repercussão geral reconhecida. Questão de ordem. Formulação de pedido de desistência da ação no recurso extraordinário em que reconhecida a repercussão geral da matéria. Impossibilidade. Mandado de segurança. Servidores públicos civis e direito de greve. Descontos dos dias parados em razão do movimento grevista. Possibilidade. Reafirmação da jurisprudência do STF. Recurso do qual se conhece em parte, relativamente à qual é provido. 1. O Tribunal, por maioria, resolveu questão de ordem no sentido de não se admitir a desistência do mandado de segurança, firmando a tese da impossibilidade de desistência de qualquer recurso ou mesmo de ação após o reconhecimento de repercussão geral da questão constitucional. 2. A deflagração de greve por servidor público civil corresponde à suspensão do trabalho e, ainda que a greve não seja abusiva, como regra, a remuneração dos dias de paralisação não deve ser paga. 3. O desconto somente não se realizará se a greve tiver sido provocada por atraso no pagamento aos servidores públicos civis ou por outras situações excepcionais que justifiquem o afastamento da premissa da suspensão da relação funcional ou de trabalho, tais como aquelas em que o ente da administração ou o empregador tenha contribuído, mediante conduta recriminável, para que a greve ocorresse ou em que haja negociação sobre a compensação dos dias parados ou mesmo o parcelamento dos descontos. 4. Fixada a seguinte tese de repercussão geral: “A administração pública deve proceder ao desconto dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre, permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público”. 5. Recurso extraordinário provido na parte de que a Corte conhece”.
Este posicionamento é digno de elogio. Como já mencionado, permitir a desistência após a decisão de mérito (especialmente no caso de denegação da segurança), pode significar conduta contrária à sistemática advinda do CPC/15. É necessário, portanto, analisar a situação jurídica específica visando controlar a boa-fé processual.
Outras reflexões que devem ser feitas, antes da conclusão deste texto: a) a desistência após a decisão meritória pode gerar um reflexo semelhante ao da ação rescisória, desconstituindo o decisum contrário aos interesses do impetrante; b) o art. 494, do CPC/15 veda a possibilidade do juiz inovar no feito após a decisão final; c) o réu do procedimento mandamental também tem direito a resolução definitiva da lide (especialmente quando a decisão está em seu favor em decorrência da denegação da segurança).
Ainda quanto a este ponto, em outro julgado, o Supremo Tribunal enfrentou o pedido de desistência contra jurisprudência pacificada, consagrando que:
“Nas hipóteses em que demonstrado o mero intuito de se recusar observância a Jurisprudência pacífica da Corte, o Supremo Tribunal tem afastado o entendimento firmado no RE 669.367 RG (Relatora para o acórdão a Ministra Rosa Weber, Pleno, DJe de 30/10/14), segundo o qual pode a parte impetrante manifestar desistência da ação mandamental a qualquer tempo, mesmo após a sentença, independentemente da concordância da parte impetrada. Precedentes. Pedido de desistência não homologado” (AgReg nos EmbDecl nos EmbDecl em MS 29.083 DF – Rel. Min. Teori Zavascki – Rel. para acórdão Min. Dias Tofoli – J em 16/5/17 – 2ª T).
No AgReg nos segundos Emb. Decl. no AgReg no RE 1.319.398 (Rel. Min. Luiz Fux – J. virtual entre 7/10/22 e 17/10/22 – 1ª T/STF), o voto do Min. Relator, após enfrentar a tese firmada no Tema 530/STF, consagrou diversos julgados da Corte afastando-a, como se observa na seguinte passagem:
“Nada obstante, como salientado pela parte agravante, referido entendimento tem sido excepcionalmente afastado nas hipóteses em que o pedido de desistência da ação mandamental tem o inequívoco propósito de burlar a autoridade das decisões desta Corte. Confiram-se: MS 29.632-EDAgR, Segunda Turma, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe de 7/6/16; MS 29.715AgR-ED-ED, Segunda Turma, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe de 3/8/15; ARE 1.074.161-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Edosn Fachin, DJe de 3/12/20; e RE 434.519-AgR, Primeira Turma, Redator do acórdão Min. Roberto Barroso, DJe de 5/12/19”.
Como se pode perceber, o próprio STF vem fazendo distinções em relação à incidência do padrão decisório advindo do Tema 530/STF; prestigiando, de um lado, a força da decisão judicial e, de outro, os princípios da boa-fé e da primazia de mérito, além da segurança jurídica e da própria vedação geral de desistência após a prolação da decisão final (art. 485, §5º, do CPC/15).
Por derradeiro, importante ratificar que, quando o mandamus tiver sido impetrado contra autoridade coatora federal e possuir reflexo pecuniário, também há a restrição do art. 3º da lei 9.469/97 (desistência apenas pode quando gerar a renúncia ao direito que se funda a ação).
É possível concluir que a desistência no mandado de segurança não pode ser permitida de forma ilimitada e sem a análise das circunstâncias do caso concreto, tendo em vista a necessidade de prestigiar a boa-fé processual e a própria redação contida no art. 485, §5º, do CPC.
São estas as observações necessárias para o enfrentamento das variáveis ligadas ao instituto da desistência e sua utilização no procedimento do mandado de segurança.
José Henrique Mouta
Mestre e Doutor (UFPA), com estágio em pós-doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor do IDP (DF) e Cesupa (PA). Procurador do Estado do Pará e advogado.