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O Dia do Consumidor é tradicionalmente um momento para ressaltar os direitos daqueles que compram produtos e contratam serviços. A discussão gira em torno da proteção contra abusos, da garantia de qualidade e do direito à informação. Embora esse foco seja essencial, há um aspecto muitas vezes negligenciado: os deveres do consumidor.
A relação de consumo não deve ser encarada como uma via de mão única. Se, de um lado, os fornecedores precisam seguir normas rigorosas, de outro, os consumidores também têm responsabilidades, como agir com boa-fé, lealdade e consciência. O silêncio sobre essa questão leva a uma percepção equivocada: a ideia de que o consumidor está sempre certo e de que qualquer exigência, por mais abusiva que seja, é válida.
Direitos e deveres: Encontrando o equilíbrio
O CDC (lei 8.078/90) tem como princípio a harmonização dos interesses nas relações de consumo (art. 4º, III). Isso significa que a proteção ao consumidor deve coexistir com a viabilidade da atividade empresarial e evitar incentivos a comportamentos oportunistas.
Apesar disso, a discussão sobre o tema geralmente ignora essa perspectiva. Muito se fala sobre o direito de arrependimento em compras online, mas pouco se debate sobre os abusos dessa prerrogativa, como a devolução de produtos usados sem justificativa plausível. A inadimplência, por exemplo, é frequentemente retratada apenas como um problema das empresas, sem considerar seus reflexos no mercado de crédito e na economia. Há ainda situações em que consumidores, mesmo após receberem a restituição do valor pago, se recusam a devolver o produto adquirido, caracterizando enriquecimento sem causa.
Um caso emblemático analisado pelo STJ no REsp 1.823.284/SP ilustra bem essa questão. Uma consumidora recebeu o reembolso do valor pago por um veículo com vício oculto, mas não devolveu o automóvel ao vendedor. O STJ entendeu que tal conduta feria o princípio da boa-fé objetiva e o equilíbrio contratual, configurando enriquecimento ilícito, conforme o art. 884 do CC.
Os impactos de um protecionismo excessivo
Não se discute que o consumidor, em muitos casos, é a parte mais vulnerável da relação de consumo. No entanto, essa vulnerabilidade não significa que ele esteja isento de deveres. O ordenamento jurídico protege o consumidor de práticas abusivas, mas isso não implica uma liberdade irrestrita para agir sem responsabilidade.
O protecionismo excessivo traz consequências diretas. Empresas endurecem políticas de devolução e cancelamento, aumentam os preços para cobrir prejuízos causados por abusos e tornam os processos mais burocráticos, prejudicando inclusive consumidores que agem corretamente. O resultado é um mercado menos eficiente e custos mais altos para todos.
Uma reflexão necessária para o Dia do Consumidor
O Dia do Consumidor deveria ser uma oportunidade para refletirmos não apenas sobre os direitos garantidos, mas também sobre a forma como esses direitos são exercidos. A proteção ao consumidor é fundamental, mas o compromisso com a responsabilidade e a honestidade também precisa estar no centro do debate.
Consumidores bem-informados conhecem seus direitos. Consumidores conscientes entendem que direitos e deveres caminham juntos. Se buscamos um mercado mais justo, transparente e eficiente, é essencial superar a ideia de que apenas as empresas têm obrigações. O equilíbrio real só será atingido quando todos os envolvidos assumirem suas respectivas responsabilidades.
Talvez essa seja a reflexão mais relevante para a próxima celebração do Dia do Consumidor.
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1 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990). Disponível em: www.planalto.gov.br
2 BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002). Disponível em: www.planalto.gov.br
3 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Recurso Especial nº 1.823.284/SP. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Julgamento: 13/10/2020. Disponível em: www.stj.jus.br
Anderson Rodrigo Leite da Silva
Advogado na Martorelli Advogados, atuo na prevenção de litígios e recuperação de crédito. Expertise em estratégias jurídicas e inovação, curso pós-graduação em Direito Empresarial na PUC-RS.