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Quando Michel Foucault afirmou que o Direito é uma tecnologia social destinada ao controle e à disciplina, talvez não pudesse imaginar que, décadas depois, essa afirmação ganharia uma dimensão ainda mais profunda e complexa com o advento da IA – inteligência artificial. Hoje, assistimos não apenas ao uso de normas e códigos escritos, mas também ao surgimento de sistemas automatizados capazes de prever comportamentos, julgar conflitos e influenciar decisões judiciais. Estamos, portanto, diante de uma nova forma de poder jurídico, invisível aos olhos da maioria das pessoas, mas com efeitos concretos sobre toda a sociedade.
A chegada da inteligência artificial ao Direito representa uma evolução natural e inevitável. Tribunais e escritórios de advocacia já utilizam ferramentas algorítmicas capazes de revisar contratos, prever resultados processuais (jurimetria), automatizar petições e até sugerir estratégias jurídicas. Em uma sociedade que exige agilidade e eficiência, essa revolução tecnológica pode parecer sedutora e inofensiva, mas é justamente aí que mora um risco sutil, porém real.
O Direito, como alertava Foucault, não é simplesmente um sistema de regras para manter a ordem social; é uma prática que molda comportamentos, define o que é permitido ou proibido e, por consequência, determina os limites da nossa liberdade. Com a introdução de algoritmos sofisticados, essa tecnologia social ganha uma nova camada: passa a ser influenciada por sistemas automatizados que, muitas vezes, são pouco compreendidos até por seus próprios criadores. Decisões jurídicas passam a ser guiadas por uma inteligência invisível, sem rosto ou nome, sem consciência aparente, mas que interfere diretamente nas vidas humanas.
Um exemplo claro dessa preocupação é o caso COMPAS nos Estados Unidos. Ao avaliar a reincidência criminal, um algoritmo mostrou-se tendencioso, atribuindo maior risco a réus negros em comparação a réus brancos, mesmo quando suas situações criminais eram semelhantes. Esse episódio não apenas revelou uma falha tecnológica, mas também colocou em xeque a neutralidade e imparcialidade das decisões baseadas em algoritmos. Afinal, quando o Direito se torna invisível, automatizado e aparentemente neutro, quem assume a responsabilidade por injustiças silenciosas e sistêmicas?
É preciso, portanto, um olhar crítico sobre essa nova forma de poder jurídico. A era digital requer uma reflexão constante sobre quem controla os algoritmos que moldam a justiça, quais interesses são favorecidos ou prejudicados por eles, e como garantir a transparência e a equidade na aplicação do Direito automatizado.
A recente regulamentação da IA pelo CNJ, primeiro com a resolução 332/20, e mais recentemente com sua ampliação em 2025, é um passo importante nesse debate. Ainda assim, permanecem lacunas e questões éticas em aberto: como assegurar que as auditorias técnicas dos algoritmos sejam eficazes e não apenas formalidades protocolares? Quem responderá, concretamente, pelos erros que certamente ocorrerão ao longo do caminho?
Aqui reside o cerne da questão ética levantada por Foucault: se o Direito é uma tecnologia de controle social, como garantir que esse controle seja justo, transparente e democrático? Não basta apenas regular o uso dos algoritmos; é essencial compreender profundamente como eles funcionam, garantir supervisão humana constante e manter uma postura crítica diante das decisões automatizadas.
Nesse cenário, o papel dos advogados será ainda mais crucial. Eles precisarão assumir uma postura ativa e vigilante, questionando constantemente os limites éticos e legais da tecnologia. Mais do que nunca, os advogados precisam ser intérpretes não só das leis, mas também das máquinas que, aos poucos, ganham poder de influência sobre o Direito e a sociedade.
Portanto, diante desta revolução silenciosa, é preciso lembrar as palavras do próprio Foucault: “onde há poder, há resistência”. Não devemos temer a chegada da inteligência artificial, mas sim utilizá-la com consciência crítica e ética. Devemos olhar para esses avanços tecnológicos não como ameaças, mas como oportunidades para tornar a justiça mais eficaz e equitativa.
A IA pode ser uma grande aliada do Direito, desde que jamais percamos de vista sua natureza humana, ética e profundamente social. O desafio agora não é apenas compreender como funcionam os algoritmos, mas garantir que eles sirvam à justiça, não o contrário. Afinal, mais do que nunca, precisamos assegurar que essa nova tecnologia social esteja verdadeiramente a serviço das pessoas e não de interesses invisíveis que se escondem atrás das linhas de código.
Mabel Cristina Santos Guimarães
Advogada de inovação jurídica, UX Jurídica, Legal Storyteller. Pós graduada em Direito Administrativo (UFPE) e LegalTech: Direito, inovação e startups (PUC), Especialista em Business Analytics e Ciência de Dados (UNICAP) e Soft Skills (University of Chicago), sócia do Urbano Vitalino Advogados, colunista da Revista Paradigma e Premiada como Expressão Brasil 2022 e 2024.